terça-feira, 3 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22429: In Memoriam (402): 1.º Cabo Miliciano Fernando Pacheco dos Santos, da CART 2673, caído em combate, em Empada, no dia 7 de Julho de 1970 (Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf)

1. O nosso camarada e novo tertuliano Juvenal Danado[*], ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71) presta aqui homenagem ao seu amigo Fernando Pacheco dos Santos, ex-1.º Cabo Miliciano da CART 2673[**] (Empada e Brá, 1970/71), morto em combate no dia 7 de Julho de 1970.


Um herói de Troino

Venho falar de juventude sacrificada na Guerra Colonial, de heróis que pagaram o cumprimento de deveres a que foram obrigados ou para que se ofereceram, com o mais elevado dos sacrifícios, o sacrifício da vida. Fernando Pacheco dos Santos, setubalense de Troino (bairro de Setúbal) morto em combate na Guiné-Bissau, é um desses lídimos heróis.

Encontrei-o em Nhala, sul da Guiné, uma aldeia onde estava sediada uma companhia do meu batalhão. Por se situar numa zona difícil, a unidade era reforçada com pelotões que vinham de outras companhias do setor. Cada grupo de combate permanecia ali umas semanas, ocupando-se em patrulhas e emboscadas, sendo depois rendido por outro.

Fui pra lá com quatro rapazes do meu pelotão, para construirmos a rede de arame farpado em torno da aldeia – os postes, a rede e os cavalos de frisa estavam a desfazer-se, e havia o perigo de um assalto do inimigo, o que acontecera numa comissão anterior. O Fernando era 1.º Cabo-Miliciano (estranho, dado que todos os cabos milicianos eram promovidos a furriéis quando eram mobilizados – não me recordo se chegámos a falar sobre o assunto) de um grupo de combate de Empada, povoação a cerca de trinta quilómetros. Conhecíamo-nos da Escola Industrial e Comercial, mas a lidação era pouca. No entanto foi quanto bastou para nos abraçarmos como grandes amigos e confraternizarmos quando foi possível, falando das "nossas guerras" e, inevitavelmente, de Setúbal, da Escola e do Vitória, das praias e da sardinha assada, da família e dos amores, dos medos, das saudades que amargavam tanto.

A guerra dele decorrera até então sem grandes sobressaltos. Além disso, a região de Empada era farta em animais de abate, caça, peixe (do Rio Grande de Buba, ali à mão), hortícolas, uma abundância contrastante com as penúrias da Guiné, o que permitia comerem bem no quartel – coisa que não acontecia em Nhala. Era em Empada que o Fernando se sentia bem, e estava desejando de abalar – considerava Nhala um sítio muito perigoso, e era, de facto, além de detestar as misérias do rancho.

Na manhã em que o Pacheco regressou à sua unidade, desejámos um ao outro as maiores felicidades para o tempo que faltava cumprir, e que não era pouco, nos dois casos. E ele, meio a brincar, meio a sério, incitou-me a acabar a rede de arame farpado o mais breve possível, para me "raspar dali" com os meus homens.

Pouco tempo após o regresso a Empada, o pelotão do Pacheco saiu uma vez mais para o mato. Passo a descrever o que me foi relatado pelo comandante do pelotão, o aspirante a oficial miliciano (também não sei dizer porquê, uma vez que deveria ser alferes) Agostinho Correia Silva, numa viagem de avioneta que fizemos de Aldeia Formosa, o meu aquartelamento, até Bissau.
Itinerário onde ocorreu o encontro entre os nossos militares e o PAIGC que levou à morte o 1º Cabo Mil Fernando Pacheco dos Santos entre outros nossos camaradas.

Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta de Empada, 1:50.000

Emboscados, viram surgir um numeroso grupo inimigo. Travou-se o combate, com muitas baixas do nosso lado, logo aos primeiros disparos e rebentamentos. Capazes de combater, restaram uns poucos, entre eles o aspirante, com ferimento ligeiro. Aguentaram sucessivas investidas dos guerrilheiros. Valeu-lhes não terem sido todos mortos ou levados, o socorro que entretanto chegou do quartel. No final, os nossos sofreram 7 mortos[***], 8 feridos graves e três ligeiros. O comandante de pelotão, apercebendo-se de que o Pacheco estava ferido, ordenou ao enfermeiro que o socorresse.

O meu amigo, ferido por um estilhaço numa virilha, rejeitou tratamento, garantindo que aguentava e que outros estavam mais necessitados de ajuda do que ele. Pouco tempo passado, porém, chamou o aspirante e, numa grande aflição, pôs-se a dizer-lhe: "Eh, pá, vou morrer! Vou morrer!". O oficial desviou-lhe a mão que ele tinha sobre o ferimento e viu como o sangue brotava da artéria. Daí a nada, o Pacheco morria-lhe nos braços. Aos 22 anos, caía a tarde de 7 de julho de 1970.

Fiquei deveras consternado quando soube. Parecia-me mentira que aquilo tivesse acontecido ao Fernando Pacheco, a ele, que me confessara, há duas ou três semanas, ter medo de estar em Nhala e desejar o regresso "ao céu", como chamava a Empada.

Aqui lhe presto a minha singela, mas muito magoada homenagem, alargando-a aos outros 8 rapazes que frequentaram a Escola Industrial e Comercial de Setúbal, aos 38 do concelho, aos 199 do distrito e aos quase 9000 que perderam a vida na Guerra Colonial.

Até sempre, amigo Fernando Pacheco! Repousem em paz, companheiros!

Memorial existente no átrio da entrada principal da antiga Escola Industrial e Comercial de Setúbal. O Fernando Pacheco dos Santos é referido como furriel miliciano, posto a que terá sido promovido postumamente.

Brasão da Companhia de Artilharia 2673, unidade do Fernando Pacheco dos Santos
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Fontes utilizadas, com os devidos agradecimentos:
- Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné – publicações do ex-furriel miliciano e ex-combatente José Marcelino Martins;
- Portal UTW Dos Veteranos da Guerra do Ultramar;
- Núcleo da Liga dos Combatentes de Setúbal;
- Caderno da edição do jornal «Expresso» de 30/04/1994.
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22428: Tabanca Grande (524): Juvenal José Cordeiro Danado, ex-Fur Mil Sapador de Inf da CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 847

[**] - Vd poste de 12 DE JUNHO DE 2010 > Guiné 63/74 – P6581: Fichas de Unidades (7): Companhia de Artilharia 2673 - CART 2673 (José Martins)

[***] - Foram estes os militares mortos na emboscada de 7 de Julho de 1970:
- 1º Cabo At Agostinho do Vale Almeida (Seia)
- Sold Mil Ansumane Jaló (Cacheu)
- Sold Mil Ansumane Mané (Fulacunda)
- Sold At Ercílio da Silva Medeiros (Odemira)
- 1º Cabo Mil Fernando Pacheco dos Santos (Setúbal)
- Sold At José Constantino Gonçalo (Caldas da Rainha)
- CMDT Sec Mil Malan Cassamá (Fulacunda)

Último poste da série de 27 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22409: In Memoriam (401): Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho (1936-2021), com quem trabalhei lado a jado e fiz amizade, em 1971, na Rep ACAP, no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura (Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, e hoje médico)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Realmente é esquisita a situação do Cabo miliciano e do Aspirante a oficial não terem sido promovidos quando embarcaram.
Será que tinham algum castigo disciplinar que lhes atrasou a promoção? Ou o castigo era para ficar sempre naquele posto?

O resto é mais um testemunho para que todos saibam o que que foi a guerra na Guiné

Abraços
Valdemar Queiroz

Unknown disse...

Comentário de Eduardo Moutinho Santos. O Camarada Juvenal Danado - que é benvindo ao Blogue e recebo-o com um grande abraço - diz na sua "notícia": "O Fernando era 1.º Cabo-Miliciano (estranho, dado que todos os cabos milicianos eram promovidos a furriéis quando eram mobilizados – não me recordo se chegámos a falar sobre o assunto) de um grupo de combate de Empada" e "(...) o comandante do pelotão, o aspirante a oficial miliciano (também não sei dizer porquê, uma vez que deveria ser alferes) Agostinho Correia Silva". Talvez este meu comentário possa ajudar a esclarecer a questão posta.
A CART 2673 rendeu a CCAÇ 2381 que eu comandava em Empada em Fevereiro de 1970. Durante a período de sobreposição, e em que a CART 2673 fazia o IAO com 1/2 da minha Cª, deu para ter longas conversas com o capitão que comandava a CART 2673 (não me recordo do nome, mas era a 1ª comissão dele). Interpelei-o para saber os motivos por que o Agostinho Correia Silva era Aspirante a Oficial Miliciano e o Fernando Pacheco dos Santos Cabo Miliciano!!! Não me disse os motivos concretos, mas teriam sido objecto de um processo de Corpo de Delito por responsabilidade num acidente militar durante a instrução da Cª e só quando fosse proferida decisão sobre o mesmo seriam graduados/promovidos a Alferes e Furriel, respectivamente.
Quanto à emboscada em que o Grupo de Combate em causa sofreu 8 mortos (5 militares da CART e 3 da Cª de Milícias de Empada, ela ocorreu no desvio/cruzamento para a península da Pobreza (onde pontificava um Bigrupo do PAIGC) na estrada de Empada para
Darsalame, local perigosissimo e que me obrigava a deixar emboscado um Grupo de Combate guarnecido de Morteiro 81 e Lança Granadas para no regresso das patrulhas a Gubia e Ponta Brandão não ter os guerrilheiros à espera da minha "tropa". Fiz isso numa patrulha a Ponta Brandão acompanhado pelo, então, Major Pezarat Correia do BCAÇ 2892, de Aldeia Formosa, em visita/inspecção que fez a Empada, onde ficou 3 dias, em que quis acompanhar-me... Achou estranha a forma como preparei a patrulha, mas elogiou-me... Na emboscada que vitimou o Fernando, o aspirante Agostinho e os soldados do seu Grupo de Combate portaram-se heroicamente, mas os milícias abandonaram-nos fugindo para Empada. O Gen. Spinola perante este comportamento dos milícias e do seu comandante - um Ten. de 2ª linha -, expulsou-os da Milícia ... Um Abraço.

Carlos Vinhal disse...

Caro Eduardo Moutinho
Muito obrigado pelos esclarecimentos quanto aos postos aparentemente incoerentes.
Autos pendentes era a pior coisa que nos podia acontecer naquela maldita guerra. Além das balas, também a burocracia atrapalhava.
O Comandante da CART 2673 seria na altura o senhor Cap Art Adolfo Pereira Marques.
Quanto ao número de mortos na emboscada, nos livros da CECA constam 4 militares da 2673 e 3 milícias.
Votos da melhor saúde
Carlos Vinhal
Coeditor

Anónimo disse...

Em relação ao Aspirante Miliciano, havia um no meu Batalhão, o das Transmissões, porque tinha havido uma queixa antes do embarque em que metia problemas de saias, e estava com processo pendente. Ao fim de uns meses passou normalmente a Alferes Miliciano.
Nunca soube o que teria acontecido.
Virgilio Teixeira



Hélder Valério disse...

Quando este trabalho foi publicado no tal grupo "Coisas de Setúbal", aí há cerca de uma semana, claro que aconteceram vários comentários.
De vários pontos de vista mas, na generalidade a felicitarem o Juvenal pela homenagem, já que ele tinha manifestado o receio de ir "mexer" em coisas que pudessem incomodar.
O interessante é que foram vários, mais de meia dúzia, que se revelaram ter estado também na Guiné.
Realmente, aquilo que muitas vezes já se tem referido que, de um modo geral, o pessoal que "frequentou" essas terras colocou (ou procurou colocar) uma pedra sobre as memórias desses tempos, na verdade quando os assuntos os tocam de perto, seja pela experiência de situações semelhantes, seja por algum "clic" que às vezes acontece, acabam por acrescentar algumas coisas ao que foi publicado.
A alguns desses, a que penso ter mais acesso, vou tentar ver se podem (e querem) aportar mais alguns factos que ajudem a (re)constituir o "puzzle" das nossas memórias.

Hélder Sousa

Nau disse...

Caro Unknown - Eduardo Moutinho Santos:
Muito agradecido pelo esclarecimento sobre as patentes dos camaradas Pacheco e Agostinho, e pelo restante comentário.
Grato também pela gentil e fraterna receção.

Um grande e fraterno abraço.

Juvenal Danado