MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
8 - O Tanque
(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)
O Alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Bigene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos. Cerca de oito anos mais novo do que eu, o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade. Amigo desde o acampamento da Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora.
Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do Movimento Nacional Feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966.
O Almeida e eu pertencíamos à mesma Companhia. Eu como médico e ele como atirador, comandante de pelotão. Nos primeiros tempos da nossa comissão na guerra da Guiné, estivemos separados. Eu fui destacado para Canquelifá, perto da fronteira da Guiné-Conakry e ele esteve de intervenção durante algum tempo. Quando a Companhia se fixou em Bigene, já eu lá me encontrava.
Um avião fora buscar-me a Canquelifá para vir prestar assistência à última Companhia de farda branca que em breve regressaria à metrópole, sendo substituída por aquela em que estávamos integrados. De novo juntos, o Alferes Almeida e eu, programámos o nosso futuro no sentido de transformar os dias quentes (em sentido térmico e bélico) e incertos que se anteviam, nos melhores dias da nossa vida. Outra coisa não era de esperar do seu espírito folgazão e irrequieto, da sua grande alma de vinte anos.
E vivemos juntos acontecimentos fabulosos. Ele era todo patriota, à sua maneira. Cascava nos colonos, a cuja família pertencia, e gramava bestialmente os pretos. Mas soberania era soberania, e por isso alia estava para a defender. Ele lia, na altura, Morreram Pela Pátria de Mikail Cholokov. Eu lia Os Condenados da Terra de Frantz Fanon, que ele dizia ser a minha bíblia de anticolonialista subversivo. Penso, no entanto, que poucas pessoas gostaram tanto de mim como aquele moço.
Ajudou-me, quase sem querer, a conhecer as gentes e os costumes da Guiné, e contribuiu de forma sublime, ainda que um tanto inconsciente, para o maravilhoso entendimento do internacionalismo, do anti-racismo e da solidariedade entre os povos. Julgo que, se ele tivesse vivido até ao fim da comissão, deixaria de chamar turras aos guerrilheiros que o mataram.
Foi num dia em que eu me sentia muito triste. Talvez pelo falecimento da Sónia, na África do Sul, uma lindíssima amiguinha de vinte anos, que conheci em férias em Lisboa, e que me escrevia com muita ternura. O Almeida procurou animar-me, lembrando-me o chuveiro que havíamos improvisado a partir de um bidon e de um ralo de regador, e que borrifava sobre nós os mais belos minutos do dia.
Linhares de Almeida [foto à esquerda], quando ainda estudante do Liceu
Honório Barreto, em finais de 1959, princípios de 1960; terá nascido em
1942, em Bissau; aparece numa foto de grupo (14 elementos) do Liceu, identificado com o
n.º 2 como sendo o "Juca" - Carlos Linhares de Almeida (irmão do
'Banana')!...
A foto, sem data, é da autoria de Armindo do Grego Ferreira, Jr.
Cortesia do blogue NhaGente, de Amaro Ligeiro (**)
A foto, sem data, é da autoria de Armindo do Grego Ferreira, Jr.
Cortesia do blogue NhaGente, de Amaro Ligeiro (**)
Desta vez era um tanque, que construímos com uns restos de cimento encontrados numa arrecadação, e que iria proporcionar-nos, apesar da sua estreiteza de três metros por um, algumas deliciosas banhocas. A inauguração estava marcada para esse dia, e o Almeida, atrevido, imprudente como sempre e um tanto irresponsável, já se tinha deslocado sozinho a Barro, a fim de arranjar uma galinha que servisse de manjar no festejo. Barro era uma pequena aldeia nativa a onze quilómetros de distância, onde a Companhia mantinha um pelotão. Toda a estradeca estava minada e as emboscadas eram constantes. Mas o que é certo é que a galinha já estava do lado de cá.
A meio da madrugada o Almeida acordou-me:
- Já que não vens comigo fazer a patrulha, meu cobardesito de merda, fazes um bom xabéu com essa galinha para mereceres o mergulho no tanque.
Eu respondi-lhe:
- Tem mas é juizinho nessa bola, não te armes em herói, senão nem a galinha provas.
- Cobarde, um cobardesito é o que tu és, retorquiu ele sorridente, com um aceno amigo que nunca mais haveria de fazer.
Eram dez horas da manhã quando a nossa velha GMC irrompeu pela cerca de arame farpado, em correria demasiada para o seu velho e gasto motor, como se ela própria sentisse a tragédia que transportava no bojo: o corpo do Alferes Almeida crivado de balas dos pés à cabeça.
Puxei de um cigarro mas não consegui segurá-lo entre os dedos. E nunca tomei banho no tanque.
A única recordação dele, que hoje ainda mantenho, é o livro que tinha na mesinha de cabeceira: Morreram pela pátria.
2. Comentário do editor:
Pelos nossos registos, o Alferes Almeida desta história (verídica) é/era Carlos Manuel Sousa Linhares de Almeida, morto em combate em 1/4/67, em Bigene. Faz parte dos 75 alferes mortos no CTIG.
Vd. postes de:
24 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13938: Consultório militar, de José Martins (11): Quem foi o alf mil Linhares de Almeida, da CCAÇ 1547, morto em combate em 1/4/1967, e condecorado, a título póstumo, com a cruz de guerra de 2ª classe ?
e26 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13946: In Memoriam (208): Carlos Manuel Sousa Linhares de Almeida (Bissau, 1942 - Bigene, 1967), alf mil da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Fá Mandinga, Nova Lamego, Bula, Bigene, 1966/68), Juca para os amigos do Liceu Honório Barreto (Manuel Amante da Rosa / António Estácio)
____________
Nota do editor:
Último poste da série de 13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk
Nota do editor:
Último poste da série de 13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk
4 comentários:
Meu caro Adão Cruz, é uma belíssima homenagem a um camarada que morreu em combate, e do qual só temos uma foto de adolescente... Aqui tens mais dados sobre ele... Como vês, o Mundo e Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande.
E viva o Google que faz hoje 18 anos!...Termos como "googlar" / "guglar" já vêm grafados nos nossos dicionários....
googlar
goo.glar ɡuˈɡlar
conjugação
verbo transitivo e intransitivo
pesquisar (palavra, expressão) na internet utilizando o motor de busca Google
Do inglês Google®+-ar, pelo verbo inglês to google, «idem»
Como referenciar: googlar in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-09-27 22:34:44]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/googlar
"Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do Movimento Nacional Feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966." (Adão Cruz)...
Pois é, até então graça, meu caro doutor e camarada... Olha que eu também nunca encontrei, quer na tropa quer na guerra, nenhum dos tais "filhos dos ricos e patriotas da situação"... Se calhar, tu e eu andávamos distraídos... Mantenhas. LG
Quando foi de Alcácer Quibir, lemos que foi para lá a fina flor e lá ficou, o país perdeu-se, ficou nas mãos dos Filipes.
Agora com essa lição, resguardou-se a fina flor, para salvar o país e governá-lo, quando o velho regime fosse deportado.
Aprendemos a lição!
Agradeço muito as fotos acrescentadas ao texto, sobretudo a do alferes Almeida ainda mais puto. Tinha apena uma fotografia dele e com ele, e lamentavelmente perdi-a, o que me desgostou muito. Um dia disseram-me que o seus restos mortais foram trasladados para o cemitério de Constância. Fui lá, corri o cemitério campa a campa, mas nada encontrei. Mais tarde soube que isso era balela, uma boca qualquer que alguém lançou no ar.
Uma vez mais muito grato e um abraço
Adão Cruz
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