sexta-feira, 18 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13004: 10º aniversário do nosso blogue (11): 40 anos depois do 25 de abril: "Que inveja eu tive daqueles soldados, a maioria muito jovens sem qualquer experiência de combate, a quem tinha calhado a sorte de ajudar a derrubar a brigada do reumático, abrir as prisões e este país ao Mundo" (Juvenal Amado)



Fotografia do francês Gérald Bloncourt [n. 1926] reproduzida com a devida vénia, escolhida por Juvenal Amado para ilustrar o seu texto. Legenda: GB fez o caminho a salto com um grupo de clandestinos e tirou algumas fotos. Esta é de março de 1965 e tem a seguinte legenda: 'Passagem clandestina de emigrantes portugueses nos Pirenéus.'  

Uma exposição temporária deste conhecido fotógrafo (que acompanhou a imigração clandestina portuguesa dos anos 60/70 e cobtri também a "revolução dos cravos") esteve no Museu Colecção Berardo, CCB, Lisboa, de 18/2 a 18/5/2008, sob o título "Gérald Bloncourt: pir uma vida melhor".


1. Texto do Juvenal Amado, enviado para comemorar os 10 anos de existência do nosso blogue e os 40 anos do 25 de abril, dia que ele viveu em Alcobaça, sua terra natal, acabado de chegar, há 20 dias, da Guiné


Vivemos tempos filho de outros tempos.

Somos ex-soldados, que de uma maneira ou de outra embarcamos para combater naquelas terras quentes, de Sol inclemente, de chuvas torrenciais e trovoadas que nos deixavam calados e tementes do poder dos elementos. A quando de essas trovoadas, lembrava-me da minha avó Maria na sua casa na serra dos Candeeiros, metida na cama com as minhas tias a rezar a St Bárbara

Mas nós fomos combater em nome do passado e nunca em nome do futuro, porque nessas terras Portugal como potência administradora, tinha há muito os dias contados.

Num país sem liberdade de escolha nem de opinião, ou aceitávamos ir combater, ou tínhamos como destino certo, a prisão ou a fuga a salto para onde não chegasse o braço da polícia política.

A maioria de nós foi combater enchendo os navios transporte de tropas, com a esperança de uma vez regressados às nossas terras nos deixariam em paz. Não eramos convictos das razões porque íamos, grande parte não acreditávamos no que íamos fazer, embora com alguma curiosidade e espirito de aventura, contaríamos os dias que nos faltavam para regressar.

Encaramos a situação como um compasso de espera na nossa vida.

Valentia houve muita, coragem, abnegação, espirito de sacrifício, nunca poderemos pôr em causa, porque é possível ser valente mesmo sem uma razão válida para além de defender a própria vida e dos seus camaradas.

Paralelamente muitos também deixaram as suas terras, a sua vida de miséria, mal sabendo ler e escrever, largaram a enxada, o gado, ou um balde de massa, as suas mulheres, namoradas e a salto rumaram a outras terras. Esses de forma consciente, tiveram a coragem de afrontar a incerteza, os perigos da jornada e de serem presos para terem uma vida melhor. Esses procuraram o Futuro.

Sem talvez terem consciência disso, ajudaram com o seu esforço e as suas remessas de moeda forte, a prolongar a guerra e o regime que tão mal os tratara, a ponto de se irem embora procurar sustento e vida melhor.

Na verdade o que é que esses homens deviam  à Pátria?

O que é que a Pátria tinha feito por eles para lhes exigir a vida? Eram por acaso as nossas famílias que estavam em perigo? Eram as nossas aldeias e cidades a serem invadidas? Eram as riquezas dessas províncias ultramarinas, que lhes iam trazer o bem estar que até aí lhes tinha sido negado?

Mesmo assim, houve quem voltasse para fazer a tropa e ir combater pelo direito de poder voltar à sua terra. Outros, findas que foram as comissões, tiveram que emigrar, pois não tinham cá condições para viverem condignamente. Hoje há mais descendentes portugueses espalhados pelo Mundo dos que cá vivem.

Sabemos, hoje, que muitas organizações clandestinas defendiam a resistência ao regime. Enquanto umas defendiam que não se devia desertar a não ser que estivesse em risco a própria vida, outras que defendiam abertamente a deserção.

Pelo que entendo, umas pretendiam a implosão do Estado, utilizando as instituições vigentes, enquanto outras pretendiam que o fim do regime fosse atingido pela luta de fora para dentro.

Como se viu o objectivo foi atingido de dentro para fora, utilizando os militares que operavam nos três ramos das forças armadas, muitos ao nível de comando com larga experiência em combate, o que me faz parecer justíssima a primeira opção, não quero com isto tirar o valor a quem acreditava noutras vias.

Naquela madrugada, já os militares revoltosos estavam a caminho dos objectivos, bebia eu umas imperiais no café do Omar, um galego há muito radicado em Portugal (Ele brincando com o seu nome transformou-o em Roma). Era ali mesmo frente ao Mosteiro de Alcobaça, eu mais um amigo que cavaqueávamos sem nos apercebermos de nada. Tinha chegado há 20 dias da Guiné no Niassa e ir para a cama, era a última coisa que me apetecia tal era a ânsia de absorver o regresso. Três horas mais tarde a minha mãe entrava no meu quarto acordando-me com um misto de alegria e medo, “há uma revolução em Lisboa” disse ela.

O meu pai exultava e não tardaram a passar colunas militares a caminho das Caldas da Rainha, pois que, vencida a revolta de 16 de Março, esse quartel estava sem ligação.

Que inveja eu tive daqueles soldados, a maioria muito jovens sem qualquer experiência de combate, a quem tinha calhado a sorte de ajudar a derrubar a brigada do reumático, abrir as prisões e este país ao Mundo.

Depois regressaram muitos que de cá tinham fugido. Vieram de avião, de comboio e até de automóvel. Uns talvez filhos de “papás”, mas a grande maioria tinha hipotecado o seu futuro académico, os seus empregos, as suas famílias, a liberdade em nome de um ideal de justiça e bem estar, que se vivia nos países livres da guerra e repressão.

Todos ajudaram à formação de uma consciência colectiva para derrubar nesse dia o governo que subjugou este país 48 anos. Para trás ficaram perseguições, dezenas de anos de luta, centenas de anos de prisões, mortes, torturas e degredo.

Por causa desse dia os nossos filhos conheceram outra realidade que não a nossa, nem têm possivelmente consciência do que é não ter o que têm e que nós não tivemos:

(i) Assistência médica para todos, a quase erradicação da mortalidade infantil;

(ii) Só 13% dos alunos ultrapassavam a 4ª classe e havia milhares a não passar da 2ª e 3ª;

(iii) Liberdade dos presos políticos, fim do delito de opinião e eleições livres.

(iv) Democratizar, Desenvolver, Descolonizar.

Muito se fez, muito ficou por fazer mas 40 anos passados, apesar dos avanços e recuos nada se compara ao que tínhamos antes.

Muito se escreveu sobre o 25 de Abril, uns contra, outros a favor, mas a verdade é que todos podemos expressar a opinião e pela parte que me toca, é com muito orgulho que recordo e festejo esse dia luminoso, em que o verde azeitona das fardas ocupou Lisboa e a espingardas G3, se encheram de cravos vermelhos.

Um abraço a todos

Juvenal Amado
[ex-1.º Cabo Condutor Auto,
CCS/BCAÇ 3872,
Galomaro,
1971/74;
ex-empresário]

__________________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13001: 10º aniversário do nosso blogue (10): O baú das memórias já está muito rapado... mas ainda consegui uma foto, que diz muito: um abrigo no K3 (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421, Mansabá, 1965/67)

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro Juvenal Amado

Foi com grande prazer que mais uma vez li um escrito teu.
És um homem coerente.

Eu tinha regressado da Guiné há 3 meses, quando aconteceu o 25 de Abril.

Estava em Lisboa. Posso dizer que estive nos pontos nevrálgicos da Revolução:
-Testemunhei os acontecimentos da Praça do Comércio e a movimentação dos tanques (pró e contra) na Rua do Arsenal, a uma distância de menos de 100 metros. É claro que, na altura, sem saber bem o que se estava a passar e quem era quem.
-Estive no Largo do Carmo, onde assisti ao ultimatum que o Cap. Salgueiro Maia deu a Marcelo Caetano para se render (por megafone e depois acompanhado por algumas rajadas para a frontaria do Quartel do Carmo).
-Assisti às entradas e saídas de Sousa Tavares e de Feytor Pinto, que tentavam mediar a rendição.
-Até que...sim, assisti à saída do carro de combate com Marcelo Caetano no interior, a iniciar a viagem que o levaria até ao Brasil.

Não ficou por aqui o meu testemunho pessoal das incidências daquele dia, do dia 26e seguintes.
Naqueles dias, queiram ou não,fez-se HISTÓRIA.

Ainda hoje sinto alguma emoção ao recordar que fui testemunha "in loco" daqueles acontecimentos.

É por isso Juvenal, que quando dizes:
"(...é com muito orgulho que recordo e festejo esse dia luminoso, em que o verde azeitona das fardas ocupou Lisboa e as espingardas G3, se encheram de cravos vermelhos)", só posso dizer:
ESTOU CONTIGO!!!

Um abraço para ti, extensivo a todos os restantes camaradas.

José Vermelho


Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro camarigo Juvenal Amado

Belo texto de grande clareza e objectividade. Parabéns.

Comungo dos teus sentimentos e da tua visão histórica desse gesto libertador do 25 de Abril, forjado e caldeado nessa terra quente da Guiné, que nos marcou para sempre, mas com raízes nesse caminhar longo do nosso povo, sofredor e amordaçado, mas que pacientemente esperou e lutou até à aurora da liberdade.

Louvo todos esses homens e mulheres, muitos (a maioria) anónimos, que directamente se empenharam para mudar o rumo da história.

Para ti e para a Terúlia o meu abraço fraterno.

JLFernandes

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Juvenal, caríssimos camaradas da Guiné

Cheguei ontem do Japão, depois de Macau e Xangai. Mais um mês na deriva inteligente, creio, pelo meu Extremo Oriente. Tanto mundo para viver,tanta descoberta aos 67 anos, de longe, de perto, tanto Portugal para entender!

Deixo três citações de gente portuguesa, do melhor que temos, são Sofia de Mello Breyner, o Padre António Vieira e José Cardoso Pires:



Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
(…)
por isso não percas nunca o teu fervor mais austero
tua exigência de ti e por entre
espelhos deformantes e desastres e desvios
nem um momento só podes perder
a linha musical do encantamento
que é o teu sol, tua lua teu alimento.

Sofia de Mello Breyner


“Sem sair ninguém pode ser grande. (…) por isso nos deu Deus pouca terra para o nascimento e tantas outras para a sepultura; para nascer pouca terra, para morrer, toda a terra; para nascer Portugal, para morrer, o mundo.”

Padre António Vieira, Sermão sobre a fama de Santo António (13 de Junho de 1670)

Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a, de facto, e que remédio -- índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce, deixa de ser criança, fica logo com oito séculos.

José Cardoso Pires (1925-1998) em E agora, José? publicado em 1977.


Forte abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Caríssimo J. Amado,

Cordiais saudações.

Parabéns! Descrição objetiva.

Quanto aos juízos de valor, prefiro não fazê-los sobre os caminhos que cada um seguiu.

Acredito, que como disse Ortega y Gasset: " O homem é o homem, e suas circunstâncias".

O facto, é que os que não seguiram o nosso caminho, assumiram o controle das mentes em Portugal, eles são os "vencedores" e nós os "vencidos", e SEMPRE os vencedores escreveram a História, quase que ousaria dizer as histórias.

Quanto às verdades e mentiras, repetidas e amplificadas pela mídia, tornam-se ambas verdades (quase) absolutas.

Como sempre, mais tarde, alguém virá, e reescreverá a História, sem endeusar ou demonizar as partes.

forte abraço
Vasco Pires

Bispo1419 disse...

Bravo, meu caro Juvenal! Muitos parabéns!
E um obrigado pelo prazer e alguma emoção que me trouxe a leitura deste teu texto.
Um grande abraço
Manuel Joaquim