domingo, 10 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1.Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Já devorei a antologia de João de Melo.
Espero começar agora toda a obra do Armor Pires da Mota.
E ficam para ler algumas das obras-primas de Teixeira da Mota, livros raros que depois serão oferecidos ao blogue.

Saúde para todos,
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (6)


Beja Santos

Recordatória

Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo procedeu a um levantamento da literatura da Guerra Colonial, referente a obras publicadas nos anos 60, 70, 80 e 90. Ele próprio refere que se trata de uma escolha arbitrária, por definição tem carácter subjectivo, refere mesmo nomes como o de Cristóvão de Aguiar, que não foi incluído na antologia (no final do texto, far-se-á uma chamada para o seu livro “Braço Tatuado”, cuja primeira versão surgiu em 1985). A série de textos que dedicámos aos escritores relacionados com a Guiné finda hoje com referências a José Martins Garcia e Sérgio Matos Ferreira. Não hesito em colocar o nome de José Martins Garcia como referência incontornável da literatura de guerra, sobretudo dos anos 70, pela sua originalidade, veia dramática e satírica. Sérgio Matos Ferreira é a voz do combatente que assistiu à independência da Guiné.


As suspeitas de um bravo capitão

“No começo da guerra, em 1963, ordens e contra-ordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando as secções. O resultado fora desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. Assim se concentraram momentaneamente na vilória quatro companhias, sem muita estratégia e com escassíssima logística, à espera do reabastecimento europeu, via Bissau... Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparem tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população, nomeadamente Bissau e Bafatá”

“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau, o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo da companhia do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim. Magro, alto, louro, arrastando uma tosse que parecia humilhá-lo, batia os tacões e ruminava lembranças épicas quando encarava aquela “tropa fandanga”, aqueles soldados mal enjorcados, sempre de chinelos e sem barrete, desaprumados, gingões, clandestinos jogadores de montinho e lerpa.

O comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da administração, um “padeiro”. Relacionando este absurdo com a filiação do Clemente, bateu com a palma da mão na testa e encontrou: “A cunha!” E ainda por cima o fulaninho, anafado e untuoso, botava pequenos discursos nacionalistas...

O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, muito honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos”.

José Martins Garcia, em “Morrer devagar”, 1979


Vlatinessência

“Sob a hélice gigante dos indefinidos dias, sob o trovão enorme da estação chuvosa, sentindo de longe em longe um rodopio na memória, Pierre Avince dormiu uma inteira eternidade. Mais tarde recordaria os vultos esbranquiçados dos enfermeiros, as seringas cheias de líquido vermelho ou branco, os boiões de várias drageias, as injecções apercebidas por uma irritante sensação de calor espalhando-se da garganta até às unhas dos pés.

Um dia abriu os olhos e verificou que estava cercado por vários mortos. A bátega caía rija contra a vidraça mas, sobreponde-se ao rumor da chuva, a hélice do helicóptero remoinhava. Saltou para o jipe, entrou no túmulo, ouviu uma explosão. Todos mortos, sob a hélice de um helicóptero. Sem inferno, sem purgatório, sem paraíso, balelas inventadas pelos feiticeiros de todo o mundo.

Alguns anos depois, diante da página em branco, lembrar-se-ia da falsidade até da morte, da radical incompatibilidade entre ausência e consciência. E inventaria a palavra VLATINESSÊNCIA, a qual, por deficiência do significado, em breve lhe parecia um produto de beleza, ou seja, a cultura ao serviço da mutilação”

José Martins Garcia, em “Lugar de Massacre”, 1975

José Martins Garcia
Nasceu na Ilha do Pico em 1941 e faleceu em Ponta Delgada em 2002. Licenciou-se Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionou entre 1971 e 1977. Cumpriu o serviço militar na Guiné entre 1966 e 1968, experiência que se projectara literariamente nas suas primeiras obras como “Katafaraum é uma nação” e “Lugar de massacre”, na década de 70. Trata-se de uma experiência que, como escreveu Urbano Bettencourt, acabará por pontuar, sob variadas formas e indiferentes circunstâncias a sua obra literária. Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Pais e 1979 rumaria para os EUA como professor da Brown University, em Providence. Na Universidade dos Açores introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e doutorou-se com uma tese sobre Fernando Pessoa. A sua obra é muito eclética, abarca o ensaísmo, a poesia, o romance, o conto e a crítica jornalística.


Os anjos da guerrilha

“Num murmurejar crescente, a população deu aviso de entrada dessas palmeiras gigantes com óleo castigado por luas de guerrilha. Vinham esplendidamente erguidos, enfiados no camuflado do tempo, imensa pedra com dentes de luta. Dos lábios rebentavam nuvens brancas, claras, cheias de determinação – Ah, esse dia com sabor a entrega, com sabor a princípio, com um gosto inesquecível. Ah, meu país, meu ventre – e na parada gulosa de surpresas lá estávamos, sempre na espera, encavalitados de sobrolho desassossegado, barulhento, e numa calma enfurecida o silêncio baixou, espetou expectativa em todos os militares e povo. O momento grave, solene, e os homens do PAIGC perfilados, erectos, e os discursos a ferrarem na carne realidade, bela como o sol que nos ensurdecia de fogo e sede e liberdade, e um tenente-coronel a abarrotar de gordura estoirou a abertura da cerimónia com um dó dorido a patinar suor numa cara encarniçada, balofa...”

“A bandeira arpoada num falo direito, rijo, dedilhava palavras surdas auxiliada por um sorriso fraco de vento, que acordado em sobressaltos estrebuchava soluços de pano bicolor, murcho, à espera da estocada final. Num berro sem esforço, o clarim tocou firme e um pulsar de cascata segredou no sangue que o colonialismo se dissolvia, o sopro final de metal continuou pleno de satisfação, vibrando nas lâminas quentes do dia o tom do sentido, e sentimos na mais escondida célula que a salada da guerra se fechava na caixa da memória. A bandeira escorregava lentamente pelo fio da história em pequenas convulsões, hesitando, agarrando-se em jeito de lapa à madeira inchada e sem resistência poisou suavemente numas mãos esburacadas, ansiosas por remendar essa prisão de mato com a sombra do seu país... Agora África subiu sem dificuldade pelo poste, de braços abertos, hélice de espigas doiradas a cuspirem sementes, catana vigorosa de carne a cortar o último nó do cordão umbilical.
És independente, meu nervo. Guiné de todos”

Sérgio Matos Ferreira, em “O descascar da pele”, 1982

Sérgio Matos Ferreira foi mobilizado para a Guiné em 1973, com o posto de furriel miliciano e a especialidade de artilharia de campanha. Esteve em Dara, e depois em Buruntuma até Setembro de 1974, tendo assistido e participado na entrega do território ao PAIGC.


Cristóvão de Aguiar, convém não esquecer

Cristóvão de Aguiar acaba de reeditar em nova versão “Braço Tatuado” que apareceu inicialmente no livro Ciclone de Setembro, editado em 1985 (“Braço Tatuado, Retalhos da Guerra Colonial, por Cristóvão de Aguiar, Publicações Dom Quixote, 2008).

É hoje apreciável o número de títulos disponíveis, só da responsabilidade de escritores, sobre a sua experiência na Guerra Colonial. Basta referir os primeiros livros de Lobo Antunes, alguma poesia e prosa de Manuel Alegre, romances de Lídia Jorge e João de Melo, contos e novelas de Álvaro Guerra, o teatro de Fernando Dacosta e quanto aos escritores africanos Luandino Vieira e Pepetela.

Continua por dar resposta a esta questão cultura indispensável: durante treze anos, a Guerra Colonial envolveu centenas de milhares de militares e afectou directamente milhões de civis. A que se deve, a despeito de um número já considerável de testemunhos, incluindo os de recorte literário, o silêncio desses protagonistas? Há quem procure justificar a falta de estantes cheias de títulos sobre a Guerra Colonial devido ao facto dos diferentes heroísmos não se poderem traduzir numa voz colectiva, isto é, o que se passou em três frentes de combate teve diferentes identidades e resultados militares díspares. Além disso, tendo a Guerra Colonial terminado com o 25 de Abril e a independência das colónias, terá parecido a muitos protagonistas que os seus testemunhos estavam deslocados, precisavam da temperança de um silêncio entre gerações para não serem tomados como pura nostalgia ou ressabiamento ideológico. Acresce, com a má sorte que tem vindo a acontecer na vida das ex-colónias, num sofrimento que passa pela fome, guerras civis, destruição e corrupção económicas, e se saldam na degradação das condições de vida, parece haver pouco espaço para voltar aos cenários de horror desses conflitos armados ou cantar a voz da liberdade que acompanhou a independência desses povos.

Seja qual for a resposta consistente que se vier a dar a esta questão cultural incómoda (que por ora ninguém parece querer afoitar-se a responder), os protagonistas passam o papel os seus testemunhos.

Cristóvão de Aguiar combateu na Guiné entre 1965-1967.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5617: Notas de leitura (51): Os Anos da Guerra, de João de Melo (5): Carta número... e, Uma granada sob o coração (Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Beja Santos,
Pelo que percebi, a questão é esta: a produção bibliográfica sobre a Guerra do Ultramar é proporcional ao impacte que teve (em todos os aspectos) na sociedade portuguesa? Se não (e é esta a sua opinião) como explicar tal realidade?
Já dá algumas justificações no seu poste, a que havia também que apresentar algumas muito mais prosaicas, como, por exemplo, o interesse ou não das editoras na publicação de obras sobre o assunto, a disponibilidade dos "protagonistas" para escreverem sobre as suas experiências, e por aí fora.
Se dermos uma vista de olhos pelo blogue, não nos admiraremos muito sobre a o nível de produção bibliográfica. São cerca de 400 "sócios efectivos", num universo potencial de dezenas de milhar. Mesmo contando com muitos que não têm acesso à internet ou têm dificuldades ao nível da escrita, o facto, convenhamos, é que se trata de uma percentagem bastante reduzida de intervenientes relativamente aos protagonistas que serviram as NT na Guiné.
Mas o blogue (e os outros, por exemplo, de unidades militares) aparareceu na hora certa: aquela em que os protagonistas estão na fase da vida própria dos balanços ou do olhar retrospectivo - às vezes nostálgico e complacente, outras pessimista e justiceiro. É muito possível, pois, que comecem a surgir, nos próximos tempos, mais publicações, de feição literária ou simplesmente memorialista.
Um outro aspecto interessante que também me surpreende é o aumento significativo de unidades que realizam os seus encontros anuais. Que significado terá isto?
Não conheço a bibliografia, na área da Sociologia, sobre estas questões dos Antigos Combatentes e se, por exemplo, este movimento das confraternizações já foi alvo de algum estudo.
O Luís (Graça) não deixará de nos recomendar algum estudo sociológico que considere interessante sobre estas e outras questões que se refiram à situação e comportamento dos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar.
Nós agradeceremos.
Afinal, divergi do assunto principal. Paciência.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Mário Beja Santos disse...

Camarada Carlos Cordeiro, Só hoje respondo porque estive uns dias a ver os farrapos de neve, lá para Pedrógão Grande, foi uma beleza. É evidente que há múltiplas razões para escrever e não publicar ou não ser editado; ou para não querer escrever. Avanço, muito sumariamente, um reforço para o que escrevi acerca do Cristóvão de Aguiar: Primeiro, a descolonização não foi fácil para os combatentes, gerou-se uma atmosfera em que parecia que o contributo de cada um devia ser apagado em função da política errada seguida por Salazar e Caetano; segundo, tirando casos excepcionais (refiro Armor Pires Mota e Álvaro Guerra, para os anos 60 e dealbar dos anos 70) foram pouquíssimos os textos de qualidade, penso que nunca se saberá as razões de insegurança que não levou tanta gente envolvida a escrever mais, e sobretudo melhor; terceiro, as editoras não podem ser complacentes com livros que não terão compradores, exige-se a quem apresenta manuscritos que haja qualidade, pertinência, formas de captação de velhos e novos públicos (o Júlio Magalhães escreveu uma história de amor, não é boa literatura mas cumpre a função afectiva junto de certos públicos). Ficamos por aqui, já houve e continuará a haver colóquios à procura das diferentes chaves explicativas. Uma coisa é certa e concordo com o João de Melo: a obra-prima, ou as obras-primas, ainda não apareceu. Um abraço do Mário Beja Santos

Anónimo disse...

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