Com a devida vénia: Portal Vortex > História: 15 fantásticas curiosidades sobre o 25 de Abril de 1974
O meu 25 de Abril de 1974
Trabalhava e morava durante a semana em Lisboa. Era solteiro e bom rapaz. Tinha um quarto em casa de familiar na Avenida 24 de Julho, no n.º 1, mesmo em frente à Estação do Cais do Sodré. Era empregado bancário no Crédito Predial Português, na sua sede, na Rua Augusta. Levantava-me sempre cedo, e dava para ir a pé até ao serviço, uma vez que só entrava às 9 horas.
Naquele dia 25 de Abril de 1974 tudo estava programado para ser um dia igual a tantos outros. Era quinta-feira, mas nesse dia, bem cedo ainda, a vizinha do lado bateu com muita força à porta a dizer que havia uma revolução. Nem tomei banho. Enfiei umas calças, vesti uma camisa e vim para a janela armado com o rádio, que era inseparável desde o 16 de Março, e com os binóculos.
Daquela janela via-se o Tejo todo desde o Terreiro do Paço, desde o Mar da Palha, desde o Seixal até à Trafaria. O rádio, aquele transístor pequeno Sharp, transmitia música portuguesa. Era o Rancho Tá-Mar da Nazaré, lembro-me bem. Pego nos binóculos e vejo nitidamente carros de combate, ali para Santos a descerem a Avenida, apoiados por tropas apeadas. Vêm descendo vagarosamente. A Rádio transmite aquilo que foi para mim, o 1.º Comunicado do Movimento das Forças Armadas a anunciar a movimentação das tropas, a pedir para que as pessoas não saíssem de casa, a pedir às forças de segurança para não se envolverem com os militares, a pedir para que os médicos se dirigissem para os hospitais, etc., etc.
Começo a compreender a situação. Sinto-me encantado mas preocupado com o que podia vir a acontecer. Não sabia ainda se as forças que vinham a descer a avenida se eram a favor ou contra o Movimento. Mesmo descendo vagarosamente a Avenida, os tanques aproximam-se. Com os binóculos que ajudam a ver bem, verifico que alguns eram de Cavalaria 7, ali na Ajuda. Mas alguns eram de Cavalaria 4, de Santa Margarida, que depois do 16 de Março tinham ido reforçar Cavalaria 7, como vim a saber depois.
O Tejo estava cheio de barcos de guerra. Era uma Esquadra da NATO que andava pelo Atlântico em manobras e que dias antes tinha aportado ao Tejo. Curiosamente, esta esquadra só zarpou do Tejo depois da revolução estar consolidada. Vá-se lá saber porquê. Passados que são trinta e seis anos nunca me apercebi que qualquer historiador se tenha debruçado sobre este pormenor que até poderia ter sido... pormaior.
As tropas apeadas tomam posição na Estação do Cais do Sodré. Os comboios vão despejando pessoas na gare. Os barcos de Cacilhas despejam também os seus passageiros. Tudo com ar de admiração. Ninguém sabia o que estava a acontecer. Muitos iam apanhar os autocarros para os seus destinos. Os carros de combate passam e dirigem-se para o Terreiro do Paço. Acabo de me vestir, faço a barba à pressa, como qualquer coisa e vou para a rua para ir para o Banco.
A meio da Rua do Arsenal, oiço alguns tiros. Eu e muita gente que ia na rua entrámos na primeira porta que estava aberta. Alguns foram até ao segundo andar de um prédio escuro, ali perto do Rei do Bacalhau. Senti bem o cheiro da pólvora que me fez lembrar um célebre dia 13 de Junho de 1969 em Bissau. Como não se ouvissem mais tiros, dei meia volta e resolvi voltar para trás. Aliás a rádio já tinha avisado para as pessoas se manterem calmas, mas em casa.
Antes de subir ao meu quarto andar, fui à mercearia do Coutinho, ali na Travessa dos Remolares, procurar mantimentos. Ali ao lado, nas traseiras do Mercado da Ribeira, na Rua dos Remolares, estava uma coluna enorme de jipes da GNR armados com as Mausers, e se calhar com outro armamento mais pesado mas não à vista, todos de capacete na cabeça e parados. Estavam à espera de ordens. Se calhar, pensei eu, estavam do contra e pretendiam ir reforçar alguma posição, talvez no Carmo, uma vez que a Rua do Alecrim, ali perto lhes daria acesso fácil. Mas não liguei muito. Aliás não podia ligar.
A minha preocupação naquela altura era só os mantimentos e já seriam umas 10,30. Não havia tempo a perder. Na mercearia já não havia pão mas havia vários fregueses. Comprei bolachas de água e sal, um garrafão de água do Luso, daqueles de vidro daquela altura, umas latas de sardinha, de atum e salsichas, velas, fósforos e pilhas para o rádio. O rádio tinha que estar em condições de trabalhar sempre. Em casa ainda havia batatas, arroz, massa e azeite, Tudo aquilo sempre daria para se fazerem umas refeições de subsistência porque em tempo de guerra não se limpam armas.
Mas eu queria telefonar para Torres Novas e para Alcanena. Mas onde, se em casa não havia telefone? A minha tia lá arranjou um almoço catita e lá continuámos a ouvir a rádio com comunicados mais ou menos calmos mas a denotar que nem tudo ainda estava resolvido. Televisão não havia. O reviralho parecia estar prestes a chegar.
Da minha janela privilegiada começo a ver a Esquadra da NATO a zarpar do Tejo. Ficou só uma Fragata, nossa, que também estava integrada na Esquadra mas ficou. Foi essa Fragata que, ainda de manhã cedo, teve um papel preponderante na revolução quando não cumpriu a ordem de atirar fogo para o Terreiro do Paço, segundo depois se soube. Se isso tivesse acontecido teria havido uma carnificina. Mas a Fragata também sofreria as consequências das peças de Artilharia da Escola de Vendas Novas que estavam posicionadas no Cristo Rei. Foi melhor assim.
De tarde, a meio da tarde, talvez lá para as 4, procurei ir aos Correios, ali à Praça de D. Luís, para telefonar. Foi nessa altura, soube mais tarde, que houve confrontos junto à sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso. Ainda conseguiram matar um popular e ferir mais alguns. Ouvi as balas a assobiar a passar lá muito por cima. Voltei a entrar numa porta que estava aberta e não fui sozinho.
Depois as coisas acalmaram, certamente quando a Marinha conseguiu tomar aquilo de assalto.
Ainda fiz os telefonemas e todos ficámos mais descansados. Quando ia para casa, ali junto, na Praça Duque da Terceira, vejo que a Rua do Alecrim estava cheia de carros de bombeiros certamente para combater algum incêndio que a PIDE pudesse vir a provocar.
Lá fui continuando a ouvir a rádio. Fala-se do Quartel do Carmo. Pensei que os outros GNR talvez estivessem a caminho do seu Quartel-general para reforçar posições. Mas não conseguiram atingir o objectivo uma vez que as tropas do Salgueiro Maia, depois da consolidação do Terreiro do Paço, tinham ido lá para cima onde estava refugiado o Marcelo Caetano.
Depois, depois foi aquilo que já se sabe. À noite, na casa da vizinha do lado, lá vi o Spínola a fazer o seu comunicado ao país, ladeado pelos restantes membros da Junta de Salvação Nacional.
Foi assim o meu dia 25 de Abril de 1974. Estávamos num país novo.
Carlos Pinheiro
23.04.10 (Passados 36 anos)
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15804: No 25 de abril eu estava em... (26): Turquel, Alcobaça, de férias... Vim logo para Lisboa nesse dia e por aqui permaneci, até regressar a Bissau, em 3 de maio (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)
6 comentários:
A fotografia, aqui apresentada, nem parece que foi tirada no dia de uma revolução.
Tropa a poisar prá foto, pessoas interessadas em ver as águas poluídas do Tejo, um mini carro de combate é dum dia, sem que pareça, que iria por fim à guerra na Guiné.
E não só.
Valdemar Queiroz
Carlos, tinhas este teu texto guardado no computador... e não dizias nada. São estes testemunhos, na primeira pessoa do singular, que precisamos aqui, no nosso blogue. Não são opiniões ou especulações, é como se fosse uma folha do teu diário: quinta-feira, 25 de abril de 1974...
Esta série ("No 25 de Abril eu estava em..."), há dois anos que não era ativada... E, no entanto, toda a gente tem uma história para contar... Todos nós estávamos algures, próximos ou afastados dos acontecimentos.
Obrigado por enriqueceres esta série... É difícil falar deste dia como tu o fizeste: de maneira assertiva, relatando os acontecimentos, a partir da tua "janela" ou da tua "rua"... Apreciei, particularmente, o teu estilo, cingindo-te aos factos que viste, de perto ou de binóculos...
Eu nunca poderia escrever este texto: estava em Mafra, a trabalhar no "convento"... Mas não aconteceu nada de "importante", localmente, nesse dia, que eu me tenha apercebido... A maior parte das decisões e ações que ocorreram nesse dia, escaparam-nos... Valeram-nos alguns fotojornalistas, como o Alfredo Cunha e o Eduardo Gagiro, dois nomes grandes da fotografia portuguesa, que estiveram em cima dos "acontecimentos"... A foto que o nosso editor Carlos Vinhal publica, será de alguns deles ?
Um abraço e até ao dia 25 de maio de 2019,l em Monte Real. Luís Graça
Não são dois anos, são três anos... o último poste da série é de 2016, da autoria do Jorge Pinto... Sei que é cada vez mais difícil pedir à malta para fazer um "esforço de memória"... De qualquer modo, os 27 testemeunhos que até agora publicámos são valiosos... Alguns de nós ainda estavam na guerra, outros iam a caminho, mas a maior de parte de nós já estava na "peluda", longe da guerra e das preocupações de quem lá estava...
Falo por mim: não escondo que, desde o meu regresso, em março de 1971, tentei "desligar-me" completamente do que se passava no teatro de operações... De resto, pouco ou nada se falava da guerra... O sentimento, se calhar, da generalidade dos ex-combatentes era este: "Já dei para esse peditório... E o último que feche a porta!"...
Egoísmo atroz, dirão alguns. Défice de patriotismo, dirão outros... Eu pensoq que isso acontece em todas as guerras, quem as fez e sobreviveu, está-se c... para os lá ficaram, a revezá-los... Vejam-se as nossas cantilenas a gozar com os desgraçados dos "periquitos"...
Esta "anomia" tem, no nosso caso, um grande significado: não sei se há guerras "populares", duvido, a "guerra do ultramar", essa, nunca o foi, a não ser talvez em Angola, em 1961...
È a minha leitura, pessoal... Vale o que vale. LG
Como não sou um fã do 25A, vou apenas comentar o seguinte:
Claro que não foi num dia de revolução!
Foi um golpe de estado, tipo palaciano!
Para ser uma revolução teriam de haver muitos mortos e feridos, milhares deles...
E não houve sequer tiros, pois a maior parte das tropas dos quartéis, não tinha sequer balas nas armas, isto talvez ninguém saiba.
Se alguém mandasse uma ou duas granadas para cima da Chaimite - Do Herói Nacional -, era tudo um caos, e inicio de uma revolução a sério, e então iamos ver onde estavam os verdadeiros combatentes e herois da revolução, dita, dos cravos...
Posso ter a minha opinião certo?
Respeito todas as outras, não quer dizer que concorde.
Eu estava calmamente a trabalhar na fábrica de Vila do Conde, e pelas 11 horas da manhã, quando me telefonaram, eu liguei logo para o meu pai para Bissau e dei-lhe a noticia em primeira mão.
Depois, passado uma ou duas horas, os Suecos, donos e técnicos da fábrica, (A Suécia era um dos principais financiadores do PAIGC), fugiram todos para Espanha, que nem ratos...
Voltaram uns dias depois.
Virgilio Teixeira
Por vezes aparecem novas versões deste acontecimento.
Há dias apareceu a versão dos 'fanatics' do poderoso lóbi das armas e explosivos, por de ter sido preterido pelo naif lóbi dos floricultores.
Entendo que esta versão vem do lado dos 'senti...ópe', que continuam a arranjar estafadas e ridículas desculpas da repaqueca que levaram e lançam a 'fake news' de que não se tratou, verdadeiramente, de um acto ou efeito revolucionário para causar mudanças no nosso país.
Valdemar Queiroz
A versão deste funesto acontecimento, só pode ser esta, tudo o resto são histórias dos famosos livrinhos de banda desenhada ' O Mundo de Aventuras' o 'Condor' o 'Fantasma' e outros.
Não adianta bater na mesma tecla, vamos ver se o país ainda existe para celebrar os 50 anos da 'QUEDA DO IMPÉRIO!'
Virgilio Teixeira
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