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quarta-feira, 2 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26977: O segredo de... (50): uma recordação que ainda hoje me persegue: fiquei com fama de ter agredido um 1º cabo, "branco" da CCAÇ 2701 (e para mais meu conterrâneo de Águeda) para defender a honra de uma "preta" (mulher de um soldado meu, do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Saltinho >O crachá da CCAÇ 2701, "Os 3 SSS" (Saltinho, 1970/72)., comandada pelo cap inf Carlos T. Clemente.  Cortesia de Paulo Santiago.



1. Mensagem do Paulo Santiago, ex-alf mil inf,  cmdt Pel Caç Nat 53 (Saltinho, 1971/73) (é um histórico da nossa Tabanca Grande, tem já cercad 2 centenas de referências desde 22/6/2006).


Data - quarta, 2 de julho de 2025, 18:22

Assunto - Recordação que me incomoda de tempos a tempos


Luis,

Estes últimos textos sobre os "filhos do vento" vieram acordar uma mágoa com 54 anos.

Foi em julho de 1971, viria de férias em agosto,encontrava-me no bar após o jantar quando o meu soldado Mamadú Baldé entra transtornado.

- Alferes, o nosso cabo Manuel C... tentou abusar da minha mulher, agrediu-a.

Fiquei de cabeça perdida, ficaria sempre aqui com a agravante de o Manuel C... ser meu conterrâneo, da mesma freguesia.

Procurei o abusador e, quando o encontrei, dei-lhe uma carga de pancada.

Escapou-se para o abrigo onde foi buscar a G3. Teve azar,entretanto vieram outros elementos do Pel Caç Nat 53, detiraram-lhe a arma e levou mais uns murros.

O Manuel C... desapareceu nessa noite em direcção desconhecida. Apareceu passados três dias.

O Cap inf Carlos T. Clemente, cmdt da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72), mandou formar a companhia e disse ao cabo Manuel C... para dizer onde tinha andado e qual fora a intenção ao fugir.

Fugira com intenção de ir para a República da Guiné mas tivera receio de cair nalguma armadilha ou mina, e não se tinha afastado muito do quartel e do rio Corubal. Comera umas folhas e bebera água do rio.

Este cabo, da CCAÇ 2701,  tinha a especialidade de atirador mas não saía para o mato,estava na arrecadação de material de guerra com um 2º sargento.

Quando chegou ao fim da explicação dos três dias de ausência,diz o Clemente:

- O alferes Santiago vai decidir qual a punição a dar-te.

Fiquei lixado. Eu, conterrâneo do abusador, que também estava para vir de férias, é que ia decidir a punição.

Claro que o Manuel C... ficou sem o castigo merecido.

Apesar da ausência de punição, fiquei, à data, com a fama de ter agredido um conterrâneo para defender uma preta.

Acrescento: o tipo está num país da América do Sul, e os familiares "rezam" para que ele não venha a Portugal porque da única vez que veio, houve graves problemas.

O Manuel C... devia ter levado uma "porrada", não levou, e ainda hoje, quando me lembro, fico incomodado.

Paulo Santiago

PS - Luís, fica ao teu critério, publicar ou não.


2. Comentário do editor LG:



Paulo, obrigado pela confiança que depositas no blogue, na pessoa do seu editor, e teu velho amigo e camarada. Decidi partilhar o teu "segredo", por uma mão cheia de razões:

(i) não éramos meninos de coro;

(ii) este caso e o seu desfecho são exemplares e merecem ser conhecidos;

(iii) que fique claro: houve casos de violação (ou de tentativa de violação) de mulheres da população civil (e também de prisioneiras) no TO da Guiné; muitos ou poucos, não sabemos, não há estatísticas; houve casos, como em todas as guerras;

(iv) na guerra não vale tudo, e o exército português tinha princípios e valores;

(iv) este caso envolveu um graduado (1º cabo) d CCAÇ 2701, " branco" (e por sinal teu conterrâneo) e a mulher de um teu soldado, do recrutamento local, do Pel Caç Nat 53;

(v) houve violência (física), não chegou a haver violação; o que não atenua a gravidade do comportamento do teu subordinado;

(vi) tu eras comandante operacional de um subunidade, adida ao CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72);

(vii) com estrito respeito pela hierarquia, o cap inf Carlos T. Clemente (hoje cor ref), não quis fazer o "by pass", isto é, quebrar a unidade comando-controlo;

(viii) não podias deixar de agir, sob pena de perderes a autoridade e o respeito dos teus homens;

(ix) e agiste à boa maneira da malta de cavalaria e dos paraquedistas: uns bons murros valiam mais, naquele contexto, do que uma "porrada" averbada na caderneta militar (não faço juízos de valor nem discuto se, face ao RDM, tinhas outras alternativas);

(x) podia ter ficado cara a tua atitude lúcida e corajosa: o cabo "abusador" foi buscar a G3 com intenções malévolas (talvez de "vingança"); foi felizmente desarmado e, em desespero de causa, decidiu desertar; cobardolas e arrependido, voltou para o quartel ao 3º dia;

(xi) a lição que tu lhe deste, não sabemos se ficou para a vida; mas 1º cabo Manuel C... deveria ter-te ficado agradecido por não quereres vê-lo embrulhado numa folha de papel selado; se o caso chegasse ao com-chefe, o gen Spínola, o teu homem nem saberia de que terra era;

(xii) o caso foi público e notório (agressão a um elemento civil, insucordinação e tentativa de deserção), mas mesmo assim omiste o seu apelido, como de resto mandam as nossas regras editoriais;

(xiii) espero que ele, algures, na América Latina, ainda te possa ler, e mostrar, memso que tardiamente, arrependimento e gratidão (neste caso, pelo teu sentido de justiça);

(xiv) e, por fim e não menos importante, deves sentir orgulho, mesmo ao fim destes 54 anos (!), de não teres cedido à tentação do "nacional-porreirismo" e teres sabido defender a honra de uma mulher (para mais, mulher de um soldado teu), de acordo com o nosso código de ética como militares;

(xv) mais do que "oficial e cavalheiro", soubeste respeitar a tua consciência e honrar a tua farda!

...De qualquer modo, Paulo, e como já aqui temos dito, nesta série "O segredo de...",  há vítimas nem lugar para a vitimização, não há heróis nem vilóes... Em contrapartida, também não consentimos que camaradas insultem outros camaradas, seja a que pretexto for (e, muito menos, na sequência da revelação de um "segredo", seja qual for o seu conteúdo).  

Uns e outros teremos de ser razoáveis e tolerantes, dois exercícios (o da razoabilidade e o da tolerância) que nem sempre não fáceis... Esta série funciona como um verdadeiro... "confessionário". E ir ao "confessionário" é, antes de mais, "desabafar" sem receio de ser criticado (e muito menos  crucificado na praça pública). Vir aqui dar a cara e contar um "segredo" também é um ato de coragem.

6 comentários:

paulo santiago disse...

Luís
O 1º Cabo não pertencia ao Pel 53 era da 2701.Penso ser impossível tal acontecer com um elemento do meu pelotão dado o espirito que existia entre nós
Abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O cabo Manuel C... pertencia á companhia do cap Clemente, esclarece o Paulo.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Assim sendo, o caso muda um pouco de figura: devia o cap Clemente a punir o seu subordinado!... Passou-te o odioso, na base da lei de Talião...

Anónimo disse...

Daquilo que conheço do Paulo Santiago, não esperava outra atitude que não fosse a que assumiu, com coragem e respeito. Sorte teve o militar em o assunto se ter resumido a uns murros, porque, caso a notícia chegasse ao palácio do homem do monóculo, nem quero pensar no que lhe aconteceria .
Um grande abraço
Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ao telefone, o Paulo acrescentou: o cabo quarteleiro era de uma terra perto da sua, a 4 km... E também vinha de férias nessa altura... Se apanhasse uma porrada, ficaria a curtir as mágoas na praia fluvial do Saltinho... Bem pode estar grato ao Paulo.. Vive hoje na Venezuela...

joaquim disse...

Caro Paulo só se perderam as que caíram pelo chão! Claro que o gajo devia ter levado uma porrada mas isso é fácil de dizer agora aqui. Um forte abraço