sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Livro de referência, pela organização cuidada, pelo elevado acervo documental diplomático manuseado, releva aspetos essenciais do que se viveu na Guiné, de 1962 a 1974. Referi em texto anterior que o autor repete erros de apreciação quanto à governação de Schultz, não consultou fontes primordiais; é o primeiro investigador a ignorar o argumentário do PAIGC, muito apreciado na época de que Spínola e a PIDE estavam envolvidos no assassinato de Cabral, não havia coragem para denunciar o segredo de polichinelo de que os guineenses não tolelariam ser governados sob alçada cabo-verdiana, durante anos vendeu-se uma conspiração montada pela PIDE para infetar as consciências em Conacri e chegou-se ao desplante de pôr à frente da intentona Momo Touré, um guerrilheiro libertado em 1969 e que fora criado de mesa no restaurante Pelicano, isto sem questionar como é que este senhor iria mobilizar pelo menos largas dezenas de sediciosos, muitos deles altos quadros do PAIGC. Mas esta mitologia fez voga, era um excelente pretexto para esconder a realidade. Futscher Pereira foi bastante cuidadoso a tratar as relações diplomáticas com o Senegal e revela as diferentes tentativas de Marcello Caetano de chegar às negociações com o PAIGC, a partir de fevereiro de 1974. Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (2)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais. Adverte-se o leitor que quer neste texto como no anterior circunscrevemos a análise aos comentários do investigador exclusivamente no teatro da Guiné.

Estamos agora em 1971, as relações com o Senegal deterioram-se com as incursões de forças portuguesas em Casamansa, o PAIGC não abranda a onda de hostilidade. É neste contexto que Rui Patrício, o ministro dos Negócios Estrangeiros recebe uma carta de Spínola propondo um virar de página na politica portuguesa para a Guiné, escrevendo mesmo “a ninguém restam dúvidas de que o problema da Guiné não é passível de solução exclusivamente limitar” e que, “numa guerra deste tipo, as operações militares apenas se destinam a criar as condições à solução de fundo”, e “essas condições estão criadas, pelo que, do ponto de vista militar, se me afigura impossível ir mais além”. Spínola preconizava uma consulta ao povo da Guiné. “Spínola considerava que a sua ação apenas serviria para ganhar o tempo necessário para encontrar uma solução política e diplomática do conflito”. Irá expor essa tese a 7 de maio no Conselho Superior de Defesa Nacional, incomodará muita gente, o Governo não estava disposto a ir tão longe. Lúcido quanto à impossibilidade de uma vitória militar, Spínola empenha-se numa tentativa de negociação com o PAIGC, recorre a um colaborador de confiança, o chefe da PIDE em Bissau, Fragoso Alas, e a um intermediário como Mário Rodrigues Soares, considerado capaz de passar recados. É assim que é aprazado o encontro com Senghor, 18 de maio de 1972. Não há documentação que comprove que Amílcar Cabral desse o beneplácito a tais negociações. Depois das conversações com Senghor Spínola vem a Lisboa, Marcello Caetano contrariou todos os seus propósitos, alegando que a sociedade portuguesa não estava preparada para esse passo. É o início da rotura das relações entre os dois, Spínola irá escrever a Caetano dizendo que só existem duas alternativas, “ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada e inútil agonia”.

Spínola irá ainda encontrar um alto dirigente senegalês, escreverá no seu livro de memórias País Sem Rumo que em outubro de 1972 Amílcar Cabral sugeriu um encontro com ele em território português. E o autor refere que a ausência de documentos não permitem esclarecer a consistência desta proposta. É exemplar a correspondência trocada entre Spínola e Marcello Caetano, e ficará para a história o seguinte comentário de Caetano: “para a defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado pelos terroristas, abrindo o caminho a outras negociações”. Caetano supunha que iria haver uma derrota militar na Guiné que manteria intactas todas as possibilidades de defender o resto dos territórios. Falhadas as negociações, também Senghor tirou as suas ilações, passou a dar todo o apoio às atividades do PAIGC no Senegal. Importa referir que entre 2 e 8 de abril, três diplomatas ao serviço da ONU, acompanhados por dois funcionários do secretariado da mesma organização, percorreram a zona de Catió e Quitafine, confraternizado com as populações.

Estamos chegados ao assassinato de Amílcar Cabral e é bom que se diga que Bernardo Futscher Pereira é o primeiro investigador a justificar os acontecimentos fugindo à propaganda do PAIGC pôs a correr, estabelecendo ligações diretas com Spínola e a PIDE, e que teria havido até uma operação tenebrosa envolvendo a Marinha portuguesa. O autor faz avultar o ressentimento secular dos guinéus contra os cabo-verdianos, os cabo-verdianos eram oriundos da pequena burguesia ao passo que os guinéus eram essencialmente camponeses sem instrução. “O PAIGC contava com cerca de 6000 guerrilheiros, quase todos guineenses. Cabo-verdianos seriam talvez uma centena, quase todos dirigentes”. Fala nos indícios de comprometimentos de figuras como de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, é sabido que toda a documentação decorrente dos inquéritos desapareceu sem rasto. A liderança do PAIGC preparou a resposta, ela virá, com toda a sua brutalidade, graças ao míssil terra-ar Strella, o ataque a Guileje e a Guidaje. Costa Gomes visita a Guiné no rescaldo destes empates, apresenta como única alternativa “a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada, evitando-se, desse modo, a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira”. Como o autor observa, Spínola concordou com o diagnóstico, mas recusou pura e simplesmente aplicá-lo.

Há agora o esforço frenético para encontrar armas compatíveis com a escalada do armamento, pretende-se comprar uma bateria antiaérea para a eventualidade de haver ataques com MiG-17. Para agradecer a cedência das Lajes na guerra do Yom Kippur, Kissinguer, não podendo fornecer diretamente os mísseis Red Eye encontrou um intermediário israelita. “Portugal acabou por encomendar 500 mísseis a Israel que, no 25 de Abril, esteavam na Alemanha Ocidental à espera de serem expedidos para Lisboa. Costa Gomes e Spínola cancelaram a encomenda.”

Futscher Pereira desvela igualmente as negociações tentadas à última hora por Marcello Caetano: negociar com o PAIGC a independência da Guiné. Alude aos acontecimentos de janeiro de 1974, a ofensiva sobre Copá e Canquelifá, a ida do diplomata José Manuel Villas-Boas a Londres, foi o MI6 que serviu de intermediário, o chefe da delegação guineense era o ministro dos Negócios Estrangeiros Vítor Saúde Maria. “Os guineenses exigiam negociações Estado a Estado e o reconhecimento de Portugal do Governo do PAIGC no exílio. Villas-Boas não estava obviamente habilitado a responder. Ficou agendado novo encontro, mas não antes de maio. Marcello Caetano procurava também outros canais. A 5 de abril, Pedro Feytor Pinto foi enviado a Paris, onde se encontrou com Jacques Foccart, o todo-poderoso monsieur Afrique do Eliseu, a quem pediu ajuda para mobilizar Senghor e Houphouët-Boigny para esta tentativa de última hora de negociar com o PAIGC. Iniciaram-se também preparativos para um encontro entre Bethencourt Rodrigues e Senghor.”

Aqui findam todas as considerações sobre a Guiné, insiste-se que se trata de um documento altamente probatório, indiscutivelmente um olhar refrescado sobre o que foi a diplomacia portuguesa que demonstra inequivocamente que não estávamos “orgulhosamente sós”.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Pois é, Mário Beja Santos, onde está aqui a derrota militar das NT, as nossas tropas, terra, mar e ar, no território da Guiné, 73/74? Tu, tão pró-Paigc, que, por vias travessas, referindo "o génio Amílcar Cabral", tão ardorosamente defendias Cabral, neste blogue há uns meses atrás... Não esqueço.

Abraço,

António Graça de Abreu

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Comprei este livro e aconselho.
É um livro de consulta, não apenas sobre a problemática da guerra no três TO daquelas PU, mas também sobre os grandes momentos da política externa e interna nos últimos tempos do fascismo (Cap. 4 - pág 153 e Cap. 7 Pág.).
Comprar e e manter em consulta...

Um Ab.
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

Eu não percebeu nada de informações/transmissões militares, e muito menos entendo textos em código,
como o texto que Spínola escreveu a Caetano.

"....Spínola irá escrever a Caetano dizendo que só existem duas alternativas, “ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada e inútil agonia”.

Que para alguns entendidos "......ou uma prolongada e inútil agonia", queria dizer 'mais uns mesinhos e estamos todos em casa'.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada Valdemar
Esta teve muita piada!
Com que então "uma prolongada e inútil agonia", queria dizer 'mais uns mesinhos e estamos todos em casa'.
Sim! talvez voltássemos todos para casa dentro de uns mesinhos, mas depois de um estágio em Konacry, à semelhança do retorno da Índia.
Não haja dúvidas:"Tava na maula" e "tava tudo combinado".Por quem e onde é que é difícil saber...

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Tantas leituras que tanto Beja Santos como mais alguns camaradas nos trouxeram aqui, mas quase nenhum nos traz nem documentos nem relatos documentados quer de dirigentes do PAIGC, principalmente Caboverdeanos, nem de cubanos e claro que muito menos de soviéticos, que estes também foram nossos IN, tanto ou mais que o PAIGC.

E sem o historial daquele lado fica sempre uma historia muito incompleta.

E quais as principais perguntas que nós aqui, principalmente os editores do Blog, os mais assíduos, nunca ouvem uma resposta?

Sim, nós aqui, porque a guerra da Guiné interessa a um número muito reduzido de gente, muito menos gente do que por exemplo sobre a guerra de Angola.

Mas há de caras duas perguntas que estaria na hora que era interessante saber a resposta.

Uma pergunta seria porque a História de Caboverde não retira dos livros a responsabilidade do assassinato de Amilcar Cabral atribuída â PIDE (governo de Portugal?

Ou então que apresentem documentos a comprovar.

Outra pergunta, também relacionada com Amilcar Cabral, poderia ser qual a razão porque apenas e só após o assassinato de Amílcar Cabral, se põe em marcha aquele forcing, contra aqueles quarteis portugueses em cima das fronteiras, forcing, a que se pode atribuir o princípio do fim da "paciência dos capitães de Abril".

Mas quantas mais histórias terá havido daquele lado que irão ficar erm branco.

Valdemar Silva disse...

Olá caro Pereira da Costa
Como não tenho nada que fazer e o raio da minha companheira DPOC não me dá conversa, às vezes começo a pensar como será no ano 2095 quando eu fizer 150 anos de idade.
Como será a questão que os "Herculanos" ou "Serrões" desse ano, apresentarão a historiografia do 25 de Abril de 1974 e fim da guerra na Guiné.
Provavelmente coçarão a cabeça com a dúvida do que consta nos mistérios destes factos da nossa História. Como é que militares saíram dos Quartéis sem conhecimento dos Generais? Quanto mais tempo demoraria a NT a acabar com a guerra na Guiné?
Estas dúvidas que têm apoquentado os historiadores são decorrentes de registos de opiniões de 'aquilo estava tudo combinado' e de 'mais uns mesinhos e estávamos em casa'.
Por enquanto ainda temos gente viva para opinar com 'tá bem, tá bem, isso é conversa dos que levaram um grande baile' e com 'pois, pois, isso é conversa da treta'.

E nós, com 75 e mais anos bem aviados, cá estamos dentro e fora dos mistérios da História e, como é nosso dever, a opinar sobre estes assuntos por termos assistido a eles em directo e a cores.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Este livro é para consulta e serve para recordarmos alguns factos de que ouvimos falar e esquecemos ou de que nunca tínhamos ouvido falar.
O escritor poderá ter usado as fontes primárias (documentos originais em arquivo que ficam para a posteridade mas que é difícil refutar, por motivos óbvios); entrevistas e textos escritos pelos "próprios", etc.
Pode também fundamentar-se em estudos subsequentes, como será o caso do diário do embaixador Franco Nogueira e outros que também são muito fiáveis.
Nas apreciações que fizermos convém ter em conta o nível a que estávamos na nossa presença na Guiné. Avaliar com calma em vez de começar a "mandar bola para a bancada" já que o âmbito é muito largo.
Boas leituras e... calmex!

Bom FdS
António J. P. Costa