sexta-feira, 3 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19739: Notas de leitura (1174): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Digamos que até agora Santos Andrade tomou comboio e foi para a recruta, diz ter penado em Mafra e Estremoz, aqui formou companhia, queixa-se da alimentação, uma grande fomeca, agora a sua história do BCAV 490 já ganhou sentido coletivo, chegara a hora da abalada, tudo se vai passar na gare marítima, ou em Alcântara ou na Rocha da Conde de Óbidos, uma cenografia de dor com lágrimas e lenços brancos.
É uma temática que provoca uma atração irresistível a muitos autores, é compreensível, trata-se de uma viagem inigualável, as praças no porão, oficiais e sargentos com direito a beliches e refeições à mesa.
Simbolicamente, desatara-se o nó aos veios familiares, todos os embarcados caminham para um destino, vai florescer um sentido coletivo, o viver aquartelado, as expetativas da picada, o soco do estômago da emboscada. Aquela viagem de barco desata mas ainda não ata, de um modo geral, é com aqueles que vão junto de nós que se passará a missão ou a comissão, as relações mudam, estamos cada vez mais próximos uns dos outros, até chegar à estufa da Guiné.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (4)

Beja Santos

“Missão Cumprida”, de Santos Andrade, é a história em verso do BCAV 490. Foi composto e impresso na Tipografia das Missões, Guiné Portuguesa, em julho de 1965. Ficou insatisfeito com tudo quanto se passou em Mafra, com a sua comida intragável. Temo-lo agora em Estremoz, veio formar companhia, não esconde sofrimentos e amarguras, até ao embarque:

“Cheguei ao campo de Estremoz
Já estava mobilizado
e penei muito nesse verão
para ser bem preparado.

Entrei no aquartelamento
e nem sequer aqueci lugar:
tive logo de abalar
para outro acampamento.
Deram-me todo o equipamento
e um prato de feijão com arroz.
UMA GMC se pôs
a caminhar pela estrada fora,
e em pouco mais de um quarto de hora
cheguei ao campo de Estremoz.

Foi ao pé de uma tapada
que nós viemos acampar
onde nos íamos lavar
todos os dias de madrugada.
A água estava estragada
de se urinar por todo o lado.
Eu como era soldado
isso tudo também fazia
e como de certo sabia
já estava mobilizado.

Aqui nesta cavalaria
Fiz coisas que eu não supunha.
O Tenente Roque da Cunha
era o comandante da Companhia
Fez-nos andar com uma Bateria
e uma unidade de alimentação.
Foi nas vésperas de S. João
Que eu sofri essa amargura.
No pé fiz uma ranhura
E penei muito nesse verão.

Quando o Tenente falava,
já ninguém mais se mexia,
contra ele não se piava
e ele não se importava
de tudo andar estafado.
O homem é arrojado
Como ele não deve haver.
Eu fartei-me de sofrer
para ser bem preparado.

Hei de voltar qualquer dia,
está na hora da partida
O barco deu três apitos
para fazer a despedida.”

Vamos hoje despedir-nos de “O Pé na Paisagem”, de Filipe Leandro Martins. Ele vai para Tavira, chegara a hora da especialidade:  
“A cidade cheirava a podre, o bafo das salinas abandonadas permanecia sobre as ruas e as casas e, quando havia nevoeiro, baixava ao nível do chão, atravessava as portas e instalava-se connosco dentro das roupas. E foi assim mesmo, bafejante, que a cidade algarvia nos recebeu quando saltámos da Berliet para o empedrado escorregadio em frente do quartel de portões cerrados àquela hora”.

Deixa-nos igualmente um belo texto sobre as botas engraxadas, não tem igual:  
“Os dois pares que tínhamos iam sempre brilhar nas formaturas, nas revistas, nas chamadas. Quando as recebíamos elas vinham tão grosseiras que era difícil amaciar-lhes o pelo, bebiam frascos de tinta e latas de graxa, aguentavam escovadelas dementes, duras de roer. Alguns havia que passam o fim de semana a dar-lhes pomada e a queimar-lhes o pelo e mandavam-nas ao sapateiro para sofrerem tratamentos de especialista. Outros passavam o dia à volta dos dois pares, sentados no chão. Eram engraxadores de coração, a graxa entrara-lhes na alma através dos dedos, o prazer que tinham era mirarem-se no espelho das botas. A bota do miliciano, passados os meses do curso, brilhava que era um regalo, impermeabilizada por camadas sucessivas de graxa negra, aguentava poeira, água, lama, era impossível esfolá-la e para limpá-la de uma marcha através de salinas bastava regá-la com a mangueira das cozinhas para pô-la de novo cintilante. O couro selvagem da bota fora domesticado”.

O autor, já cabo-miliciano, vai formar batalhão, dão entrada os oficiais e os furriéis, e depois chega a hora de entrarem as praças às fornadas:  
“Chegaram então. Vimo-los, pequenos e alegres, vivaços quase todos e habituados à tropa por três meses passados num velho quartel do norte e eles eram quase todas das Beiras e de Trás-Os-Montes, arrancados à montanha onde a vida os ensinara desde os primeiros anos à frugalidade e à dureza da servidão no trabalho, habituados a espantar os medos das encruzilhadas, de varapau em riste, vimo-los chegar, invadir a parada e as casernas, encher de som o nosso mundo que tomara entretanto a paz da rotina. Mas eles não vinham importunar, embora nos preocupasse um pouco a perspectiva de levantar de novo todos os dias de manhã para as formaturas, os exercícios todos os dias, aulas, trabalho. A novidade que traziam, porém, apagava essas apreensões e dispusemo-nos a ajudar a distribuí-los pelas novas companhias.
No fim da instrução levávamos a maralha ao banho, uma tortura para grande parte dos que sabiam apenas encharcar a cabeça de água, molhar abundantemente os braços, lavar-se assim tradicionalmente, soprar a água, sacudir os pingos no ar da manhã. Havia os que tinham vergonha, apareciam de calção de banho, tomavam duche de cuecas, os que riam e apontavam as pichas dos outros, os que gritavam quando a água os apanhava em cheio e tínhamos de empurrar para debaixo do chuveiro e se zangavam, ensaboando finalmente o desespero e as lágrimas com sabão azul e branco. À noite, a caserna deles, silenciosa na treva espessa, não desistia de transpirar o pivete entranhado nas roupas por entre os corpos que descansavam”.


Tomemos agora como referência a obra de João de Melo “Os Anos da Guerra”, que teve duas edições, uma do Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, em 1988, e outra posterior, também de Publicações Dom Quixote, a edição Dom Quixote trazia apresentações de Joaquim Vieira.
Em termos antológicos, ir-se-á falar da gare marítima de Alcântara, mas antes dá-se espaço à preparação militar, ali surge a esplêndida obra de Filipe Leandro Martins, a instrução tirada de um livro de Álvaro Guerra, também a preparação em termos quase surrealistas de um livro de José Martins Garcia, agora estamos na gare marítima, e deixamos para o próximo número um belo trecho de Álamo Oliveira extraído do seu livro “Até Hoje (Memória de Cão) ”, de 1987, assim se procura acompanhar Santos Andrade a par e passo.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 26 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19719: Notas de leitura (1172): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19728: Notas de leitura (1173): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (3) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, temos que apurar uma coisa: o cais dos navios das carreiras insulares e ultramarinas era sempre o Cais da Rocha Conde de Óbidos...O de Alcântara era para as carreiras internacionais... Verdade ?... A malta confunde muito as duas estações marítimas...

Isto não quer dizer que o cais de Alcântara não tenha sido utilizado, esporadicamente, pelos navios de transporte de tropas... Um abraço, Luís

Valdemar Silva disse...

Luis
A minha CART 2479 partiu de Cais de Alcântara.
Num dia chuvoso e frio viemos de comboio de Espinho directamente para o Cais de Alcântara.
Consta assim na História da Unidade:
EMBARQUE
às 24 horas do mesmo dia (17-2-1969) a Unidade embarcou em Espinho em comboio especial que a levou até ao Cais de Alcântara onde logo começaram os preparativos de embarque. Mais uma vez o frio e a chuva estavam presentes o que impediu que a Companhia tivesse desfilado em Lisboa.
às 12 horas de 18 de Fevereiro parte o Navio 'TIMOR' com destino à província da Guiné, tendo feito escala no Funchal.

Como curiosidade, nós a chegarmos todos desolados e, ao mesmo tempo, alguns marujos brasileiros a chegarem todos contentes a cantar e a sambar ao seu navio de guerra acostado no mesmo Cais. Era terça-feira de carnaval.

Ab.
Valdemar Queiroz