sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 6

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

O casamento do Jaime e da Manuela 
E o caso da macaca ciumenta 

O Jaime Vieira Segura e a Manuela (Maria Manuela Gonçalves Moreira Eusébio), natural de Paredes, casaram-se na Catedral de Bissau, local muito frequentado pela muito devota mãe de Amílcar Cabral, no dia 13 de Abril de 1964, um mês após o regresso da maldita Ilha do Como.
Presidiu ao acto o Tenente Capelão do Batalhão 490, Padre Serafim Alves Monteiro da Gama. Foram padrinhos o alferes Rui Ferreira (António Rui Diógenes de Noronha Ferreira, meu grande amigo, a viver em Faro, no Algarve) e uma prima deste, também goesa, que vivia em Bissau.
Eu estive presente e fui mestre de cerimónias, ajudando-os a cumprir os rituais…
Foi possível a cerimónia, porque tanto o noivo, como o Rui e eu nos achávamos a repousar na fortaleza da Amura do ciclópico esforço e enorme e natural desgaste despendidos na operação “Tridente”, onde abundavam as rações de combate e a água que obtínhamos dos pocecos feitos, era salgada…

Catedral de Bissau
Foto: © J.F. Robalo Borrego. Todos os direitos reservados. [Edição: CV]

Não houve boda. Era dia de semana. Essa parte festiva decorreu no domingo seguinte em casa do Jaime Segura. Situava-se na Rua Principal de Bandim. mesmo defronte do buliçoso e ruidoso mercado indígena, numa enorme mescla de sabores e cores garridas, onde as mulheres negras e as bajudas de rijos seios empinando as floridas blusas vendiam de tudo um pouco.

Jaime Segura era um audaz combatente, um bom comandante de homens, cometeu alguns feitos na Ilha do Como, o que levou a ir, ainda nesse mês de Abril, para os Comandos, onde, entretanto, o havia de ir buscar o capitão Arrabaça, desafiando-o: “Abadone os Comandos e eu dou-lhe autorização para para formar um Grupo de Comandos dentro da minha companhia [488]. Você pode escolher quem quiser, mas peço-lhe que fique comigo!”. Lá seguiu para Jumbembem, onde esteve operacional, até que, em Junho de 1964, era transportado de helicóptero para Bissau. O destino final era o Porto, onde, no dia 10 de Junho, era condecorado com a Cruz de Guerra… mas recebia outro prémio. No aeroporto, surgiu-lhe o Brigadeiro Sá Carneiro (tio do falecido Sá Carneiro) que lhe fez este inesperado anúncio: o Governador e Comandante-Chefe tinha-o escolhido para seu Ajudante de Campo, de modo que, quando regressasse a Bissau, deveria ir ao Palácio do Governo falar com o então Brigadeiro Arnaldo Schulz, meses depois promovido a General.

Quando chegou a Bissau havia de ser acometido por fortes dores na barriga.Tendo ido ao hospital, os médicos extraíram-lhe o apêndice. A cirurgia correra bem. Só que, passados dias, ao retirarem os agrafes, estavam tão seguros que levaram atrás de si pedaços de carne. Resultado: uma infecção, que levou 30 dias a curar. Só após este período, se apresentou. Teve direito a dois gabinetes: um no Palácio, outro no QG (Quartel General). Serviço: todos os dias, até sábados e domingos, tinha de ler os perintreps, enviados pelas companhias, ver locais onde houve combates e assinalá-los com os diversos alfinetes de cor num enorme mapa da Guiné, que cobria as duas paredes da sala secreta de reuniões, onde todos os dias reuniam as altas esferas militares (coronéis) dos três ramos das Forças Armadas que decidiam o que poderia ser feito nos dias seguintes. Era o alferes das bandeirinhas, de uma guerra mais longe.

Quanto ao serviço de transportes, não era tarefa fácil para o Fernando Correia, que acabara por ser colocado no Quartel General como responsável pelo sector dos abastecimentos. Ou fosse na 2.ª Secção de Transportes da 4.ª Repartição, após a apresentação do relatório do médico que o operara. Isso permitiu que trouxesse para Bissau a noiva e fosse viver com o Jaime Segura e a Manuela, primeiro, numa casa na estrada de Bor, depois mais na baixa da cidade. Amigos de animais, tinham no pátio macacos e uma macaca ciumenta. Tanto que quando, de propósito, o Jaime e a Manuela se abraçavam, acariciavam ou beijavam, a macaca, enfurecida, qual fêmea traída, pegava no que tinha à mão, até merda, e arremessava-lhes.

Não era obra fácil o serviço de transportes, era necessário alugar os barcos e contactar os comerciantes, mas seguramente melhor do que eu estar em Jumbembem.

Um e outro não podiam estar melhor, viviam o ambiente da cidade, longe dos tiros. Mais tarde, o alferes Fernando Correia foi viver mais para o centro da cidade, junto ao Grande Hotel, com o Tony Magalhães, que trabalhava no sector da administração do QG.

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O Dia de Santo Avião

Eu era o mais antigo oficial miliciano da Companhia. Os outros eram por ordem decrescente: António José Orlando Bretão, Armando Graça da Cruz e Inácio Gonçalves Rodrigues Casinhas. Quando o capitão Correia Arrabaça baixou ao hospital, na sua ausência, era eu quem assumia o comando da Companhia, o mesmo acontecendo, posteriormente, relativamente ao Tenente de Cavalaria Lourenço de Carvalho Fernandes Thomaz. Uma das operações levou-nos à fronteira com o Senegal, onde contactámos com refugiados e familiares da tabanca que se havia acolhido à nossa sombra. Tinha como objectivo também capturar uma manada de vacas. Havia falta de carne e não havia a quem comprar. Carne não faltou então por longos meses, mas, sim, o correio. Tanto assim que enviava ao Comando uma mensagem algo áspera: “tropa sem correio, tropa sem moral”. Estava a gerar-se um certo mal-estar. O correio era como o melhor pão de casa. Dois ou três dias depois, era festejado o dia de Santo Avião. As dorniers voltavam a sobrevoar Jumbembem, lançando alguns mantimentos e correio.

Localização de Jumbembem. Vd. Carta da Província da Guiné (1961) - 1:500.000

Às vezes, orientávamo-nos na semana por dois dias: um era o implacável dia da resoquina, mas não julguem que se tratava de drogas para forjar coragem para suportarmos o esganiçar frenético da metralha, o esbrasear das manhãs espapaçadas de suor, sangue e capim, muradas de cacimbo e rasgadas pelos pios sinistros e agourentos que arrepiavam a pele da alma, de ponta a ponta. Eram apenas pílulas antipalúdicas. O outro era o dia do correio. Era dia de festa geral. Havia algazarra estridente, um sorriso no canto da boca, por vezes amarrotado pela secura dos dias e nos olhos uma alegria profunda e íntima. O correio esperava-se com a ansiedade de gente moça, roída pelo espinho da saudade que gotejava lágrimas, quando a solidão era maior. Uma carta que fosse, fosse ela da mãe, da noiva, da madrinha de guerra, de um amigo, fazia esquecer uma semana inteira de lutas e cansaços. Era um alívio, um conforto enorme. Ouvia-se o ronronar da Dornier e os olhos pregavam-se no céu em brasa.

A Dornier era um anjo de asas acinzentadas, esvoaçando todo a tremer no seu coração pequeno, sobre pântanos, vestidos de algas, escondendo por vezes animais perigosos, ou sobre palmares infinitos, fechados, acabando por nos acariciar os olhos num redopiar manso sobre o aquartelamento ou sobre a trincheira, lançando-nos o saco azul, bordado a letras vermelhas. A carta era a oração de mãe, trespassada de dor e de viva esperança em Deus e nos santos da sua devoção. A carta era a fotografia, o sorriso, o coração grande da noiva, derretendo-se em palavras melodiosas, abrindo-se em sonhos e projectos, em beijos. A carta era o conselho e a força de um amigo. A carta era a seara verde em promessas de ouro e o vinho acetinado de uvas amadurecidas. A carta era o melhor sedativo para uma cicatriz ou um rasgão, uma couraça para um estilhaço. Uma couraça forte que podia salvar uma vida das garras terrivelmente aguçadas e sangrentas da metralha atroz. A carta era a terra e o arraial da romaria do padroeiro de cada um. A carta era a coragem e a fé, a força renascida, a esperança mais viva e mais larga, do tamanho da distância.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

1 comentário:

javise disse...

Meu caro Armor,
sempre "pregas" cada partida àqueles que foram, são e sempre serão teus amigos!...
Esta coisa de recordar velhos tempos, deixou-me emocionado. Talvez seja a idade, que não perdoa...
Aqui fica aquele abraço para ti meu bom amigo!
Jaime Segura