CARTAS DE AMOR E GUERRA
13 - RELIGIOSIDADE
(… … …)
Eu creio sinceramente no teu regresso. Sou católica, como sabes. E a minha fé na protecção divina é grande. Deus ouvirá a minha prece. Fervorosamente, eu peço-lhe que nos aproxime, que te traga de novo ao seio da tua família. E já muitas preces foram atendidas, mesmo no que a ti respeita. Não permitiu que ficasses a meu lado nesta época mas, mesmo assim, não desespero.
(… … …)
Não queria causar-te aborrecimentos tocando-te em assuntos religiosos. Desculpa-me, pois, se te enfado mas tenho de te dizer o que sinto, o que é a minha opinião.
Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural?
Essa tua fé nos bons resultados da tua actuação, a tua confiança na sorte, não serão indícios da tua credulidade em algo de divino mas de que, confuso que se te apresenta, ainda te não apercebeste?
Pelo estudo avançado de filosofia que fizeste e ao procurar explicar tudo à luz da razão, cais em contradição ao negares a existência de Deus. A meu ver só se pode negar qualquer coisa que sabemos que existe pois, se não existe, é utópico negá-la. Se negas a existência desse Deus, mesmo sem o perceberes afirmas que existe e apenas não queres reconhecê-lo.
Talvez agora estejas sentindo essa necessidade de te protegeres, de te pores à guarda de um ser divino, dum ser supremo. Talvez que na aproximação do perigo estejas também tu voltando ao caminho de católico ou de cristão que és.
(… … …)
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…).
Meu amor querido, seja na Guiné ou em qualquer lugar recôndito da Terra por onde vagueemos, há problemas, há situações angustiantes. A cada um compete resolvê-las. Sorri um poucochito mais, meu querido …
(… … …)
Pondo em acção toda a nossa vitalidade, toda a nossa energia de jovens, não deixemos que as derrocadas diárias nos marquem ao desabarem. Deste modo venceremos, decerto. Combinado, minha jóia querida? (… … …). Confiemos então na tal “sorte”, na tão ambicionada sorte que há-de ser a tua mais fiel companheira enquanto a minha presença pessoal junto de ti nos for vedada.
(…) beijos apaixonados da sempre tua N.
Adeus meu querido.
Bissorã, 18 Jan 66
Muito obrigado pela tua carta, minha querida. Valerá a pena elogiar-te? Com certeza. Tu merece-lo.
(…… …)
Nota, no entanto, minha N. Apesar destes meus indicativos de satisfação, não quero que estagnes. Essa tua vontade de progredir que não pare, que não feneça. (…). Muito há ainda para descobrir.
(… … …)
E eu confio, tenho a certeza na tua capacidade de ascensão intelectual. Vais no bom caminho. Estás OK, minha querida!
Quero-te dizer agora uma coisa: - sê coerente contigo própria, (…). Se és católica, se és religiosa, frequenta a Igreja, professa calmamente a sua doutrina mas sem te fanatizares, com o sentido crítico, razoável, que deve ser o de alguém consciente.
(…).
Custa-me dizer-te mas, no aspecto religioso, (…), não sinto possibilidades de poder acompanhar-te. Eu não nego a existência de Deus, nota bem. Simplesmente, eu sou agnóstico. Não nego a existência de Deus mas também não há nada que ma possa provar. Nada, percebes?
Todos os argumentos que me possam indicar são, para mim, sem bases, refutáveis. Podes crer, minha querida, que em todos os momentos de aflição por que tenho passado, nunca, NUNCA, nota bem, um leve chamamento por algo sobrenatural me envolveu o espírito. (… … …). O que sinto, em todos esses momentos críticos, é ódio, um ódio extravasante. Não pelos chamados terroristas que provocam a aflição. Não tenho nada contra eles. Mas sim contra esta orgânica e seus mantenedores. Isto aqui é mesmo um inferno. (…). De um momento para o outro tudo pode acontecer. E a Guiné ficará na história de Portugal como o cadafalso de centenas de jovens, inglória e criminosamente sujeitos a megalomaníacos que não há meio de serem destruídos. Reza, minha querida, se tens fé. Agradeço-te as tuas boas intenções.
Desculpa, mas ri-me de um período da tua última carta no que respeita à negação da existência de Deus. Aquela parte que se referia à filosofia. Tudo aquilo que expuseste são trocadilhos de ideias que não levam a nada e que muita gente usa para confundir os espíritos. Eu, como já te disse atrás, não nego a existência de Deus mas também nada há que me faça acreditar nele.
(… … …)
Acho que só quem tem fé pode acreditar em Deus. Não tenho fé. Já a tive. Mas sinto-me bem assim. Não preciso de pôr à minha frente o mito de um ser superior que nos vigia, vela por nós, castiga ou salva. Se Deus significa o caminho da salvação ou da perfeição, o meu Deus é o bem, o belo, a paz, a alegria, o amor, a liberdade, a vida. É um Deus mais íntimo, que eu mais acarinho pois sou eu também um daqueles que o ajudam a viver.
(… … … ).
Sei, para terminar, que posso afirmar convictamente:
- A existência ou a não existência de Deus não é problema para mim. Sinto-me bem à margem, desinteressado do problema. Já sofri muito por causa disto. Agora sinto-me perfeitamente satisfeito com o meu agnosticismo. (… … …).
Minha querida, AMO-TE. (…).
M.
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[Cerca de um mês depois de ter recebido a carta de D. (11.01.1965), onde se lê “Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural?” passei por um momento único em que me senti totalmente nas mãos do inimigo. Referi-lhe este facto, a tempo, numa das cartas mas não tocando na questão religiosa ou, melhor, indirectamente dizia que, num clima de aflição, não tinha pedido apoio sobrenatural. É que, numa emboscada e durante uns segundos intermináveis, tinha entrado no domínio do despojo absoluto (“acabou, tudo está consumado”) à espera de ser fuzilado. Mais que num grito abafado, saiu-me num murmúrio angustiante um “Ai, minha mãezinha!”. E não era aquela comum e muito vulgar expressão de aflição, era mesmo um pedido inconsciente de socorro de quem estava consciente da sua situação de total fragilidade e em que, qual bebé, “só” a sua Mãe o poderia salvar.]
Bissorã, 17 Março 66
(… … …)
Olha lá, não ouviste aí falar, na rádio ou nos jornais, numa grande operação realizada aqui, em que tivemos um êxito enorme? Foi na noite de 19 para 20 de Fevereiro. O teu M. lá andou. Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha Mãezinha e por ti. Não te rias, é verdade! Um “sacana” estava mesmo a atirar-me para cima. As balas picavam o chão à minha volta e só estava à espera de sentir uma pelo corpo dentro. Mas saí incólume. Éramos perto de 250 homens e só tivemos quatro feridos [ligeiros]. Capturámos muitíssimo material de guerra. (…). As fotografias do material capturado deveriam ter circulado pelos jornais e pela TV. Não viste? [*]
(… … …).
Foto 1
Foto 2
Fotos 1 e 2 > Referências na imprensa (não identificada) à op. Castor.
Foto 3
Foto 4
Foto 4:
Fotos 3 e 4 > Imagens de material capturado, em espera para ser carregado no heli.
Foto 5
Foto 6
Fotos 5 e 6 > Imagens de algum do mais importante material de guerra capturado e reunido no Olossato. [*] [ “Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha mãezinha e por ti”:
Referência à “Operação Castor” (20/02/1966) que consistiu num bem sucedido golpe de mão a um depósito de material de guerra do IN na sua grande base de Morés. Correu tudo de tal modo que o IN só reagiu bastante tempo depois, interrompendo o serviço dos helicópteros que já tinham recolhido e transportado para o Olossato a maior parte do material (cerca de três toneladas), tendo o restante de ser levado às costas pelo pessoal participante na acção (CCaç 816, CCaç 1419 e Pel Milicias). Nesta retirada, no caminho para o Olossato, sofremos uma forte emboscada. Na preocupação de coordenar os “meus” homens, aconteceu ver-me no meio da “estrada” e ter de me deitar aí, ficando a descoberto, de bruços, com a cabeça a tentar “esconder-se” atrás de um saco de carregadores vazios que antes levava aos ombros. Dei por um levantar de poeira provocado por uma rajada com as balas a picar o chão à minha frente, a centímetros da cabeça. Comecei a sentir-me alvo de alguém que tentava acertar-me. Sem hipóteses de me levantar e de mudar de lugar fiquei, imóvel, colado ao chão, à espera de ser “costurado”. Ainda hoje, quando penso nisto, sinto um calafrio a percorrer-me a coluna, desde o “buraco” ao fundo das costas até à nuca. E é verdade, “juro”, que nesta aflição me não ocorreu qualquer ideia e/ou expressão de índole religiosa. Se “gritei” pela namorada, já me não lembro. Mas o “Ai, minha mãezinha!” continua fortemente a ecoar na minha mente quando recordo o acontecimento.
Sobre esta operação militar, “Condor”, ver neste blogue o P3806 de 27/01/2009, do camarada Rui Silva da CCaç 816, de onde foram recolhidas as imagens acima publicadas. Neste “post” do nosso estimado “tabanqueiro” há dois erros a merecer correção:
(i) não foi a CCaç 1418 quem acompanhou a CCaç 816, mas sim a CCaç 1419, a que pertenci, deslocada de Bissorã para Olossato precisamente para esta operação.
(ii) também a CCaç 1481 não foi a outra companhia que atuou “à distância” pois estava em Moçambique (BCaç 1873). Julgo que na identificação houve troca dos algarismos 1 e 8 e, por isso, creio ter sido, aqui sim, a CCaç 1418 a atuar.]
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa
6 comentários:
Bonita correspondência e apaixonante discussão filosófica!... Tema sensível mas abordado com delicadeza...
Manuel Joaquim, o teu poste merece uma referência à Op Castor (não existia este descritor/marcador no blogue)... Corrigi também o poste do Rui Silva (, espero que ele aprove);: CCAÇ 1418 e CCAÇ 1419... Está bem assim ?
E depois, quantos de nós não chamaram, institivamente pela mãezinha, em momentos de grande aflição ?... Como esse que descreves...
Olá Manuel Joaquim.
Eu tinha um instinto, antes de publicares a primeira carta, e o companheiro e combatente Luis Graça te incentivou a publicá-las, que daí iria sair "coisa boa"!.
Hoje o tempo é diferente, desculpem, mas parece-me que o "amor" entre duas pessoas que vão contrair matrimónio, é um pouco diferente, há muita liberdade, os namorados estão sempre juntos, e a coisa perde o "sabor".
Quem é que pode passar ao lado, daquela conversa, onde se fala com alguma angústia de um amor que existe, de um Deus, que ninguém sabe se existe, mas de uma união que ambos sabem que, se safarem da guerra, com toda a certeza, que vai existir!.
Depois vem as notícias, até com fotografias de um jornal, a dizer que no Oio, havia armas!.
Havia e muitas, que o digam todos nós combatentes, que por lá passámos.
Como sempre gostei, por favor continua.
Um forte abraço, Tony Borie.
Manel!
Meu Amigo e Camarada.
Tudo o que tinha para te dizer, disse-o.
Agora deixa-me desfrutar.
Abraços.
armando pires
Meu caro Luís Graça:
Corrigiste o P3806 do Rui Silva sobre a op. Castor mas foi só na parte final. Antes disso há três referências à CCaç1418 (CCaç.1419) e quatro à CCaç1481 (CCaç.1418). Entre parêntesis, a correção devida.
Para ajudar, aqui vai a localização no referido poste:
Sob o subtítulo do texto "Das minhas memórias, Páginas negras com salpicos cor-de-rosa" ver os parágrafos 11, 18, 28, 32.
Um grande abraço
Manuel Joaquim
Ao reler com mais atenção o P3806 do Rui Silva encontrei a fonte das fotos 1 e 2 deste meu poste, legendadas assim:
"Referências na imprensa (não identificada) à op. Castor"
Está identificada a fonte:
-Revista "Flama", nº 941 de 18-3-1966
Aproveito para mandar um abraço camarada a todo o "pessoal" frequentador deste blogue.
Caro Manuel Joaquim,
Apesar de não seres crente, mas de certeza que conheces a obra.
Já dizia o cardeal português, "ai como é diferente o amor em Portugal".
Será que era o atraso em relação aos outros países ou nós somos realmente diferentes como diz a sigla da minha Cart. 2412 "SEMPRE DIFERENTES"
Um grande abraço para ti, para o Luís Graça, para o Tony Borié e para o Armando Pires meu camarada de profissão e ggrande contador de histórias e também para todos os outros.
Adriano Moreira
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