Em mensagem do dia 4 de Agosto de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":
Amores em tempo de guerra
Um sonho terrível acossara a Luisinha naquela noite, depois de um jantar entre colegas da faculdade de Medicina. Tinha sido organizado pelo Jorge, que considerava o seu melhor amigo, para comemorar as vinte e três primaveras com que fora privilegiada pela vida. Gostava muito de conversar com o Jorge e, na realidade, o Jorge encontrava na Luisinha a fonte da sua paixão. Discreto e tímido como era, não ousava tentar aproximar o seu coração ao da jovem eleita, por medo de ser rejeitado. Amava-a no silêncio da sua alma, seguia-lhe os passos religiosamente, procurava todas as oportunidades para conversar com ela e era correspondido.
Luisinha era uma rapariga aberta e comunicativa. Tinha prazer em cultivar amizades, mas não deixava espaço para a aproximação. O seu compromisso com o Zeca era sagrado. Porém, o Jorge foi-se insinuando e conseguiu penetrar no âmago do seu coração. Nas conversas perdidas no vazio do tempo com o Jorge, enquanto esperava Zeca, descobriu que cada um de nós carreteia uma mochila doada ao nascer e nos acompanhará pelo tempo fora. Nela é depositada toda a nossa história. A história que cada um escreve no dia a dia da sua vida, que será tanto mais leve quanto mais soubermos acomodar dentro dela, as nossas melhores escolhas para o quotidiano que ousamos viver, apartando tudo que não nos serve ou pode prestar-se a ser empecilho à nossa felicidade. Cabem lá os sonhos que nos enchem a vida, mesmo aqueles que se dissiparam no tempo, os projetos de um futuro na construção da felicidade a que temos direito, renovados em cada dia que parte. Sobretudo cabem lá as decisões sensatas e a sua concretização. Atos e ações que leve, muito leve e agradável o seu transporte nos fazem sentir realizados. Mas também as decisões insensatas que a tornam mais pesada e difícil de carregar vida fora.
Sem se aperceber, a jovem candidata a médica pediatra, cometera na noite anterior um ato profundamente insensato. Deixou que o coração do Jorge se aproximasse demasiado do seu coração e ficou presa. A sensualidade própria da juventude libertou-se das amarras que ela continha dentro dela, pelo amor que dedicava ao Zeca desde tenra idade. A um amor proibido e indesejado pelo seu pai que com o tempo se transformou numa linda paixão, agora ressequida pela ausência forçada por exigências da Pátria, se contrapõe outro amor alimentado pela presença contínua na sua vida de estudante, de um jovem extremamente cortês e delicado, bem-parecido e, como ela, abonado financeiramente. O coração a traíra numa noite que devia ser de felicidade. Na realidade fora rica pelo convívio, pela quentura da amizade sentida e pelos momentos selados naqueles beijos de apaixonado que recebera e retribuíra, mas os amargos que se levantaram depois abafaram toda a festa.
Zeca apareceu-lhe no sonho e levou-a a caminhar até aos tempos de criança A sua timidez nos primeiros dias de escola, talvez pelo pouco convívio com crianças da sua idade. Timidez que o Zeca ajudou a fazer desaparecer com o seu sorriso, suas brincadeiras e aventuras. Viu-se a caminhar, em pleno verão, pelo jardim do Parque Verde do Mondego de mãos unidas, dedos entrelaçados, tanto quanto os seus corações, embalados pela suave música da água do rio ao lamber as margens sequiosas enquanto dos seus lábios saíam promessas de amor eterno. A noite em que o afeto que os unia se transformou num vulcão e a elevou ao céu, fazendo-a sentir-se mulher de corpo inteiro. Noite em que ambos se desvirginaram num puro ato de amor jamais conjeturado, surgiu-lhe no meio do sonho, a atormentá-la. Um momento tão belo na sua vida que era a maior e melhor fonte de alimento do seu amor pelo Zeca vem pedir-lhe ‘contas’ pelo seu gesto impensado com Jorge no calor daquela noite. Acontecera poucos dias antes do Zeca partir para a Guiné, numa certa noite fria de abril, em que o calor dos seus corpos unidos pela paixão os traiu, nos seus propósitos de se manterem virgens para dar mais vida à noite de núpcias que vislumbravam com esperança, no regresso do Zeca e foi tomado pelos dois, como sinete branco que os iria unir na separação forçada que se avizinhava. O Amor que nutria pelo Zeca e representava tudo para ela estava ferido. A profundidade do seu pensamento, a visão positiva que ele tinha do mundo. A forma como encarava os problemas e com que a humanidade se debatia; a relação entre a riqueza de alguns a contrapor-se à miséria de muitos o fazia sofrer profundamente e empenhar-se nas lutas proibidas e secretas dos moradores das ilhas do Porto por habitação condigna. Eram estes os valores que o Zeca carregava na sua mochila e que a faziam sentir-se mais rica e aprofundava o amor que os unia.
Ao acordar Luisinha sentiu-se envergonhada de si mesma. Sentia-se numa prisão a quatro braços e não conseguia abrir caminho para se libertar.
Zé Teixeira
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Zé,só agora li. Parabéns, é o retrato de parte da nossa geração que carrega uma mochila pesada....Gostei dessa poderosa imagem... Prometo voltar.
Tema delicado, razão por que não aparecem mais comentários. É pena. Grande testemunho sobre a nossa geração .
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