sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5045: Humor de caserna (12): A Paisanada... e Os Insaciáveis (Vitor Junqueira / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça, um ser híbrido, meio alentejano, meio algarvio, no campo fortificado de Mansambo, onde se dormia debaixo de terra em bunkers, com paredes cobertas de imagens de estrelas ... de cinema como a Catherine Deneuve, que ajudavam os jovens, cheios de testosterona, nos seus verdíssimos 20 anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver! Em Mansambo (!), com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau pelo meio, mas só para alguns privilegiados.... O melhor era mesmo afivelar a máscara do espanta-tentações, como aqui exemplificada na foto...

Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.






Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, publicada em 10 de Agosto de 2005 (*): "Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o achado convosco.Vitor Junqueira".


Documento (digitalizado): © Vitor Junqueira (2005). Direitos reservados


1. Uma das coisas que mais aprecio nos seres humanos (e nos extra-terrestres, se um dia porventura os vier a encontrar) é o sentido de humor.

Infelizmente não temos cultivado devidamente esta arte e esta ciência. Convenhamos que o humor não é fácil. E que os tempos não são os mais favoráveis para os seus cultores. A menos que a coisa resvale para a chicana política, o trocadilho fácil, o bota-abaixo, o palavrão, a desbunda ... Mas esse arsenal do baixo humor (ou mau humor) não nos interessa, não faz parte do nosso core buisiness...e é eticamente reprovável, à luz dos nossos 10 mandamentos...

Gosto do humor do camarada que, em comentário a um poste meu (P5021), me diz:
- BAC ?... Bateria de Artilharia de Costa e não anti-costa.

E depois pergunta, com ironia:
- Paisanada?

E como "humor com humor se paga", respondi-lhe:
- É isso, camarada, é mesmo uma paisanada, uma calinada de paisano!... A minha cultura castrense tem lacunas... Fui infante, ninguém é perfeito... Peço desculpa aos leitores e, muito em especial, aos nossos valores artilheiros de costa (BAC)... Obrigado ao leitor anónimo, sempre atento e culto...

Pois, amigos, cá temos mais um termo (jocoso) que vem enriquecer o nosso linguajar de caserna:
paisanada sf > paisano + ada: 1. pej Os paisanos. 2 Grupo de paisanos. 3 gíria militar: Acção de paisano; gafe... (O termo vem do francês, paysan, camponês, pessoa que vive no campo, rústico)...

Outro camarada com humor (às vezes bem cáustico) é o nosso Vitor Junqueira... Creio que o primeiro ou um dos primeiros postes que lhe publiquei, nos primórdios do blogue, na I Série, era sobre o humor (*)...Merece transcrição (já que ninguém visita a I Série do blogue) (*):

Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era uma maravilha!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor é, além de um sinal de inteligência, uma forma muito nossa de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar e aguentar as situações difíceis…

Para um mancebo a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Para os mancebos da nossa geração, a passagem implicava também em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique...

O documento que o Vitor nos mandou [, reproduzido acima, ] é constituído por duas imgens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título "A Vida de um Militar na Guiné Atravez (sic) do Cinema".

A qualidade da digitalziação não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigidindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia. A segunda parte da lista (continuação) é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente exemplificativo.

Esta lista, bem humorada, faz sobretudo a equivalência entre as situações do dia-a-dia de uma aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!

Desconhece-se o autor. Possívelmente era alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões:

(i) Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos);

(ii) Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado);

(iii) Oficiais = Os insaciáveis;

(iv) Especialistas = Milionários sem vintém...


Também transparece aqui que a ideia de que ser sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a comissão!

O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o turra é indentificado com o "perigo que vem da fronteira"... Curiosamente não há tanta referência à vida concreta dos operacionais no mato: a emboscada, a mina, o rocket, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc.

Não deixa também de ser interessante a representação da enfermeira (pára-quedista): "o amor desceu em paraquedas"... Durante a comissão toda (= noites sem fim), a enfermeira pára-quedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erótica...

Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os básicos de Bambadinca, a chegada de um helicóptero com uma enfermeira pára-quedista... Em contrapartida, o furriel enfermeiro da unidade era associado a carniceiro e assassino... No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas (um profissional competentíssimo... mas o que ele sofreu connosco!).

Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as bajudas (= amor sem barreiras), o tabaquinho e os copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...

A vida de um militar na Guiné através do cinema:


Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Comissão = Noites sem fim
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Alojamento = Este é o meu mundo
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Sargentos = Casino Royal
Clube de Oficiais = Hotel Internacional
Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Comunicações = Este difícil amor
Metereologia = E tudo o vento levou
Linha da Frente = Com jeito vai
Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Oficiais = Os insaciáveis
Sargentos = Os profissionais
Praças = A família Trapp
Especialistas = Milionários sem vintém
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Enfermeiras = O amor desceu em pára-quedas
Enfermeiros = O assassino
Médico = O homem da mala preta


A vida de um militar na Guiné através do cinema (continuação) [Vd. documento acima reproduzido]:

Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Formaturas = Eram duzentos irmãos
Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos
Justiça e disciplina = Arquivo K
Condecorações = A Cruz de Ferro
Castigos = Adeus ilusões
Prisão = Longe da multidão

Dispensas = Uma réstea de azul
Recolher = Servidão humana
Não ir de férias = Restos de um pecado
Ir de férias = O prémio
Avião semanal = A esperança nunca morre
TAP = O último recurso
Bissau = Vida sem rumo
Tabancas = Sarilho de fraldas
Bajudas = Amor sem barreiras
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos
Ida ao mato = Um campista em puros

Turras = O perigo vem da fronteira
Ataque ao quartel = A visita
Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Louvor = Não sou digno de ti
Substituto = O espião que veio do frio
Último dia da Guiné = O dia mais longo
Partida para Lisboa = África adeus
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas



___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVIII: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vitor Junqueira)

3 comentários:

Anónimo disse...

Se Luís Graça diz que a sua cultura castrense "tem lacunas" e Carlos Vinhal afirma que percebe pouco de tropa, que tal contratar um "assessor militar" para o blogue?
Cordiais saudações,
Carlos Cordeiro

NB: mais uma para demonstrar as lacunas castrenses dé LG: não é "NPR", mas "NRP" (Navio da República Portuguesa)! LOL

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Com que então um "ser híbrido"!!!!
Sou um ser inteiro...meu querido camarada que anda lá pela Lusa Atenas;não se perca no Jardim da Sereia ou no Choupal...eu, quando assentar um pouco, logo escrevo. mas fique sabendo que não havia paredes com estrelas ou Caterines ou programas do Lido ou Moulin Rouge em Mansambo. Isso era em Fá. Em Mansambo havia terra, depois blocos de cimento enfeitados com percevejos, ratos (ratas não)e até abelhas. Abraço Luis;Editores e tertulianos. Logo escrevo Torcato