quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

1. Parte XXIV de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXIV

1 - Regresso, dois anos depois 

O Uíge zarpou à hora prevista. Tripulação civil e transporte de tropas com as comissões dadas por findas. Como era costume naqueles tempos, os oficiais e sargentos ficaram alojados em camarotes, as praças iam nos porões, lá em baixo. Repartia o compartimento com um alferes do QG, um camarada simpático e muito falador, daqueles que nem precisam de troco, só parava de falar quando adormecia e mesmo assim ouviu-o mais que uma vez durante o sono.


De farda verde emprestada para o jantar, com camaradas alferes e o capitão Silva Viegas1

Ao jantar, o comandante do navio2, com o comandante de bandeira ao lado na mesa, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas.

Óptimo, vai ser mais rápido. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, sozinho, a olhar para trás, luzes já muito longe, uma brisa fresca, sentia-se febril, olhos com água.

O que fizeste aqui, que levas na memória? Farim, o Tenente-Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um que caíra na emboscada em Sitató. As mãos e os nós dos dedos a martelarem, e o infeliz não dizia nada, que não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem a festa por terminada. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair para o mato lá para as cinco. Mande-os parar o batuque!

Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten-Coronel Cavaleiro lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, um cabo a espancar um nativo. A psico, que chatice, a dar passos para trás.

Dias depois, em Farim, o Ten-Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouviu-o dizer, não se bate nesta gente, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti, tu eras o responsável de serviço. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns tipos de G-3 na mão!

Custara-lhe ouvir, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e a ficar amigos, mais tarde.
Uma vez que foram lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, não podia ser, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier, em Maio de 65! Não pode ser. Mas era! Farrapos do saco do pão, a olharem para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado.

Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, as gargalhadas interrompidas com as boas-vindas do PAIGC, duas morteiradas a caírem-lhes em cima.

A bela mulata escura, de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara em 66, os dois sentados no alpendre da casa dela, a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo.

Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O capitão que conheceste em Bigene, todos os “rascas” com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, Tite, Xitole, Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até em ti encontraste um rasca, não uma vez, vezes demais.

O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, das nossas, de quem haviam de ser! Estou aqui há dez meses, conheço quase todos os calibres e formatos, estou habituado a ver disto, o médico feito legista para ele, no Hospital Militar. O Kássimo, o António Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a chutar.

O Matos, o miúdo do AN-PRC103 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro, a dizer que era porreiro, que não sentira nada.

O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem pedacinhos de metal e areia da cara, O Angola, um grande soldado, a saída prematura do Azevedo e a falta que fez.
E o Silva à procura da morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma aselhice sem remendo. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino com dedos de artista para a MG-424, capaz de desenhar numa parede a cara de um tipo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da aldeia do Silva a querer saber pormenores, a pedido da família. Que é que o padre quer que eu diga, meu capitão? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Adulai Jaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de altura e, pelo menos, três de valentia, o Bacar Jassi do caso de Barro, intelectual e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um tipo quadrado cheio de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato na Guiné, pá? É um azul invulgar, lá isso é, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar na Rua da Prata. O fato mudou de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado.

O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, “amor de Mãe e de fetura noiva” no braço tatuado pelo Albino. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, a moderar-lhe os ímpetos.

E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que o Ministro do Exército lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como é? Isso ainda mexe, tantos meses passados? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, acabada de sair. Vou falar com o Brigadeiro! Vais mas é o caralho, pá!

Os caminhos com que nos cruzámos, nós e os nossos Inimigos. As bolanhas, o sol a arder, as chuvadas que entravam quico dentro pelas nossas cabeças e que saíam em esguicho de torneira, camuflado abaixo, até pela pila, água misturada com urina e quando o sol rasgava secava e passava a ferro tudo num rápido. A nós e a eles, em campos opostos, num diálogo a tiro, à morteirada e à roquetada nos Jabadás, Guileges, Guidages e Gadamaeis, conversas repetidas vezes sem número e sem nunca chegarem a acordo.

Odiei esta guerra. Mas cumpri a missão de que me incumbiram e orgulho-me de ter servido nos Comandos. Não quis morrer de graça, nem que alguém morresse. O que tivesse de ser seria e se chegasse a minha vez confiava que nem dava por ela.

Nunca hei-de contar a ninguém o que aqui vivemos, tenho vergonha que me chamem mentiroso. E por mais anos que viva, estes tempos passados aqui chegaram-me. Dou a vida por cumprida. Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora.

Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo. As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, e agora, como vai ser, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento.
Não deveria ter ninguém à espera, não avisara ninguém. Numa correspondência cada vez mais esporádica com o conhecimento de Angra, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não?

Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que vou no Uíge. No dia em que entrara com a mala nova ao quarto, tinha uma carta dela. Que ia procurar saber a data da chegada do navio a Lisboa, contava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo.

Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou.


Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meterem águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água?
Nunca mais chego a Lisboa.


Metade de um dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio.

Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, clicks na Ricoh até acabar o rolo. Leva a máquina, tira umas fotos por mim, Black.


Mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez o navio em boa rota.


Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior a olhar para ele, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.

Dois anos! Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois.

Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente com roupas escuras, de inverno, algumas jovens e crianças também.

Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vais assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, não sentes? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo.

Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, uma moça lá em baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a rolarem pelas escadas.

Não vens? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, nem sequer quem eu queria.
Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria.

É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe, o meu menino, o choro pela cara abaixo, uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra, a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe com um sorriso, a dizer-lhe adeus.

Depois, a carrinha a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo.

Mataste muitos turras? Juntaste umas massas, não? Tinha perdido a fala, não sabia que dizer. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja, na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco de lã azul-escuro, calças cinzentas de flanela, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que as calças e o casaco eram de um número abaixo, pelo menos.
Enquanto almoçavam no Solmar, o olhar perdia-se pelo salão do restaurante, dois anos e tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No fim do almoço, Depósito de Adidos, um 1.º Sargento enfastiado disse-lhe que aguardasse. O que tiver que mandar envie pelo correio. Não demora, é só o tempo para lhe passar um papel para as mãos.

Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. alferes mil., indo domiciliar-se em, freguesia de, concelho de. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 19675. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais se na da madrinha no Porto.

Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico na avenida dos Aliados para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, escadas duas a duas a subir, ela a vir por ali abaixo e um abraço sem palavras. Vamos? Vamos.

Um dia frio de fins de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o aroma era o mesmo Lancôme, de há dois anos. Dois anos depois, quase tudo na mesma. O que é? Por que olhas assim para mim?

Ao lado dele, ela linda, de sobretudo azul-escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Atrix nas mãos dadas, rua de Santo António acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião.

Um embaraço, tanto tempo depois, não tinham nada para dizer. Por que não dizes nada? Mais perguntas, maior a dificuldade em falar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações, confusas, não despegavam. Bolanhas, camaradas, coladeras, cerveja, colunas de viaturas verdes, picar estradas, minas, tiros, terra vermelha a ferver, pés queimados, noites escuras e brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.
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Notas

1 - Chefe do Estado-Maior do Exército em Março de 2001
2 - Oficial da Marinha Mercante. Nesses navios de transporte de tropas ia sempre embarcado um Oficial da Armada, o Comandante de Bandeira
3 - Transmissor-receptor portátil de frequência modelada que equipava as forças terrestres e meios aéreos
4 - Metralhadora ligeira muito apreciada pelos nossos militares
5 - Data da passagem à disponibilidade

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2 - Tantos anos depois: por quê recordar? 

Estava reformado há dias, ainda não tinha passado a primeira semana.
Daqui fala o Sargento-Mor R. Fonseca, também estive nos Comandos em Angola, estou a contactá-lo porque faço parte de um grupo encarregado de proceder à recolha de toda a informação que houver sobre os Comandos. O seu nome tem-me aparecido aqui em relatórios de operações e numa série de documentos. Tenho contactado com várias pessoas que fizeram a guerra da Guiné consigo, o Sargento Mário Dias, o Furriel João Parreira, o Marcelino da Mata, o Vassalo Miranda e outros.

A razão do meu telefonema é saber se dispõe de alguma documentação desse tempo e que me possa ajudar a reconstituir a história dos Comandos. Dos anos mais recentes temos tudo, agora dos primeiros anos da formação dos Comandos, da chamada fase de grupos, falta-nos muita informação.

Que já tinham passado muitos anos, quase quarenta, que sim, que se lembra de ter trazido da Guiné alguma documentação e fotos, e que a deixara em casa do pai, no Minho. Que, quando lá fosse, procuraria o material que tinha trazido e se o encontrasse, pois teria muito gosto em o entregar ao Arquivo Militar.

Quando se voltou a sentar em frente ao computador, os olhos saltaram pela janela para o movimento da avenida. Por uns momentos, a cabeça andou para trás.

As guerras não têm muito que contar, são todas iguais, a história é sempre a mesma, tiros, granadas, feridos, mortos, estrondos, nuvens de pó a subirem, folhas de árvores a caírem, rebentamentos, chicotadas de balas, gritos de ataque e de dor. É sempre igual, só isto, não há muito mais a dizer.

Cadetes em formatura na parada da Academia Militar, Amadora, 1963. 

Fornadas de jovens arrancados ao trabalho e ao estudo, espalhados pelas Mafras e Taviras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos camarotes ou nos porões sujos e escuros dos Uíges e Niassas, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos, bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. As guerras são todas assim, Comos, Quirafos, Bubas, Madinas, Guidages, Guilejes, Gadamaeis, Xitoles, em toda a Guiné, foi tudo igual.
O que depressa se esqueceu foi o que se passou a seguir. O regresso, o esquecimento, o deles não, que muitos bem queriam mas não conseguiam. Até o sentimento de culpa por terem participado naquela guerra passou a viver com muitos deles.
E, valha a verdade, tudo foi feito para que vivessem assim, esquecidos. Para que aqueles jovens que deram o que tinham, se envergonhassem de terem defendido um governo colonialista. Foi o que Portugal lhes deu, interrompeu-lhes as vidas, ainda no começo, depois despacharam-nos com uma guia de marcha para as famílias, que tomassem conta deles.

Tempos depois, entrou no escritório que o pai tinha na casa, no norte. Olhou para a papelada acumulada, mais de quarenta anos de pó, do pai e dele. Gavetas para fora, virou-as ao contrário. Papéis amarelecidos, fotos daquele preto e branco com muitos anos.

Estava tudo mexido, alguém por ali tinha andado. Tudo fora da ordem, coisas misturadas, um papel com uns apontamentos à mão, numa letra de alguém que devia estar com uma pressa danada, uma data de Janeiro de 65, uma foto logo a seguir com quatro camaradas sorridentes, empoleirados numa barcaça de um navio, as fardas novinhas, ainda com os vincos a notarem-se nos calções, as pernas e os braços muito brancos, o sol a dar-lhes com um mar calmo à volta. E logo a seguir outra foto, com um deles a escorrer sangue que foi com certeza vermelho por uma daquelas pernas abaixo, 12 de Setembro de 65, granada, fulano de tal, nas traseiras da foto.
Há pretas bonitas aí onde estás? Dizem aqui que elas andam nas ruas sem soutien, já viste alguma, uma madrinha de guerra curiosa. Uma boina que já foi preta, um emblema de plástico, uma Playboy com a Marilyn na capa, as folhas da revista com sinais de muito uso, muitas mãos passaram por ali, pelo menos uma companhia inteira, capitão, corneteiros e tudo.

Um papel azul de 35 linhas, oficial, do Exército Português, DESPACHO, o título a meio, meia dúzia de linhas muito bem arrumadas, que é para aprenderes a respeitar a ordem pública. Mais uma foto, uma balanta, sorridente, uma cabaça com água na cabeça, as mãos a segurá-la, a água, sorridente também, a escorrer-lhe pelas mamas empinadas, mais apetitosas ainda.
Uma clareira, o sol a inundar a imagem, um pelotão em fila de pirilau, uns a olhar para o chão, outros para muito longe dali. Um relatório de operações, um ataque fulminante das NT desbaratou totalmente as forças IN que os emboscaram. Perseguidos pelo pelotão foram deixando para trás o material que abaixo se indica. E indicava-se. Uma granada de mão ofensiva, um porta-cartucheiras, cerca de 100 munições de vários calibres e mais material não especificado.
Uma carta de Bissau, uma foto com uma dedicatória, para te lembrares de mim.
E outra foto, numa mesa cheia de garrafas de cerveja um tipo com cara de sono, olhar morto, apalermado para a câmara.

E mais papéis. Outro documento do Exército, tão oficial como o outro, com o título a meio, PUNIÇÃO e mais uma série de linhas muito bem organizadas, letras a baterem certinhas, como se tivesse sido um desenhador a arrumá-las.

Meu filho, nesta altura que te escrevo já deves estar a fazer as malas para te vires embora. Embora ainda não, pai, há ainda muita tralha para pôr na ordem.

Outro documento do Exército, letras muito bem organizadas, o s também, sempre a insistir em querer ficar um pouco acima das outras letras, mas o título sempre a meio, LOUVOR do Comandante Militar. Não tarda e estás feito um militar como deve ser, se continuares assim ainda te espetam uma medalha, vais ver.

Escrevo-lhe esta para lhe dar conhecimento que o meu marido, o soldado tal do seu grupo deixou de me escrever, já não me manda uma carta vai para dois meses e meio. Eu sei que não lhe aconteceu mal nenhum porque as más notícias correm muito depressa. Peça por tudo ao meu marido que me escreva, por amor de quem lá tem, senhor alferes, que eu sei que é um homem direito.

Sabes de onde te estou a escrever? Na cama, com a televisão em frente, a ver o diário da volta, os ciclistas, serra da Estrela acima, com um calor que não imaginas. Fui sair depois do jantar, apanhar um pouco de fresco, encontrei o idiota do Pardal, não me larga nem por nada, não gostei da conversa, vim para casa. O calor, aqui dentro, pega-se. À falta de um balde de gelo onde eu coubesse, meti-me no chuveiro, e deixei-me estar com a água a correr até a mãe bater à porta. Nem roupa nem nada, estou assim, com o livro em cima dos joelhos, a servir de secretária e a escrever-te. Ainda te lembras do pôr-do-sol do Monte Brasil? E daquelas tardes loucas nos Biscoitos?

Ordem de serviço, abates à carga e ao efectivo, transferências, punições, louvores, comissões dadas por finda, prorrogações de comissão por mais um ano. Mais e mais fotos, uma cópia de uma operação, setas a vermelho e verde no croqui a papel vegetal. Não viemos por aqui. Que é que interessa agora se este croquis mente, se a entrada para o acampamento não foi por aí, mas sim pelo trilho que vem do Senegal?

Estojo, que é isto? A Star do pai, uma 6,35. Pegou nela, seis balas no carregador, a cor dos cartuchos, os projécteis dourados, como se tivessem saído ontem da fábrica! Veio-lhe à memória a jura que fizera a si próprio, ainda na Guiné, de nunca mais voltar a pegar numa arma.
Afinal os dois anos de há tantos anos ainda ali estavam. Uma data de horas a separar a papelada, cartas, fotografias, tanto tempo passado e parecia-lhe ter sido ontem. Vieram as recordações, uma, depois outra, uma catadupa a seguir e a Guiné a voltar à tona do charco.

No dia seguinte, no princípio de uma tarde de Janeiro, com a Star do pai no bolso do blusão, montou na bicicleta e foi pelo caminho fora, a caminho da Barca do Lago.

O areal imenso de há quarenta anos estava muito mais pequeno. Teria sido sempre assim ou os olhos já não eram os mesmos? Bicicleta encostada a um eucalipto, meteu-se pela areia fora, sentou-se em frente à casa dos Reids. Uma história infeliz nos meados dos anos 50 veio-lhe à lembrança. O dono daquela casa magnífica, nunca se soube porquê, metera uma bala na boca. Pegou na Star, esteve uns momentos a mirá-la, levantou-se e lançou-a, bem para o meio do rio. Sentado, uma tarde num instante, reviu a vida toda para trás, os rascas todos que conhecera, ele próprio. O Cávado, em frente, cheio de preguiça, sem vontade de se perder no mar.

Às 4 horas de uma tarde de Janeiro de 2005

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(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 27 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

9 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Virgínio Briote, Caríssimo

Estes é que são os grandes textos sobre as nossas guerras de África, a Guiné que nos calhou em sorte e destino.

Escritos com o sangue e o revoltear esfuziante, e sereno, da memória.

Abração, meu caro Amigo,

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

António, estou inteiramente de acordo contigo no que respeita ao "juízo literário" que fazes desta série, "Guiné, Ir e Voltar", e do seu autor, o nosso querido amigo e camarada (e editor "jubilado"...) Virgínio Briote...

Por razões de saúde, ele teve que ser poupado, em tempos, das tarefas (pesadas) de editor do blogue... Mas reapareceu, para nossa felicidade, com as suas memórias de alferes "comando" na Guiné, nos tempos do Com-chefe e governador geral Schulz...

Sem querer puxar dos galõe ou dos privilégios de fundador, editor e administrador deste blogue, acho que fui eu o primeiro a publicamente reconhecer a autenticidade, qualidade e singularidade da escrita do Virgínio...

Experiências humanas e operacionais como a dele, nos anos 1965/66, muitos de nós as tivemos, antes, durante e depois... Agora, poucos de nós é que temos o talento dele para as pôr em letra de forma...

Os textos do Vb merecem passar a livro... sob pena de "crime lesa-memória"!...É um dos nossos "autores" que eu, aqui no blogue, leio e releio com emoção e prazer...

Um abraço fraterno para ambos. Luis

Anónimo disse...

Sinto que me fez bem reescrever estas memórias. E fico grato, ao António Graça de Abreu, ao Luís Graça e a todos os Camaradas, por me terem acompanhado nesta comissão que vai fazer no próximo Janeiro 51 anos.
Respeito é o que sinto, também, pelos então jovens que entre 61 e 75 serviram as nossas Forças Armadas.
Um abraço a todos.

V Briote

José Botelho Colaço disse...

Para ler e reler o Briote além de ser um homem integro tem também a particularidade de transportar para o papel e quando escreve uma frase cria no leitor a curiosidade de ler o paragrafo seguinte.
Resumindo tem sido para mim um prazer ler Guiné ir e voltar.
Um abraço
Colaço.

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Nos comentários anteriores, está tudo dito.
Eu só posso acrescentar,
OBRIGADO!
JS

Luís Graça disse...

Escrevi aqui,há um ano e tal, que o nosso Vb temm "uma sensibilidade especial para recordar o passado, tentando em vão esquecê-lo"...

E lembrava aqui, também, as suas coordenadas de vida: (i) nosso coeditor (,jubilado por razões de saúde) ; (ii) nascido em Cascais; (iii) ex-alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (jan/mai 1965); (iv) frequenta, como voluntário, o 2º curso de Comandos do CTIG; (v) comanda o Grupo Diabólicos, da CCCmds do CTIG (Set 1965 / set 1966); (vi) regressa a casa em janeiro de 1967; (vii) trabalha numa multinacional da indústria farmacêutica; (viii) casado com a Maria Irene, professora do ensino secundário reformada; (ix) pai e avô...

E acrescente-se, sobretudo para conhecimento dos "piras" da Tabanca Grande:

(...) Durante os primeiros anos do nosso blogue, o Virgínio Briote foi um membro da nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como então lhe chamávamos), fidelíssimo, dedicado, empenhado, ativo, produtivo, ao mesmo tempo que ia produzindo e publicando textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas: as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas da Guiné...

Foi o retrato de uma geração que ele construiu , como um puzzle, a partir da sua experiência, como comando e como homem, no TO da Guiné, nos anos de 1965/67...

Tivemos pena que ele, posteriormente, tenha decidido desativar o seu blogue, Tantas Vidas. Mas, felizmente, que o Vb teve a grande generosidade, em parte por insistência minha e também de outros camaradas que seguiam o seu blogue, de retomar a escrita e de voltar a dar vida (e sobretudo um "fio condutor") aos seus textos do "Tantas Vidas"...

Fico feliz por esta série, "Guiné, ir e voltar", com que o Vb nos presenteou, e que muita honra o nosso blogue... Parafraseando um frase dele, o que o Vb fez foi o "espólio de guerra" de toda uma geração, a sua, a nossa...


Torcato Mendonca disse...


Para ti, camarada e amigo, vai o meu abração.

Continuo a enviar para a "Pasta" esta série. Devia ter sido mais organizado, com os teus textos do Tanta Vidas, e de outros nossos camaradas.(Escritos e fotos).

Vai um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Virgínio

Estou interessado em comprar as seguintes passagens deste post:

1 - A tatuagem: "Amor de mãe e fetura noiva";
2 - "Nunca hei-de contar a ninguém o que aqui vivemos, tenho vergonha que chamem mentiroso";
3 - "... reeditar a correspondência ao vivo";
4 - Em geral todo o texto sobre o espanto de, no regresso, estar, afinal, TUDO NA MESMA.

Estás interessado em vender? Por quanto?

Abraço
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Vb, as fotos que publicaste são "preciosas"... A da Academia Militar, c. 1963, já ta conhecia, e já a havíamos divulgado aqui no blogue... Mas as de Cabo Verde, ou mnelhor, Mindelo, ilha de São Vicente, merecem um destaque especial...

Reconheço o Monte Cara (nas duas primeiras) e o Ilhéu dos Pássaros (na última),além de uma rua "tipicamente portuguesa" do Mindelo.. O "meu velho" fez 26 meses no Mindelo, em 1941/43, e eu passei a minha infância a folhear o seu álbum... de tal maneira o usei que o desmembrei e restam-me hoje algumas escassas dezenas de fotos, amarelecidas, desbotadas, maltratadas...

Essas tuas imagens do Mindelo dizem-me muito, a mim e aos nossos amigos cabo-verdianos... Tens mais fotos desse tua rápida passagem pelo Mindelo ? Se sim, envia. De qualquer modo, vou fazer umn poste, com as tuas fotos do Mindelo, para a série "Memória dos lugares"... O Mindelo é um dos sítios do nosso imaginário... Eu nunca lá fui, quis lá com o meu velho em vida, mas a saúde dele não me deixou concretizar esse sonho... Foi já lá o meu filho, por nós os três... Ab. Luis