domingo, 29 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P30: Aerogramas de amigos e camaradas (2) (David Guimarães)

27 de Maio de 2005:

Olá, Bom dia:

Eu bem me parecia que o Marques Lopes, Coronel, não tinha desaparecido: aí está ele e com bastante força e energia... Um abraço, para ele.

Bom, estamos a constatar um facto e disso não nos podemos alhear: entramos todos novamente numa guerra, a guerra que foi de todos e é de cada um ... cruel e tão dura que é capaz de levar a fazer com que nos unamos, todos, em volta de uma causa justa e nobre, a solidariedade e a amizade, sem nos preoocuparmos com crenças e credos, raças, usos e costumes (...).

Eu sou péssimo em organização, que pena, mas começa a surgir a oportunidade de começarmos a juntar estes endereços todos (...) e começar a formar o nosso batalhão... Todos desempenhámos um papel na guerra da Guiné e sabemos, afinal, que nos faz bem falarmos sobre estes assuntos. É evidente que não se trata de recolocar as pinturas de guerra, mas com um grande cachimbo da paz contar todos as nossa histórias de guerra.

Cada um tem a sua guerra interior e bem precisa de a colocar cá fora, uma guerra que perdurou desde jovens, que nos cortou a possibilidade de sermos jovens, como os jovens de agora. A nossa juventude era a beber bazucas [cervejas de 0,75 l], a usar a G3, apanhar com granadas e manga de ronco. Eventualmente vir a Bissau ou a Bafatá, ir à meta, ao Solar dos 10, ao café Bento, ao Pelicano, dar uma volta no Pilão e depois ir comer umas ostras e beber cerveja até ao canto da boca.... Isto em Bissau porque em Bafatá era beber whisky, gin... Enfim, beber uns copos e voltar para o mato...

Há que perfilar estes nomes, todos; fazer um arquivo, sempre juntando nesse arquivo mais um e mais outro que vai chegando. Já adivinho, tudo a funcionar como uma bola de neve, a aumentar...

O Luís Graça fez o favor de pôr à disposição o seu blogue (...). Agora cumpre dividir a Guiné num espaço mais amplo. E mais sectores irão aparecer. Estávamos no L1 [, na Zona Leste], pois vamos por aí para fora. Que seja este mais um verdadeiro contributo para a história de uma guerra que foi de todos...

Sousa e Castro, o grande obreiro do congregar de direcções, faça o favor de arquivar sempre cada nova direcção que apareça...

Será este o princípio de uma narração, o mais completa quanto possível, de uma guerra que nunca se contou em pormenor... Li num livro de testemunhos de quatro generais - um deles o Bettencourt Rodrigues, o último COM-CHEF da Guiné. Segundo ele a guerra não estava perdida... Não sei se já morreu, mas se morreu e estava convencido disso, morreu efectivamente com algo de falho na cabeça e a sonhar...

Continuemos. Não sei se este mail vai chegar ao Varandas, quem dera... Ele anda a escrever um livro: será o contributo para que ele reformule muitos capítulos, quem sabe, e que a ficção fique uma história verdadeira. Para esquecer nunca, mas para que não se repita também.

Um abraço para toda a gente - amigos e companheiros, ex-camaradas de armas.

David, ou Guimarães, ou David Guimarães - ex-Furriel Miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole de 1970 a 1972 e pertencente ao BART 2917 com sede em Bambadinca. (Quero dizer que muitas vezes teremos que nos identificar assim).

sábado, 28 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P29: "Um ataque a Sare Ganá (1968)"

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação na reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968):


"Tal como Sare Banda, Sare Ganá ficava perto de Sinchã Jobel, de onde veio o grupo de guerrilheiros que fez o ataque. Sare Ganá era uma tabanca com população, tendo nela um pelotão da Companhia de Milícia 3, sob o comando da CART 1690.

"Um ataque a Sare Ganá, 12 de Agosto de 1968:


"Acção inicial do IN: A 12, às 00H02, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos atacou Sare Ganá.

"O ataque iniciou-se por tiros de morteiro 82 e 60, lança-granadas-foguete, lança -rocketes e metralhadoras.

"Após a preparação de fogo de armas pesadas durante a qual foram utilizadas muitas granadas incendiárias, o IN cortou o arame farpado do lado Norte e penetrou em Sare Ganá por este lado e pelo lado Sul, aproveitando uma pequena passagem existente que se encontrava incompletamente fechada, passando a utilizar armas ligeiras automáticas e a incendiar casas.

"Reacção das NT:

"a) Da Companhia de Milícias nº 3:

"O pelotão 109 da CMIL 3, ao qual está confiado a defesa de Sare Ganá, reagiu pelo fogo, não só instalada nos abrigos como também dispersa pela tabanca, aguentando o impeto inicial do ataque e dificultando o mais que pôde a infiltração das forças IN, no que foi apoiada por grande parte da população (a quase totalidade dos que dispunham de armas). Deve notar-se que os soldados milícias começaram a retirar apenas quando as munições que dispunham já rareavam.

"b) Da CART l690

"Em Geba, logo após os primeiros rebentamentos serem ouvidos, dei ordem para que se comunicasse pela rádio esse facto ao Comando do BCAV 1905 e ordenei que saíssem imediatamente o maior número de homens possível, sem descurar a defesa de Geba; às 00H08 um grupo de 14 soldados, 1 alferes e 1 furriel, saiu em viatura em direcção a Saré Ganá. A última parte do percurso foi feita a pé tendo Sare Ganá sido atingida às 00H20. A aproximação da povoação fez-se com as forças divididas em 3 grupos.

"A população retirava pelo acesso utilizado pelas NT na aproximação. O primeiro grupo, que seguia na frente, lançou-se para o interior da tabanca e foi imediatamente alvejado por uma granada de morteiro que feriu ligeiramente uma praça na cabeça e matou uma mulher da população. Não obstante, o grupo na sua totalidade entrou na tabanca pelo arruamento principal, progredindo de casa em casa sob fogo do IN que enfiava o citado arruamento. Para possibilitar o avanço foram feitos 4 tiros do Lança Granadas Foguete estabelecendo-se em seguida contacto pelo fogo de armas ligeiras, à vista, com o IN. A progressão continuou com o apoio de mais tiros de Lança-Granadas Foguete.

"O 2º grupo entrou na tabanca em seguida, inicialmente pelo mesmo arruamento mas tomando um outro arruamento à direita, começando a alvejar com os seus fogos os elementos IN que actuavam nesse lado. Nesse momento viu-se que o IN lançou um sinal luminoso e iniciou a sua retirada, arrastando as baixas que sofrera e carregando o respectivo material.

"O 3º grupo, à rectaguarda, cobria a acção dos outros dois. A retirada do IN fez-se duma forma ordenada e a coberto do seu próprio fogo, aproveitando a abertura feita na rede de arame farpado e através da passagem para Oeste depois de deslocado o cavalo de frisa respectivo. Moveu-se uma outra perseguição que não foi além da orla da mata próxima devido à escassos de efectivos.

"Entretanto sentia-se ao longe a aproximação de uma coluna de viaturas vinda de Bafatá.

"c) DO BCAV 1905 e EREC 2350

"Às 01H00 atingiram Sare Ganá as forças de socorro de Bafatá e enviados pelo Comando de Batalhão. Estas forças eram constituídas a primeira por um pelotão do EREC 2350 e o PEL CAÇ NAT 64 a segunda por outro PEL REC do EREC 2350 e 2 secções da CCS/BCAV 1905.

"Uma vez que a situação estava praticamente normalizada, um pelotão do EREC 2350 e as 2 secções da CCS regressaram a Bafatá levando os feridos mais graves, tanto milícias como população, enquanto as outras forças se instalavam em Saré Ganá, montando segurança a tabanca.

"Resultados obtidos:

a) Baixas causadas ao IN: 5 mortos confirmados; várias baixas prováveis

b) Material capturado ao IN: 1 Met. Lig. Dectyarev com bipé; l Pist. Metr. Sundaiev; 2 Carregadores de Pist. Met.; l Carregador de Metr. Lig. ; l Fita com 85 cartuchos para Metr. Lig.; 2 Granadas de Mão Ofensivas»

Guiné 63/74 - P28: Um ataque a Sare Banda (1968) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967):

Sare Banda, como podem ver pelo mapa que já vos enviei da zona, estava perto de Sinchã Jobel (importante base do PAIGC, e muito bem equipada, como é claro pelo material que deixaram), e é natural que fosse atacada.

O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.

Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2… e, mais uma vez, como vêem, a tentativa de entrar no destacamento. Não vos mando fotografias de Sare Banda porque não tenho.


"Um ataque a Sare Banda. 8 de Setembro de 1968:


"Desenrolar da acção:

"1. Acção inicial do IN: a 8, pelas 21h00, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semicírculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

-Canhão s/recuo

-Morteiro 82

-Lança granadas RPG-2

-Lança granadas P-27 Pancerovka

-Metralhadoras pesadas

-Metralhadoras ligeiras

-Armas automáticas

-Armas semi-automáticas


"O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão sem recuo e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba.

"No seguimento da acção, o IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.

"2. Reacção das NT:

"2.1. Das forças do destacamento:

"Apôs a surpresa inicial dos elementos que se encontravam fora dos abrigos, estes correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN.

"Refira-se que logo no início da reacção as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/recuo, calando-o definitivamente e, em determinada altura do ataque, repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado.

"Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete, foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

"O IN, sempre perseguido pelo fogo das NT, recuou cerca de 200 metros instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22H30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque, após o que desistiu dos seus intentos, retirando definitivamente.

"2.2. Das forças de Geba (CART 1690):

"Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados.

"Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo no início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09H02 do dia 9 de Setembro de 1968, através de dois praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.

"Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda, às 05H45, fez um reconhecimento nos arredores, seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e dirigindo-se para Sincã Jobel.

"Resultados obtidos:

"Baixas sofridas pelo IN; 8 mortos confirmados; muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.

"Material capturado ao IN:


-1 Espingarda semi-automádica Simonov cal.7,62mm

- 1 Espingarda automática G-3 7,62mm

- 1 Granada de canhão s/recuo

- 2 Granadas de lança-granadas foguete

- 1 Granadas de morteiro 82

- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4

- 8 Carregadores de Met. Lig.

- 2 Fitas de Met. Lig.

- 2 Facas de mato

- 2 Bolsas p/transporte de munições

- 2 Cantis

- Diversas munições de armas aut.

- Bolsa de medicamentos com o seguinte: Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (3 Frascos); éter ( 1frasco; mercúrio cromo (1 frasco); bálsamo (1 frasco); Injecções (desconhecidas) (10 ampolas); Aspirinas em comprimidos (178 carteiras):; madexposte em comprimidos (96); Chinim Sulfur (comp) (6 embalagens de 5); Codemel (carteiras de 10) (5 Comprimidos); adesivo (1 rolo); algodão cardado (1 maço; 1 garrote; 20 mLigaduras de gase de 10 cm x 5cm; 1 seringa de plástico c/agulha". l

sexta-feira, 27 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P27: "Um ataque ao destacamento de Banjara (1968) (2)

1. A propósito do relato do ataque do IN ao destacamento de Banjara e da reacção das NT, comenta o Afonso Sousa:

27 de Maio de 2005:

"Por curiosidade estive a ver as coordenadas geográficas dos locais que, por desempenho de missão, [o A. Marques Lopes]tão bem conheceu.

"São estas as distâncias (em linha recta), [entre os seguintes pontos e Geba, sede da CART 1690]:

- Sinchã Jobel: 13 km
- Sinchã Culo: 60,5 km
- Banjara: 27,4 km
- Sare Madina: 6,6 km
- Sinchã Sutu: 5,6 km
- Sare Banda: 11,7 km
- Camamudo: 11,7 km


"A realidade (pelo terreno) é bem diferente. Como diz o ilustre oficial António Marques Lopes, entre Geba e Banjara eram 45 Km quando, em linha recta eram apenas 27,4. Prevejo que há por ali uma acentuada sinuosidade no trajecto e, se calhar, através de mata algo densa (a mata do Óio era tenebrosa, conhecida por muitos e falada por quase todos).

"Isto é apenas uma constação, à distância, mas certamente não estarei longe da realidade".

Afonso M. F. Sousa



2. Resposta do A. Marques Lopes, no mesmo dia:

"Amigo Afonso M.F. Sousa: Como bem diz, o caminho era mesmo muito sinuoso, ultrapassando em muito a distância entre coordenadas geográficas, que são, de facto, medidas em linha recta. Já agora, peço-lhe que me indique qual o sítio que utilizou para conseguir esses dados. Explico: estou a escrever umas coisas e faltam-me alguns elementos que penso poderei conseguir nesse sítio.

"A propósito de Carlos Fabião [que é referido pelo Afonso Sousa numa outra mensagem anterior], tenho uma óptima recordação dele: num dia em que estive em Bissau (na noite de 31 de Dezembro de 1968 para 1 de Janeiro de 1969), fui destacado pelo Comando-Chefe para montar uma emboscada com um grupo nos arredores de Brá, onde estava o aeroporto de Bissau (era o receio de um ataque na passagem do ano...).

"Umas horas antes, fui até à messe de oficiais, em Santa Luzia, para beber (preparação importante!). Tinha vestido, é claro, o meu camuflado de muitos combates e de muito tempo de mato, estava debotado, algo sujo, se calhar, também com alguns buracos. Estava eu assentado num dos maples, bebendo uma cerveja, quando chega o gerente da messe, um tenente-coronel a quem chamavam o lavrador (parece que a ocupação principal dele era gerir uma horta que havia lá), e me diz peremptoriamente: 'Não pode estar aqui porque o seu camuflado está sujo!'.

"Foi o bom e o bonito, como se calcula. Quase que chegámos a vias de facto. Foi, então, que interviu o então major Fabião, que lá se encontrava também. Procurou pôr água na fervura, e lá conseguiu. O lavrador afastou-se e, em conversa comigo, depois, o major Fabião deu-me razão e disse-me que, se eu quisesse, podia apresentar queixa ao general Spínola, que não era nada meigo com situações destas, em que os combatentes eram maltratados pelos burocratas. Não o fiz, porque não era o meu tipo de guerra... mas agradeci o gesto do então major Fabião.

"A propósito de Barro [também referido na citada mensafem de Afonso Sousa]: lembra-se que, em tempos, lhe enviei uma fotografias de Barro? Mais lá para a frente hei-de enviar mais coisas sobre Barro, onde estive com a Companhia de Caçadores nº 3.

"Um abraço. A. Marques Lopes"

quinta-feira, 26 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P26: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)

20 de Maio de 2005:

Castro:

A CART 3492 (Xitole, Janeiro de 1972-Março de 1974) foi exactamente a Companhia que rendeu a CART 2716 a que eu pertenci e fomos nós que fizemos a sobreposição... Também esse Capitão era miliciano.....

Muito gostaria de ter narrações do que se passou no Xitole, mais concretas, por que eu sei que houve para lá muita porrada com eles, segundo me soou aos ouvidos....

Um dia o Comandante do BART 2917, já na sobreposição, apareceu no Xitole. O Luís Graça e o Humberto Reis conheciam-no. Era o Tenente Coronel Polidoro Monteiro... Conto-vos uma peripécia passada com ele.

Perguntava eu, bem perfilado, ao Polidoro Monteiro:

- Meu comandante, a nossa missão é ir ensinar o caminho a esta gente...Proponho que ensinemos o início dos caminhos por onde passamos tantas vezes....

Resposta:

- Vai-te foder, seu caralho, quero que lhes ensinem a toca....

Deu em riso, como é evidente....

O Polidoro Monteiro foi o único Tenente-Coronel que usava arma e eventualmente percorria um pedaço de caminhos connosco... Gostava muito de passear no Xitole, pois de manhã gostava de ir até Cussilinta, ao banho, no Corubal e à noite ir à caça às lebres que iam para junto da mancarra (amendoím], na Tabanca de Cambessé, à guarda do aquartelamento do Xitole....

Sempre vi nele um bom militar e era da inteira confiança de Spínola.... Aliás ele era Tenente-Coronel de Infantaria e foi colocado por Spínola em Bambadinca para ir comandar o BART 2917, tendo o Tenente-Coronel Magalhães Filipe, que era o Comandante inicial do Batalhão, sido posto fora deste e da Guiné por "ser incompetente de Comandar um Batalhão" (assim saiu á ordem)...

A gota de água para retirar o Comando ao Magalhães Filipe foi a operação na Ponta do Inglês onde morreu aquela secção do Cunha [da CART 2716]... Quem merecia a porrada acabou por não a apanhar: é que o incompetente do A.C. vinha de professor da Academia Militar e deveria ter uma grande cunha... O Magalhães Filipe, bom homem e mau comandante, coitado, apanhou a porrada quando estava de férias. Não se percebe como um faz a asneira e o que está de férias é que apanha a porrada (...).

Ainda sobre o Polidoro Monteiro... Um dia ele manda um rádio para o Xime com a seguinte nota: "Dois pelotões formados às 5.30 para sair com CMDT" (...). O Polidoro Monteiro chama o condutor de dia e percorre sem qualquer escolta aquele caminho de Bambadinca ao Xime, a alta velocidade... Resultado: 10 dias de prisão para o Rodrigues, 2º Comandante, e 10 de detenção para outro Alferes... É que eles nunca se fiaram que àquela hora ele aparecesse lá e como tal não estavam prontos como ele mandara....

Luís Graça e Humberto Reis: vocês já não estavam lá, creio, mas que isto se passou, passou... O Polidoro era assim, um bom Comandante, a nível operacional: dizia quantas asneiras havia no dicionário... Muito operacional mas bom sujeito... Vocês conheceram-no ainda....

Abraço. David Guimarães


Nota de DJG e LG: Tanto o Magalhães Filipe como o Polidoro Monteiro já faleceram. O A.C. ainda é vivo, razão pro que não o identificamos. Mas o que lá, lá vai... Aqui estamos apenas a recordar estórias que se passaram connosco, não estamos a julgar ninguém...


20 de Maio de 2005:

Amigos: O sacana do Guimarães tem boa memória. Confirmo o que ele diz. Do Polidoro Monteiro recordo-me bem, tal como do filho da p... do A.C. (que poderia ter-me dado um porrada…). Não sabia que o gajo tinha sido professor na academia. Era um militarista (incompetente…). Os milicianos não gostavam do gajo: obrigava-nos a bater pala. Em Bamdinca, imaginem! Se ele ainda é vivo, deve ter tido muita sorte… Nas operações, o gajo gostava de andar de cu tremido, de avioneta, lá por cima… Nos relatórios das operações, aparece a sigla PCV. È isso mesmo quer dizer.

Nos meus apontamentos escritos tenho o seguinte: “No dia 6 de Fevereiro de 1971, participação na Acção Hipopótamo, integrado no 4º Grupo de Combate da CAÇ 12, mais um 1 Gr Com da CART 2715 [do Xime], numa operação de reconhecimento da região de Madina Colhido, Gundagué Beafada, Gidemo e Lantar. Nessa patrulha tomou o parte o Comandante do BART 2717, o Tenente-Coronel João Polidoro Monteiro, a quem fui dando diversas informações sobre a região”.

Fui o único "cão grande" (como eu costumava chamar, no meu diário, aos oficiais superiores) que se dignou acompanhar-nos no mato, de camuflado e G-3… Quase que ia ficando a admirá-lo, como militar e como homem. Confesso que simpatizei com o homem. Diz-me o Guimarães que ele já morreu… É verdade ?

Quanto aos capitães, já não me lembro do nome de nenhum. Lembro-me do meu, o Carlos Brito, que era um bom homem, muito pouco ou nada militarista...

Este mês, o de Fevereiro de 1971, já na véspera da peluda, foi divertido: o Levezinho e o Humberto (do 2º Gr Comb da CCAÇ 12) e outros camaradas (3º Gr Com), juntamente com um Gr Comb da CART 2715, do Xime, foram levar os nossos periquitos, furriéis, a dar um passeio até à Ponta Varela… Até o nosso Piça, o sorja da secretaria, que deveria estar já com os seus 37 ou 38 anos, foi na excursão turística… Saíram do Xime pela fresquinha, com o cacimbo matinal, pelas 4.30, a caminho do local de piquenique, pela antiga estrada, de má memória, do Xime-Ponta do Inglês…

Por volta das 8 e tal, a caminho da bolanha do Poindon, avistaram população a trabalhar, progredindo com cautela até darem de caras com um grupo IN que fazia a segurança à bolanha (mas que felizmente não era muito numeroso: 10 a 15 gajos)… Zás, embrulharam-se em tiroteiro e roquetada durante um quarto de hora…

Infelizmente eu perdi este espectáculo (não se podia estar em todas…). Felizmente não houve baixas, de parte a parte, que eu me lembre. Mas os periquitos e o Piça não ganharam para o susto. Foi assim ou não ? Mas eu gostaria que fossem eles, o Levezinho e o Humberto, a recordar este episódio… A partir de 1 Março começámos a apresentar-nos no Depósito Geral de Adidos, em Bissau, aguardando o regresso a Lisboa… Até lá, fomos esvaziando tudo o que era garrafa…

Ciao. Luís Graça


18 de Maio de 2005:

Amigo Sousa de Castro: Preciso de ajuda para tentar arrumar um puzzle de Mansambo, a partir da CART 2714, do BART 2917 de Bambadinca, que vocês foram substituir.

O BART 3873 esteve na Guiné de Janeiro de 72 a Abril de 74, certo? E a CART 3493 esteve sempre em Mansambo? Quem é que esteve em Mansambo durante esse tempo depois da CART 2714?

Um abraço.

Humberto Reis


18 de Maio de 2005:

Ora, bem...

- O BART 3873 (CCS), Bambadinca, de Janeiro de 1972 a Março de 1974;

- A CART 3492, Xitole, de Janeiro de 1972 a Março de 1974;

- A CART 3493, Mansambo, de Janeiro de 1972 a Março de 1973, sendo transferida para zona do Cantanhês (Cobumba), onde ficou de Abril de 1973 a Março de 1974;

- A CART 3494, Xime, de Janeiro de 1972 a Março de 1973, sendo transferida para Mansambo, onde ficou de Março de 1973 a Março de 1974;

- A CCAÇ 12 substituiu a CART 3494 no Xime;

- Em Fevereiro de 1974, o BCAÇ 4616 rendeu o BART 3873.

Castro

quarta-feira, 25 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P25: Aerogramas de amigos e camaradas (1) (Luís Graça)

Amigos e camaradas da Guiné, do tempo da guerra colonial:

Lembram-se do aerograma ou, mais prosaicamente,do "corta-capim" u "bate-estrada" ? 

A partir de agora vamos publicar nesta secção as vossas mensagens, desde que não estejam directamente relacionadas com o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, o nosso triângulo da morte, o sector L1. Malta de outros sectores, dentro ou fora da Zona Leste, podem-me fazer chegar as vossas mensagens, que eu prometo divulgá-las, neste blogue e nesta secção (Aerogramas de amigos e camaradas). 

Cliquem no nome que assina a mensagem: encontrarão o respectivo endereço de e-mail, sempre útil para futuros contactos. E não se esqueçam: tragam mais cinco (amigos e camaradas daqueles tempos e daquelas paragens).

25 de Maio de 2005:

Amigos, algum de vocês conhece alguém que tenha feito parte da CART 6254 "Os presentes de Olossato", Março de 73/Agosto 74 ? Se, por acaso, conhecerem alguém, agradecia contacto.

Manuel Castro (Viana do Castelo)


25 de Maio de 2005:

Manuel Castro, indico-lhe dois contactos:

(i) António Pedras (seripbar@sapo.pt);

e (ii) o ex-furriel miliciano João Ferreira (ilferreira@net.sapo.pt)

Certamente que os conhecerá. Eram seus ex-camaradas da CART 6254.

Afonso M. F. Sousa

24 de Maio de 2005:

Caro amigo: Antes do mais, os meus parabéns pelo óptimo trabalho do seu sítio "Subsídios para a história da guerra colonial". É bom que se saiba o que foi [essa guerra], sobretudo as gerações mais novas. Daí que eu lhe esteja a dar a minha colaboração nos seus objectivos.

Queria, agora, dizer-lhe que eu não me chamo A. Américo Marques mas, sim, A. Marques Lopes e que não sou tenente-coronel na reserva, mas, sim, coronel (DFA) na situação de reforma.

Peço-lhe desculpa pela trapalhada do envio das "fotografias de Banjara". O que sucede é que não me dou bem com estas coisas da informática...

Um abraço e bom trabalho.
A. Marques Lopes

Nota de L.G. - O A. Marques Lopes não foi capitão da CART 1690, aquartelada em Geba, com destacamentos em Cantacunda e Banjara. Os relatos que ele publica, neste blogue, sobre o ataque a Cantacunda e depois a Banjara, remonta a acontecimentos passados em meados de 1968. Nessa altura ele era apenas alferes miliciano. Como terá ocasião de explicar melhor, neste sítio, o povo da Guiné ganhou um amigo. Em 1998, trinta anos depois, ele voltou lá... E sobretudo continua a escrever sobre os encontros, felizes e menos felizes, que ele teve com os povos guinéus. Na Net fui encontrar um fabuloso texto (presumivelmente, excertos de um livro que ele anda a escrever). Tomem nota:

Na bolanha, dá para pensar... (13.02.2005)


18 de Maio de 2005:

Amigo David Guimarães:

Cá recebi o seu e-mail, fiquei muito sensibilizado pela sua gentileza. Como todos os que passaram por aquela guerra, naqueles vinte e quatro meses, a Guiné-Bissau é hoje uma terra mítica, algo inesquecível que vive presente para todo o sempre na nossa cabeça. Daí a necessidade de buscar algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra, o que se torna para nós uma forma de dizer que estamos vivos.

Meu bom amigo, também fui companheiro de luta na nossa querida Guiné, como elemento da CCAC 2636 (companhia açoreana) e fizemos o percurso coroa com o seu início em Brá-Có (fizemos a segurança da estrada alcatroada para Pelundo e ligação a Teixeira Pinto).

O Pelundo era a região onde, em 20 de Abril de 1970, o comando de zona do PAIGC traíu as negociações que decorriam com o grande Chefe General Spínola para a rendição das forças do PAIGC que operavam naquela zona e a respectiva população), fazendo o PAIGC o assassinato dos três majores, Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório.

Depois saltámos para a zona leste, para Bafatá, ficando metade da companhia adstrita ao Batalhão de Caçadores 2856, e a outra metade ao Esquadrão de Cavalaria 2640. No leste e naquela altura o homem grande da guerra o era o Carlos de Almada, o célebre Chefe Gazela.Um grupo de combate entrou em auto-defesa em Ualicunda, outro em Sare Uale na linha limite da fronteira do Senegal, ficando a base do comando destes dois grupos sedeada em Contuboel. Os outros grupos ficaram em actividade operacional no sector leste com sede em Bafatá, para cortar a eficácia de ataque do PAIGC,
assim tudo o que era risco foi batido em operações de sector como sejam Fá Mandinga, Xime, Bambadinca, Porto Cole, Capé e Mansomine (Mansomine, de má memória, na durissíma Operação Fareja Melhor onde tivemos a primeira baixa, que foi um voluntário que, em acto de coragem e bravura, quis dar solidariedade ao grupo a procurar, detectar e aniquilar quaisquer elementos inimigos, destruindo todos os meios de vida e recuperar as populações civis sob controlo inimigo.

No leste tudo quanto foi matas, rios ou bolanhas foi por nós calcorreado à procura de quem não prometeu vir até nós, para tudo quanto mais não fosse dialogar os caminhos da paz. Por fim, assentamos arraiais em Sare Bacar, a pouco mais de cem metros da linha limite com o Senegal.

Operacionalmente estivemos em exercício em Pirada e Paunca, ficando com dois grupos de combate estacionados em Sare Aliu, Sene e Sora (corredores de infiltração do PAIGC para selecção de guerrilheiros e por onde infiltravam o armamento pesado).

Meu bom amigo, muitas peripécias se passaram fizemos a guerra sem querer, enfim agora isto faz parte da história que está pouco passada para o papel. Temos de unir esforços e todos contar o que foram aqueles dias, não podemos deixar para trás o que foram esses tempos e deixá-los esfumar-se como o fumo de um cigarro.

Meu bom amigo vou deixar-lhe os meus contactos:

(i) Casa: João José Braga Neves Varanda,
[...]

(ii) Serviço: João José Braga Neves Varanda, Serviços Académicos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Secção de Alunos), Porta Férrea - Paços da Escola, 3004 - 545 Coimbra.

Deixo-lhe os meus préstimos para tudo o que desejar de Coimbra. Não quero findar este e-mail sem dizer ao meu bom amigo que estou a escrever um livro de memórias sobre a nossa passagem pela guerra colonial na Guiné-Bissau.

Com um grande abraço.
Varanda

Guiné 63/74 - P24: O ataque ao destacamento de Banjara (1968) (1) (Marques Lopes)

Texto enviado por A. Marques Lopes, Coronel (DFA) na situação de reforma.

1. Os que já me conhecem neste grupo, sabem que o meu endereço anterior era banjara@netcabo.pt (o tal que tive de mudar).

Vou-vos falar sobre Banjara. Não havia população civil e estava cercado por mata. Estava só um pelotão, 30 efectivos. A um quilómetro havia uma fonte onde, alternadamente, os nossos e o PAIGC se iam fornecer de água. Às vezes, encontravam-se… Mas havia uma fuga concertada dos dois lados, sem tiroteio. Ficava a 45 kms da sede da companhia (a CART 1690, em Geba).

Como podem ver pelo mapa [do sector de]Geba que já vos enviei, tinha do lado esquerdo a base de Samba Culo do PAIGC e do lado direito a base de Sinchã Jobel. Os abastecimentos eram feitos por terra, com grandes dificuldades. Às vezes demoravam muito tempo, pelo que era necessário recorrer aos "produtos" da natureza, isto é, apanhar algum bicho para comer (javalis, pássaros, macacos e, até, cobras). Neste ataque de que vos dou o relatório, tentaram fazer o mesmo que em Cantacunda, mas sem sucesso.


2. Ataque a Banjara:

24 de Julho de 1968.

"Desenrolar da acção: No passado dia 24, pelas 18H00, o destacamento de Banjara foi atacado por numeroso grupo IN, estimado em cerca de 80 elementos (Bigrupo reforçado) com o seguinte armamento:

-Morteiro 82

-Morteiro 60

-Bazooka

-Lança-Rocketes

-Metralhadoras pesadas

-Armas ligeiras


"O ataque terminou às 19H15. Verificou-se que, durante o ataque, as NT sofreram 1 morto e 2 feridos, tendo sido atingido por uma granada de morteiro a caserna e por uma granada do lança-rocketes o depósito de géneros.

"O ataque foi efectuado no sentido Norte-Sul tendo o IN instalado alguns elementos do lado Sul. Verificou-se que mal o IN abriu fogo com os morteiros 82 e 60, alguns elementos correram imediatamente para a rede de arame farpado, cortando o arame nalguns sítios, procurando penetrar no aquartelamento. No entanto, devido à pronta reacção das NT, não o conseguiram, tendo sido obrigados a retirar, após o que continuaram a flagelar o aquartelamento sem, contudo, causarem mais baixas às NT.

"Diversos: A hora a que o ataque se realizou quase que coincidiu com a hora da terceira refeição. Verificou-se que a maioria dos soldados se encontravam a tomar banho, pois tinham acabado de jogar uma partida de futebol.

"O impacto inicial do ataque foi sustido principalmente pelo soldado Manuel da Costa que, mal se iniciou o ataque, correu para a metralhadora pesada Breda e, sem ser apontador da mesma, pô-la imediatamente [em acção] e manteve-se sempre nesse posto, e pelo soldado José Manuel Moreira da Sila Marques que, sozinho, em virtude dos outros dois camaradas que constituíam a esquadra do morteiro 81, terem sido feridos, funcionou com o mesmo, tendo a presença de espírito para, a certa altura, e após ter verificado que algumas das granadas estavam sujas de terra, despir os calções para limpar as mesmas e poder assim continuar a bater o IN com um fogo bastante certeiro.

"A coluna de socorro, constituída por 1 PEL REC do EREC [Esquadrão de Reconhecimento]2350, 1 GR COMB da CART 1690 e pelo PEL CAÇ NAT 64, saiu de Saré Banda às 07H30 do dia 25 (e tal deveu-se a ter sido necessário recolher as forças que executavam a Operação Iluminado) e atingiu Banjara às 15H00, pois foi necessário picar toda a estrada até ao destacamento de Banjara.

"Quando a coluna lá chegou ordenei que um GR COMB batesse toda a região, tendo o mesmo detectado várias manchas de sangue e pedaços de camuflado IN, e munições de armas ligeiras.

"Devido às baixas, deixei uma secção a reforçar o destacamento de Banjara, tendo em seguida regressado a Geba.

"Resultados obtidos:

"Baixas sofridas pelo IN: dois mortos confirmados; várias baixas prováveis; material capturado: munições de armas ligeiras e uma granada de morteiro 82".

Nota de L.G.
- As fotos sobre Banjara estão (ou vão estar muito em breve) disponíveis na página Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (3) > Ontros Sectores da Zona Leste

sábado, 21 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P23: Os anjos da morte (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga:

Bambadinca, 20 de Agosto de 1969:


Nisto os páras são bons. Têm de ser bons. Tiram efeito do factor surpresa. Do terror que vem dos ares. Como os anjos do céu das visões místicas de Santa Teresinha, empunhando espadas de fogo, eles caem fulminantes sobre o objectivo e em poucos minutos desbaratam o IN ou obrigam-no a uma retirada desastrosa. Os seus contactos com tudo o que mexe no chão são breves mas mortais. Vejo nos meus camaradas, milicianos, uma secreta, inconfessável, admiração por esta elite da tropa.

A nós, tropa-macaca, puseram-nos no anfiteatro, em semicírculo, nas proximidades da bolanha do Rio Biesse. Eles são os actores, nós os espectadores. Quando muito somos simples figurantes. É uma peça de teatro com três actos. Acto final: um heliassalto, a presa, os roncos... Eles são chitas, especialistas nos 100 metros. Nós, somos chacais, verdadeiros corredores de fundo. Eu cheiro a merda que tresando, aqui postado na orla da mata.

Há um mês que andamos pela região de Camará [ a nordeste de Mansambo, no regulado de Badora, no limite do Sector L1] em patrulhamentos ofensivos. De dia e de noite, ao calor e à chuva, como uma matilha de cães a reconhecer o terreno, a bater a coutada, a farejar a caça, para depois virem os anjos do céu, em formação, em voso raso sobre os palmares, cair sobre as pobres presas encurraladas.

A primeira vaga é lançada a oeste da bolanha, penetrando os paras logo de imediato na espessa mata que se estende para sul e onde há dias tínhamos localizado um acampamento. Eles vêm de Bafatá, de helicóptero. Impecáveis no seu fato camuflado de arcanjos da morte. Frescos, perfumados.

Devido ao mau tempo, os T-6 não puderam bombardear previamente a zona. De qualquer modo, o helicanhão, aterrador como um dragão alado, lança o pânico entre os guerrilheiros, pondo-os em debanbandada, enquanto na estrada as forças de Mansanbo fecham o cerco, cortando uma possível retirada para Biro, do outro lado da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

Cinco minutos depois é capturado um guerrilheiro armado de RPG-2. Do interrogatório sumário, os paras arrancam-lhe poucas informações. Diz apenas chamar-se Malan Mané, pertencer a um bigrupo (reforçado, ou sejam, oitenta homens), comandado por Mamadu Indjai e disperso em pequenos grupos pela mata. Pelo apelido, Mané, parece-me ser mandinga. Ficará aqui preso em Bambadinca, depois de esprimido pelos paras e pelos pides.

Sucedem-se mais duas vagas de helicópteros e os paras passam então a percorrer a mata no sentido norte-sul. Ouvem-se tiros de rajada, para além do matraquear do helicanhão: são feitos dois mortos e capturadas três armas automáticas. Fraco resultado, fraco ronco, para tanto aparato bélico. Afinal, trata-se de uma operação a nível de agrupamento, envolvendo o sector L1 (Bambadinca) e o COP 7 (Bafatá).E, no mínimo,o combate não é leal: há um guerrilheiro para cinco combatentes nossos...

Quanto a acampamentos ou arrecadações de material, nada de importante é detectado. Passado o efeito de surpresa, os guerrilheiros, dispersos em pequenos grupos, conseguem fugir da zona do heliassalto, e retiram-se muito provavelmente na direcção do Biro.

O pano cai sobre o palco: a tropa especial regressa a Bafatá, a tropa-macaca segue para Bambadinca e Mansambo.

PS - Soube-se mais tarde que Mamadu Indjai, o mítico comandante do Sector 2 no meu tempo, foi ferido com gravidade em trocas de tiros com as forças de Mansambo e evacuado. Fiquei com uma secreta admiração por este homem que nunca chegarei a conhecer. Nem sei se hoje está vivo ou morto, depois das lutas fraticidas que ocorreram no seio do PAIGC antes e depois da independência. Lisboa, 21.05.2005.

sexta-feira, 20 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P22: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)

1. Desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

Nove meses depois, fez-se a abertura desse itinerário, mais exactamente a 4 de Agosto de 1969. Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Destacamento A.

Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.

O mês de Agosto de 1969 foi de actividade operacional intensa no regulado do Corubal, onde o IN se tinha instalado, dispondo de uma cadeia de acampamentos temporários que lhe dava ligação às suas bases mais recuadas, junto ao Rio Corubal, a oeste portanto da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

Nesse mês, as tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará, e as NT (CCAÇ 12 e CART 2339) tinham sido atacadas ou flageladas. Por exemplo, a 15 de Agosto, Camará tinha sido duramente atacada por um grupo IN, com armas automáticas, morteiro 82 e metralhadora pesada 12.7,, sofrendo a população (fula) três mortos e nove feridos.

A actividade operacional no mês de Agosto culminaria com a Op Nada Consta, em que intervieram forças paraquedistas, que fizeram um heli-assalto a um acampamento IN previamente identificado, na região de Camará, enquanto as restantes forças das NT (CCAÇ 12, PEL CAÇ 53 e CART 2339) faziam manobras de emboscada, cerco e eventual perseguição, nas proximidades da bolanha do Rio Biesse.

Tratou-se de uma operação conjunta do Sector L1 (Bambadinca) e do COP 7 (Zona Leste, Bafatá). Na primeira vaga de assalto, os paras fizeram um prisioneiro, armado de RGP-2, de seu nome Malan Mané. Através dele soube-se que no local havia 80 homens, comandados por Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata. Nessa operação, o IN sofreu ainda dois mortos e vários feridos graves, entre os quais o seu comandante (soube-se mais tarde), vítima de emboscada pelas forças da CART 2339, montada no itinerário Mansambo-Xitole.

O IN retirou na direcção de Biro.Os paras foram a este acampamento no dia seguinte, capturando mais material.

2. A 30 de Agosto, os 1º, 3º e 4º Gr Comb da CCAÇ 12 fizeram um patrulhamento ofensivo na região do Rio Biesse, passando por Demba Ioba, Sambel Bere e Sinchã Mamadi, até à estrada de Mansambo. Ao longo trajecto, e utilizando o prisioneiro como guia, percorreram nada mais do que seis acampamentos do IN, recém-abandonados, ao longo de um trilho principal que conduzia à região de Biro.

No primeiro acampamento, encontrou-se o cadáver de um chefe IN, identificado pelo guia e prisioneiro, e que teria morrido em consequência de ferimentos recebidos em combate, durante a Op Nada Consta, a 18 de Agosto. Em escassos dias, em menos de duas semanas, as formigas carnívoras e os abutres tinham-no reduzido a um esqueleto desconjuntado. Vestia uma espécie de dólmen impermeável, ainda em bom estado, assim como as botas. Num outro acampamento a seguir, foi encontrado um maço de cartas escritas em árabe (Mamadu Indjai era mandinga e muçulmano), com a planta do aquartelamento de Mansambo, as posições da artilharia, a localização dos abrigos-casernas e dos espaldões de morteiro.

3. Para dar uma ideia do carácter quase pioneiro das primeiras colunas que a CCAÇ 12 efectuou na estrada Mansambo-Xitole, com viaturas exclusivamente militares e num itinerário em muitos troços intransitável, esburacado pelas minas e pela erosão das chuvas, invadido pelo capim e pelos arbustos, em que se tornava necessário fazer a picagem de mais de 3O Km, e sempre com o fantasma do IN a acompanhar as NT, vale a pena transcrever aqui um trecho do relatório da Op Belo Dia III, em que participaram o 2º e o 4º Gr Comb da CCAÇ 12, juntamente com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Dest A (A distância de Bambadinca, a Mansambo, Ponte dos Fulas, XItole e Saltinho era, respectivamente, 18, 33, 35 e 55 quilómetros, segundo informação do Humberto Reis, que dispõe dos 73 mapas cartográficos da Guiné-Bissau à escala de 1/50000):

"A coluna de reabastecimento atingiu Mansambo, proveniente de Bambadinca, às 17.30h do dia 7 de Novembro de 1969, tendo 1 Gr Comb da CART 2339 patrulhado e picado o itinerário até ao limite N da sua ZA [Na prática, percorreu a distância de 18 km., entre Bambadinca e Mansambo à velocidade de 1 quilómetro e meio por hora].

"O Dest A [CART 2339 e CCAÇ 12] partiu de Mansambo às 5.00h do dia seguinte para cumprimento da sua missão [ou seja, prosseguir com a coluna até ao Xitole]. A escassas dezenas de metros a sul da ponte do Rio Bissari foram detectadas e levantadas 2 minas A/P [antipessoal], tendo-se verificado pela sua análise que se encontravam montadas há muito tempo (fazendo parte provavelmente do campo de minas implantadas pelo IN e detectadas no decurso da Op Nada Consta).

"Entretanto fora tentada por várias vezes a montagem de guardas de flanco, sem contudo se ter conseguido devido à densa arborização do terreno, o mesmo se verificando a partir do Rio Bissari por a natureza do terreno, bolanha com muita altura de água, capim bastante alto com densas manchas de lianas entrançadas, impossibilitar a progressão.

"Num troço de 3 Km, compreendido entre 1 Km após a ponte do Rio Bissari e 1 Km antes da ponte do Rio Jagarajá, a coluna ia sofrendo atascamentos sucessivos conjugados com avarias [mecânicas]que impossibilitavam uma progressão normal.

"Entretanto verificou-se o atascamento da 7ª viatura que ficou completamente enterrada no lodaçal do itinerário, e de mais algumas viaturas que se Ihe seguiam e que foi impossível desatascar.

"Foi decidido então fraccionar o Destacamento A [CART 2339 e CCAÇ 12] deixando 2 Gr Comb no local a tentar desatascar as viaturas e mandar prosseguir o resto da coluna até ao encontro do Dest B [CART 2413, Xitole], o que se verificou pelas 15.30h.

"Feito o transbordo, foi decidido pelo PCV [posto de comando aéreo] que o Dest B regrasse ao Xitole, vindo no dia seguinte transportar a restante carga. Entretanto deixaria um Gr Com (-) a reforçar o Dest A que pernoitou junto das viaturas, montando segurança próxima à estrada.

"Às 5 da manhã do dia 9 [dois dias depois do início da operação], iniciou-se o transbordo da carga para as viaturas que estavam à frente da viatura imobilizada e que entretanto fora desatascada, embora continuasse avariada. Pelas 8h, contactou-se com o Dest B que entretanto se aproximara, fez-se o transbordo da carga, reorganizou-se a coluna e empreendeu-se o regresso a Mansambo que foi atingido pelas 11.45, não sem ter havido mais alguns atascamentos".


4. A próxima coluna logística realizar-se-ia a 30 de Novembro de 1969, segundo um novo conceito de execução (Op Alabarda Comprida). Foram constituídos 3 Destacamentos:

(i) Ao Dest A (2 Gr Comb da CCAC 12) coube a missão de escoltar a coluna até ao Xitole, formando três fracções (na testa, no meio e na rectaguarda) e reagindo pelo fogo e pela manobra a toda e qualquer acção IN;

(ii) Os Dest B e C (6 Gr Comb, das CART 2339 e 2413) constituíam uma força de segurança descontínua ao longo do itinerário Bambadinca-Mansambo-Xitole (cerca de 35 km), patrulhando e montando emboscadas nos locais de mais provável utilização pelo IN para uma eventual acção contra as NT.

A coluna decorreu normalmente, tendo chegado ao Xitole por volta das 11h da manhã e regressado nesse mesmo dia, contrariamente ao que se estava previsto (e se temia), uma vez que o estado do itinerário era péssimo. Pelo Dest C (CART 2413, Xitole) foram detectados vestígios recentes dum grupo IN, estimado em 20/50 elementos, que teria vindo do Galo Corubal em acção de reconhecimento.

A actividade operacional da CCAÇ 12, durante o mês de Outubro de 1969, caracterizar-se, de resto, pela ausência de contacto directo com o IN que não deixou, no entanto de manifestar-se, apesar de particularmente afectado pela destruição de três acampamentos importantes - Camará e Biro (Op Nada Consta, a 18 e 19 Agosto); e Poindon (Op Pato Rufia, 27 de Setembro) -, captura de material, baixas humanas e evacuação do comandante do Sector 2 (Mamadu Indjai, um dos míticos comandantes da guerrilha do PAIGC que já em 26 de Fevereiro de 1969 se destacara pelo ataque a duas lanchas da marinha no Rio Buba).

No referido mês de Outubro de 1969, o IN flagelou num só dia o destacamento de milícias de Taibatá (pelas 9.30 h.), o Xime (às 14h.) e Mansambo (16h.), estes útimos duas unidades da NT em quadrícula (CART 2520 e 2339, respectivamente).

A 14 de Novembro, a CCAÇ 12 efectuaria a última coluna logística para Xitole/Saltinho, integrada numa operação. Após o regresso, os Gr Com das unidades em quadrícula na área, empenhados na segurança da estrada Mansambo-Xitole, executariam um patrulhamento ofensivo entre os Rios Timinco e Buba, não tendo sido detectados quaisquer vestígios IN (Op Corça Encarnada).

A partir de então, estas colunas de reabastecimento das NT em unidades de quadrícula, aquarteladas em Mansambo, Xitole e Saltinho, tomariam um carácter de quase rotina, passando a realizar-se periodicamente (duas vezes por mês, em média), e com viaturas civis, escoltadas por forças da CCAÇ 12. A segurança ao longo do itinerário continuava, no entanto, a movimentar seis Gr Comb das unidades em quadrícula de Mansambo, Xitole e Saltinho. Na prática, isto significava que o abastecimento das NT nestas tês unidades implicava a mobilização de forças equivalentes a um batalhão (3 companhias).

O Saltinho, embora passasse a depender operacionalmente do Sector L5 (Galomaro), a partir da data em que as NT evacuaram Quirafo, continuava no entanto ligada ao Sector L1 para efeitos logísticos, uma vez que a estrada Galomaro-Saltinho se mantinha parcialmente interdita desde o início das chuvas devido à actividade do IN na região.

(Sobre a situção posterior nesta região, veja-se o depoimento de um operações especial, o Eusébio, que esteve no Saltinho, entre finais de 1971 e Março de 1974).

quarta-feira, 18 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P21: O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968) (Marques Lopes)

Texto da autoria de A. Marques Lopes, coronel (DFA), na situação de reforma, que esteve, em 1967, na Zona Leste da Guiné, sub-sector de Geba, integrado na CART 1690:

Caros amigos:

Vou-vos, então, dizer alguma coisa sobre Cantacunda. Era um dos destacamentos da CART 1690, em 1967 e 1968 (regressou em Março de 1969), que tinha sede na tabanca de Geba. Esta companhia tinha uma quadrícula de 1.600 km2 na zona do Óio. Os nomes dos destacamentos estão indicados no mapa do Geba. Mas, desses nomes, Sinchã Jobel e Samba Culo eram bases do PAIGC. Um dia hei-de falar-vos deles.

Conheci bem este destacamento de Cantacunda. Caracterizava-se pelas péssimas condições das instalações do pessoal e pelos deficientíssimos meios e condições de defesa. Ficava a cerca de 50 kms da sede da companhia. Sem luz eléctrica (como todos os destacamentos da CART 1690), nem um miserável gerador. Estava, como se vê pelo relatório (e pelo mapa que vos envio), pegado à floresta.

O armamento era: umas ultrapassadas metralhadoras pesadas Dreyses e Bredas, morteiro 81 e 60. Os abrigos eram uns buracos (ver a fotografia que envio), de difícil acesso e sem condições interiores. E com poucos efectivos, um pelotão, normalmente. No dia deste ataque estavam lá apenas duas secções. Eu não estava, na altura. Situava-se relativamente perto da base de Samba Culo, do PAIGC.

O soldado Aguiar (João Alves Aguiar) foi o único que tentou resistir com a G3 à boca do abrigo e morreu, por isso. Onze foram capturados, entre eles o furriel que comandava o destacamento, o Vaz. Foram libertados, depois, aquando da tentativa de invasão na Guiné-Conakri (Operação Mar Verde). Menos o Armindo Correia Paulino e o Luís dos Santos Marques, que morreram lá de cólera. Apesar das péssimas condições e dos fracos efectivos, é evidente (e sei que foi assim, porque me contaram) que houve desleixo e facilitismo em excesso. Se não tivesse havido, não tenho dúvidas que as coisas não teriam sido tão fáceis para os atacantes.


Ataque a Catacunda. 10/11 de Abril de 1968. Desenrolar da acção:


"No dia 10 do corrente cerca das 00H00, o destacamento de Cantancunda foi atacado por numeroso grupo IN.

"Devido à hora a que o ataque foi realizado, a guarnição do destacamento encontrava-se quase toda a dormir na caserna. Devido à configuração do terreno (do lado Norte do destacamento existe uma floresta que dista, no máximo de 5 metros do arame farpado; do lado Poente essa floresta prolonga-se e verifica-se que havia 2 aberturas no arame farpado:uma que durante a noite era fechada com um cavalo de frisa, outra que devido às obras e construção da pista de aterragem se encontrava aberta; do lado Sul existia a tabanca cujas moranças confinavam com o arame farpado; do lado Nascente existe uma bolanha), e devido também à falta de iluminação exterior, o IN pôde aproximar-se do arame farpado sem ser detectado pelas sentinelas e abrir fogo com bazookas e lança rocketes sobre a caserna, tendo em seguida atacado pelos lados Norte, Poente e Sul: pelo lado Norte o IN atirou com troncos de árvores para cima do arame farpado tendo em seguida ultrapassado o mesmo; do lado Poente afastou o cavalo de frisa e penetrou por essa abertura, e pelo lado da pista; pelo lado Sul infiltrou-se pelas tabancas que queimou e em seguida penetrou no aquartelamento.

"Devido à simultaneidade com que os movimentos foram efectuados (os mesmos foram comandados do exterior por apitos), verificou-se que as NT não puderam atingir os abrigos e foram surpreendidos no meio da parada. Note-se, contudo, que alguns elementos das NT ainda conseguiram atingir os abrigos (por exemplo os 1°s. Cabos Esteves E Coutinho e os Soldados Areia e Aguiar, tendo este último sido morto no local e os restantes conseguido escapar).

"Devido ao numeroso grupo IN não foi possível contudo organizar uma defesa eficaz pelo que as NT foram obrigadas a abandonar o destacamento. No entanto só 9 elementos é que conseguiram escapar, tendo 11 desaparecido (provavelmente feitos prisioneiros) e 1 morto.

"Possíveis causas do insucesso das NT:

- O poder de fogo do IN;

-O grande numero de elementos que constituíam o grupo IN;

-A violência com que o ataque foi desencadeado;

-A pontaria certeira do grupo IN, que acertou os primeiros disparos na caserna das NT;

-O comando eficaz do grupo IN;

-A falta de iluminação existente no destacamento;

-Possível insuficiência de abrigos;

-As proximidades da mata do arame farpado;

-As proximidades da tabanca do arame farpado;

-O reduzido efectivo das NT;

-Possível abrandamento das condições de segurança;

-Longa distância deste destacamento à Sede da Companhia (cerca de 50 kms)

"Comentários: Posteriormente veio a saber-se, por declarações de alguns milícias e elementos da população civil detidos para averiguações, que o ataque teve a conivência do próprio Comandante da milícia e de elementos da população [local]. Todos os elementos que [o IN] precisava, tais como distâncias para colocar as armas pesadas, local da entrada no destacamento e vias de acesso ao mesmo, foram fornecidos por eles."

Um abraço.

A. Marques Lopes

Nota de L.G. - As fotos estão disponíveis na página Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (3) > Ontros Sectores da Zona Leste

terça-feira, 17 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P20: Foi você que pediu uma Kalash ? (David Guimarães)

Texto da autoria de David. J. Guimarães (ex-CART 2716, Xitole, Sector L1, Zona Leste, Guiné, 1969/71):

Como é possível que nós tenhamos saudades... até de armas ? É verdade, a costureirinha, os RPG 2 e 7, os morteiros 62 e 82 bem como os 120 mm, os canhões em recuo, etc...

Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!

Isto, esta guerra tremenda, também tinha os seus episódios anedóticos, por falta de experiência [da nossa parte]. Lembro-me bem primeiro ataque ao quartel do Xitole: ai que nós estávamos lá há pouquinho tempo!... Bem, foi assim: no início da noite ouve-se uns estampidos de espingardas junto ao (mas do lado de fora do) aquartelamento. Todo o mundo correu para as valas e despejou-se em toda a volta do aquartelamento uns vinte minutos de fogo!!! Sabem o que estou a dizer. Isso mesmo, todos para seu lado, direitinhos como aqui tínhamos aprendido. Disparávamos para as zonas donde poderiam vir eles! Ouvimos cessar fogo, alguém aos berros....

As armas pesadas, os nossos morteiros 81, tinham resolvido o problema e eles tinham nos assustado mesmo. Deram meia dúzia de tiros e apanharam com granadas de morteiro nas costas... É claro que estes homens de armas pesadas eram aqueles que ficavam nas sobreposições e, durante um tempo, eram quem nos valia... Não fossem eles e nem faço ideia o que aconteceria...

Então comecei a perceber por que razão, logo ao desembarcar do Xime, a caminho do Xitole, via dedos em riste a chamar-nos periquitos... É isso mesmo, a guerra também tinha que ser aprendida no terreno... Nem Caldas da Rainha nem Vendas Novas nem nenhum campo militar daqui - nem tão pouco as urzes e tojos do monte de Santa Luzia, em Viana... Qual quê?!

Lembrei-me na altura de um aspirante de Lamego que em Viana explicava assim:
-Vocês façam isto, fitem o inimigo e atirem assim!...

Sábias palavras de quem fazia a guerra em Viana e enfim estava convicto que o que vinha nos livros é que estava certo:
- Não se esqueçam, caminhem curvados, o primeiro olha para a esquerda, o segundo para a direita, a arma aperrada à cintura.... Assim, sempre até ao último homem do grupo de combate... etc., etc., etc.

Um camarada que eu rendi na Ponte dos Fulas e que era de Almada (da companhia anterior, nem sei o nome) dizia-me:

- Olha, Guimarães, aqui não é a Metrópole, nós é que sabemos o que fazemos. Eles lá não percebem puto disto...

Ele tinha razão, pois tinha!...

Hoje envio três fotografias. Queria falar um pouco de algo que não vi nos filmes tão bem feitos que o Sousa e Castro fez o favor de me enviar e que se referem à visita dos camaradas à Guiné[em Novembro de 2000].

No Xitole, para lá da pista de aviões, a 5 Km há uma ponte que atravessa(ava) o Rio Corubal, ligando a estrada de Bambadinca-Xitole à Aldeia Formosa.... Essa ponte está interrompida com um pegão dentro da água... Essa ponte mantem-se lá, inoperante, e não foi reconstruída...

A história é que essa ponte teria sido interrompida pela nossas tropas no início da guerra. Outra versão é que que tinham sido os naturais. Uma terceira versão é que tinha sido o Corubal e as chuvas que teriam causado o colapso da ponte... Fico à espera que alguém me conte a versão verdadeira. Alguém da Guiné saberá? Desconfio que não, pois dela resta a história somente.

Seguem em anexo duas fotografias da tal ponte [a Ponte Marechal Carmona], pois ela é só meia ponte: a fotografia que mostra a interrupção, não saiu, que pena! Mas, enfim, é essa. Onde estou eu é exactamente na entrada do lado do caminho para o aquartelamento... Nota-se que ela está inclinada... Era importanete esta zona, pois que, como em todas as pontes, eram feitas operações de reconhecimento regulares...

Segue aí outra fotografia de um amigo. Um rapaz que na altura trabalhava na nossa ferrugem [a oficina de mecânica auto]. Hoje é motorista do Governador (...). Logo me chamou pelo nome recordando-se muito bem de mim, 30 anos depois:
- Saido Baldé (era o Saido)... Guimarães!!! A viola???

Isso mesmo, eu tocava viola também.... Sei que, em Bambadinca, Vacas de Carvalho e um Alferes Machado, do meu Batalhão, tocavam também. Um Português combatente terá sempre um instrumento de música ao lado, e gente ligada ao fado: é o nosso fado...

David J. Guimarães

segunda-feira, 16 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P19: O festival das kalash, das "costureirinhas", dos rockets e dos katiousha (Luís Graça)

1. No Sector L1, na Zona Leste da Guiné, ao tempo da 1ª comissão da CCAÇ 12 (Maio de 1969/Março de 1971), o armamento utilizado pela guerrilha do PAIGC (o IN, para abreviar) era equivalente ou até superior ao nosso.

Esse armamento era praticamente todo de origem soviética, produzido na ex-URSS ou noutros países do bloco soviético. Mas também de origem chinesa. De facto, recordo-me de termos também apreendido material de fabrico chinês (por exemplo, granadas de RPG).

Na época, e pelo menos na Zona Leste, o IN não dispunha, naturalmente, de meios aéreos ou navais nem de artilharia pesada. Não me consta, por exemplo, que tivesse antiaéreas, apenas referenciadas no meu tempo nas zonas fronteiriças, no norte e no sul (Parece que a metralhadora mais usada pelo PAIGC, tal como pela FRELIMO, era a ZPU-4, uma arma de quatro canos, de calibre 14.5, de fabrico soviético, instalada em reboque).

De uma maneira geral, um bigrupo (40 a 50 guerrilheiros) estava equipado com o seguinte armamento ligeiro:

(i) pistolas-metralhadoras PPSH, de calibre 7.62, de origem russa(as famosas e enervantes “costureirinhas"): não tinha equivalente nas NT, já que no mato não usávamos a pistola-metralhadora fabricada na FBP; a PPSH (ou Shpagin) tinha uma cadência de tiro 700/900 por minuto, e usava dois tiposd e carregadores: um circular (tambor) e outro curvo;

(ii) espingardas automáticas Kalashnikov, dotadas de carregadores curvos de 30 munições de 7.62 (com uma cadência de tiro, portanto, superior à nossa G-3, que dispunha de carregadores de 20 munições, de 7.62); era considerada uma arma de elite, pelo que nem todos os combatentes do PAIG a podiam usar;

(iii) espingarda semiautomática Simonov, também de origem russa e do mesmo calibre, dotada de uma baioneta extensível (era vulgar encontrar-se nos acampamentos do IN, sendo possivelmenet mais utilizada por elementos da população em autodefesa, nas áeras controladas pela guerrilha);

(iv) metralhadoras ligeiras Degtyarev, também de calibre 7.62, com tambor (não sei se eram melhores ou piores que a nossa HK-21, de fita, que encravava com alguma facilidade, nas difíceis condições do mato, debaixo de fogo, com o calor, com a chuva, com o pó...);

(v) 2 morteiros de 60;

(v) vários RPG-2 ou RPG-7 (Os RPG são lança-granadas-foguetes antipessoal).

A kalash, a famosa AK-47, desenhada pelo russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov (nascido em 1919) equipava na altura todos os exércitos de guerrilha do mundo, além dos exércitos do Pacto de Varsóvia. Até meados dos anos 90 calcula-se que se tenham fabricado mais de 70 milhões de kalash, de acordo com o modelo oficial ou em versões pirateadas.

Esta arma continua no imaginário de todos os ex-combatentes da Guiné. Recordo-me de em Bambadinca, no regresso da operação de invasão a Conakry (Op Mar Verde), alguns militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos andarem a oferecer-nos kalash, novinhas em folha, que faziam parte parte dos seus roncos, pelo preço de três ou quatro garrafas de uísque velho ou dez de uísque novo (500 escudos).



2. Segundo informações de um prisioneiro feito pelas NT, na região do Xime, de nome Malan Mané, de etnia balanta, em Julho de 1969 o grupo especial de roqueteiros da zona do Poidon que se deslocavam todas as manhãs para Ponta Varela a fim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba e/ou defender a entrada do Rio Corubal, dispunham seis lança-granadas RPG-2.

O RPG (em inglês, rocket-propelled grenade launcher), e sobretudo o RPG-7, era a arma mais temida pelos nossos soldados não só nas emboscadas, nas estradas e picadas, como sobretudo no mato, nas emboscadas em L.

O RPG-2 era uma arma anticarro, de fabrico soviético. O carregamento da granada, de formato cónico, era feito pela boca. O caklibre do tubo, era de 40 mm. E o da granada, 82 mm. O seu alcance, contra pessoal, não ia além dos 150 metros. O RPG-7 era já mais sofisticado do ponto de vista tecnol+ogico: o seu sistema de autodestruição da granada permitaia que fosse disparada para o ar, tal como o nosso dilagrama, provocando uma chuva de terríveis estilhaços.

As mortíferas lâminas de aço dos rockets foram responsáveis pela maior parte das 15 baixas (6 mortos e 9 nove feridos) sofridas pelas NT no decurso da Operação Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970, que sofremos a caminho da Ponta do Inglês.

Tanto o RPG-2 como o RPG-7 também eram muito eficazes contra as nossas viaturas, embora não praticamente não utilizassemos viatuars blindas na Guuiné (No Sector L1, havia apenas um PEL REC, praticamente inoperacional...). Contra alvos fixos o RPG era eficaz até 100 metros (O RPG-7 tinha mais alcance: 500 metros).

Muito certeiro e de fácil manejo, o RPG era muito mais adequado àquele tipo de terreno (floresta tropical e savana arbustiva, de capim alto e denso) e de guerra (de guerrilha) do que o nosso lança-granadas, a pesada bazuca americana de 8.9, uma clássica arma anti-tanque... O mais caricato é que as NT só dispunham de munições anti-carro (!). Devido ao seu peso, o transporte das granadas de bazuca, sobretudo em operações no mato, eram um problema, pelo que era frequente recorrer-se a carregadores nativos. Só mais tarde passámos a usar o lança-granadas dos paraquedistas, de calibre 3.7.

Em cada um dos grupos de combate da CCAÇ 12 havia pelo menos um ou dois apontadores de dilagrama (dispositivo de lançamento de granadas de mão). Mas esta arma não gozava das nossas simpatias, por ser perigosa e pouco eficiente: a primeira morte a que assisti, a meu lado, a do Ieró Jaló, do 1º Grupo de Combate foi causada por um dilagrama (Região do Xime, Op Pato Rufia, 8 de Setembro de 1969).

A granada era uma granada de mão defensiva, m/963, sendo montada em suporte com um encaixe oco que se adaptava no cano da espingarda automática G-3. No seu lançamento usava-se um cartucho de salva (sem bala). Para o disparo tirava-se o carregador e introduzia-se manualmente o cartucho de salva. Este compasso de espera, aliado à impossibilidade temporária do uso da G-3 e ao risco do seu manuseamento, tornaram o dilagrama uma arma muito impopular entre as NT .

Nos ataques e flagelações às nossas posições fixas (aquartelamentos do exército, destacamentos de milícia, tabancas em autodefesa), os guerrilheiros utilizavam frequentemente o não menos temível canhão sem recuo (75, de origem chinesa, e 82, de origem soviética). Por razões logísticas e de transporte, era armas sobretudo utilizadas em ataques planeados. Tal como o morteiro 82, com um alcance de 3 km. EStas armas pesadas equipavam os grupos de artilharia, referenciados em Mangai, junto ao Rio Corubal, e Madina/Belel, no regulado do Cuor, a norte do Geba. (Vd. mapa do Sector L1).

Os grupos especiais do IN, quer de artilharia (canhão sem recuo e morteiro 82) quer de RPG, eram extremamente móveis. Em contrapartida, as NT praticamente não usavam o canhão sem recuo.

Por vezes O IN utilizava também a metralhadora pesada Goryunov, de calibre 7.62, que também podia ser usada como antiaérea. E sobretudo a Degtyarev, de origem russa, mas de calibre 12.7, equivalente à nossa Breda ou à nossa Browning(que estava instalada nalguns aquartelamentos: em Bambadinca, por exemplo, varria a pista de aviação). Pelo menos num dos ataques uma tabanca em autodefesa, Afiá, Candamã opu Camará (já não me lemrbo qual),no regulado de Badora, foram encontrados invólucros de 12.7, portanto da Degtyarev.

Ainda no nosso tempo apareceram, na Guiné, os primeiros foguetões Katiousha, de 122 mm, inicialmente pouco certeiros, é certo, mas com grande poder de destruição e não menos impacto psicológico junto das NT e populações. De fácil manejo e de relativamente fácil transporte, seriam utilizados preferencialmente contra os grandes alvos militares (aeroporto de Bissalanca…) e concentrações urbanas (Bolama, Bissau...).As granadas, com um peso de 18 kg. (dos quais 6.5 de explosivo), tinha um raio de morte de 160 m2, e ao explodir produzir cerca de 15 mil estilhaços.

Só mais tarde, já em 1973, apareceriam os mísseis terra-ar que os egípcios também utilizaram contra os tanques israelitas na guerra do Kippour. Com eles seria posta em cheque a nossa até então incontestada supremacia aérea.

Recorde-se que a utilização dos mísseis terra-ar Strella (SA-7 Grail-Strella) pelo IN, pela primeira vez em 25 de Março de 1973, foi responsável pela queda de um Fiat G-91 (pilotado pelo tenente Pessoa). Esta arma antiaéra embora bastante efeicaz contr as nossas aeronaves (helicópteros, avionetas, bombadeiros T-6, caças Fiat G-91, subsónicos). Este míssil era dotado de um acabeça com detector de infracvermelhos,s endo por isso atraído pela fonte de calor emitida pelos motrortes das aerobnaves. A sua velocidade era impressionante (mach 1,5 ou 1600 km/hora). O seu alcance era contudo limitado: pouco mais de 3 km. Os nossos helicópteros e restantes aeronaves, para não serem atingidos, tinham que passar a rasar a copa das árvores ou voar acima dos 1500 metros de altitude.

O Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, tem uma boa página em que se compara os armamentos das duas partes em conflito. Sobre a artilharia onde, aparentemente, as NT levavam vantagem, o documento diz que "na Guiné, a situação em 1966 era a utilização dos obuses 8,8 cm por pequenas unidades (nove pelotões a duas bocas de fogo cada), mas a partir de 1968 passaram a existir meios mais modernos e mais potentes", a saber:

(i) 19 obuses de 10.5 cm, correspondendo a três baterias;

(ii) seis obuses de 14 cm, correspondendo a uma bateria;

(iii) seis peças de 11.4 cm, correspondendo a uma bateria.

"Estes últimos materiais, dado o seu alcance, já permitiam o apoio a vários aquartelamentos a partir de uma posição central, mas a falta de meios de aquisição de objectivos impedia uma contrabateria eficaz.  As dificuldades apontadas para os morteiros eram semelhantes às da artilharia, se bem que na Guiné, dada a sua menor extensão e a quadrícula mais apertada das unidades, os problemas fossem menores", pode-se ler-se ainda no documento em referência.

De qualquer modo, da comparação do IN e das NT, tira-se a conclusão da "equivalência" do armamento entre as partes em conflito: "se exceptuarmos a artilharia (com as limitações já apontadas) e as viaturas blindadas (de emprego também limitado), pode dizer-se que o combate terrestre se travou, salvaguardando os efectivos, 'entre iguais' "...

sábado, 14 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P18: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (5)

14 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Soube de vós todos através do Sousa de Castro. Aqueles que já me conhecem sabem que eu tive outro endereço, e falámos muito através dele. O que sucedeu é que tive de mudar esse endereço...A minha caixa de correio passou a ter [montes] de correspondência todos os dias, com ofertas de viagras (não é que não fizesse jeito, é claro) e outra drogas, meninas de presente e montes de outra publicidade. Enfim, era demais e fiquei farto! 

Para aqueles que eu conhecia enviei-lhes o meu novo endereço, mas não deu resultado, devido à minha nabice certamente. Devido a esta também, tive de mandar formatar o disco rígido mais de uma vez e perdi todos os endereços nele contidos.

Para todos, conhecidos e não conhecidos, é com muita satisfação que me junto ao grupo dos ex-combatentes e amigos da Guiné. 

Como vêem o meu endereço actual é cantacunda@netcabo.pt (hei-de um dia dizer-lhes o que era Cantacunda, na floresta do Oio, bem como Banjara, também na floresta do Oio).

Um abraço. A. Marques Lopes


13 de maio de 2005:

Guimarães:

Presumo que não saiba o que é feito do Banjara (António Marques Lopes, tenente coronel na reserva). Encontrei-o num site sobre a Guiné com o nome Cantacunda. Na mensagem que enviei há pouco fiz-lhe o convite para entrar no grupo. Ele possui muitos documentos sobre a guerra colonial e também sobre o 25 de Abril. "Tem de os divulgar".

Creio não ser problema no mundo de hoje podermos dizer o que nos vai na alma, temos de desabafar. Há coisas nas nossas cabeças que nem a mulher e os filhos são capazes de perceberem muito bem o que foi esse tempo. A Net é um veículo muito poderoso, temos de aproveitar este meio de comunicação para dar a conhecer à malta nova o que foi a guerra colonial na Guiné. Bom fim de semana.

13 de maio de 2005:

Humberto Reis:

Vi a mensagem que tinhas enviado ao Luís Graça, sim. Aliás ando sempre muito atento a tudo que fala na Guiné... Hoje muito mais atento ando, ainda bem que o espaço da minha companhia (todos tínhamos alguma coisa) está hoje a alargar-se. Bem para todos nós que de uma ou outra maneira andámos aquela guerra (...) No meio daquela guerra algo se saldou de extremamente positivo, a nossa fraternidade que só um combatente entende... Nem a mãe, a mulher ou o filho entenderá nunca as nossas vivências, a morte de um companheiro que, como nós era jovem e sonhava e deixou de o fazer abruptamente...

Essa operação para a Ponta do Inglês (informou-me mais concretamente o Luis Graça) ceifou aqueles nossos camaradas. Um deles que me acompanhou desde a recruta até ao momento em que desembarcámos no Xime na LDG que nos transportou... Foi a última vez que estive com aquele que um dia encontrarei no céu para lhe dar um abraço, o Cunha.

Em Bafatá, sim, conheci, mesmo no fim da minha comissão (estive lá colocado um tempinho), esse celebre café [das libanesas] e todas aquelas casas de comida e bebida... Bafatá tão linda ! Hoje como que jaz quase morta em relação áquilo que existia no nosso tempo... Tenho a sensação de que ano a ano tudo se degrada e cidades e povovoações se tornam fantasmas ... Bafatá hoje é um cortar de corações: tudo fechado, salvo uma ou outra casa...

Recordações do passado tão próximo ainda. Para isso estamos nós a recordar... ou a viver...

Continuaremos a conversa-Creio que pertencias também à CCAC 12, foste ao Xitole... possivelmente, foi lá que estive durante a minha comissão...

Um abraço... David J. Guimarães [CART 2716, aquartelada no Xitole, e pertencente ao BART 2917 > 1969/1970]

PS - Deixo aqui os meus dois endereços de e-mail: o de casa e o do local de trabalho.



12 de Maio de 2005:

É isso, David! Quer queiramos quer não acabamos a falar da "nossa", deles, Guiné.

Não sei se já viste uma mensagem que enviei para o Luís Graça sobre uma ida minha à Guiné em 1996. Voltei lá exactamente no dia em que fazia 25 anos que tinha vindo de lá (17 de Março de 71).

Por acaso também fui naquela operação dos 5 mortos, em que morreu o guia do Xime e um furriel miliciano, também do Xime (CART 2714). Coisas da vida que não deixamos de recordar, quer sejam boas quer sejam más.

Tenho "bebido" as vossas fotos de 2001 e as notícias que vão dando e lembro-me de que em 1996 quando cheguei a Bambadinca, uma ex-lavadeira (que não tinha sido a minha) me reconheceu ao fim de 25 anos. No vídeo que um amigo que ia comigo fez, nota-se perfeitamente que comecei a chorar, tal como o estou agora que estou a escrever estas linhas. Não tenho vergonha nenhuma de ter chorado.

Essa ex-lavadeira tem um sobrinho, que conheci lá nesse dia, chamado Zeca Braima Samá que é o professor de Bambadinca. Quem conheceu o célebre café das "libanesas" em Bafatá normalmente só se lembra daquelas caras bonitas, brancas, filhas da D. Rosa (ainda viva). Mas ela não tem só filhas, tem um filho, um pouco mais novo que nós, que foi páraquedista no BCP 12 de Bissalanca (já passou à peluda como tenente-coronel) e de quem tenho o prazer de ser amigo. Ele mora aqui na zona de Lisboa, mais concretamente em Linda A Velha, mas continua arreigado à terra que o viu nascer, Bafatá, e como bom libanês de antepassados, o comércio está-lhe na massa do sangue. Passa metade do ano em Bissau no negócio da castanha de cajú. Vem isto a propósito de ser ele, e o amigo que foi comigo à Guiné em 96, que me leva o material escolar para a escola de Bambadinca que eu passei a fornecer a expensas minhas desde essa data.

Esse professor, o Zeca, como eu lhe chamo, escreve correctamente o português e com uma caligrafia que faz inveja a muita gente, a começar por mim. Faz-me recordar o episódio do furriel enfermeiro do Xime da CART que teve lá um aluno que hoje é engenheiro em Portugal.

Para hoje já chega de divagações.
Recordar é viver.
Um abraço para vocês. Humberto Reis [CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > Contuboel e Bambadina > Maio de 1969/Março de 1971]

12 de Maio de 2005:

Luís Graça:

Fiquei deveras emocionado - é bom de facto existirmos como gente de bem na altura, e fomos.... Não vamos discutir os regimes vigentes nem a justiça da guerra. A guerra é sempre injusta... Mas de todo o mal que a guerra é, uma coisa trouxe a cada combatente: um amigo mais e mais. Hoje somos milhares, tipo orfeão, afinados numa mesma voz, a solidariedade do combatente...

A companhia a que pertenci [CART 2716, Xitole] faz anualmente um convívio, no último sábado de Maio... De cada vez que nos reunimos sempre voltamos aos mesmos anos e as conversas repetem-se:
- Quando houve a emboscada e tu...; e daquela vez em que a coluna e os turras...; e naquele assalto, ena que coisa terrível, tanto fogo...; e mais isto, e mais aquilo....

Assim todos os anos são as mesmas operações, as mesmas bebedeiras, as mesmas bajudas, tudo recordações que nos assaltam o espírito e lá vem novamente a história do vagomestre que se meteu no abrigo debaixo da cama quando o quartel era bombardeado e dizia Ai maezinha!...

E aquele programa - curioso que era o João Paulo Diniz que o fazia - de discos pedidos... Alguém falava em crioulo: para o João Seissi Djaló que é de Catió, Gianni Morandi em Não sou dinho di vó...

Isto tudo para dizer o seguinte: andamos embrenhados nesta matéria e muitos mais quererão falar, expor e contar. Vamos recolher ex-camaradas e formar uma comunidade. Existe no Hotmail uma possibilidade de se abrir uma Comunidade gerenciada por nós e aí abrirmos uma frente de debate...

Acho importante. Se cada um contar um episódio de cada vez muito se escreverá e ficará um documento muito bom.... Acho essa ideia curiosa. O Sousa e Castro conhece como se manejam estas comunidades, inclusive podem-se fazer lá álbuns de fotografias... Elas só vão abaixo se não forem mexidas com participações ou se os gerentes quiserem que elas se extingam....

Creio que este será um modo de se arranjar bastantes documentos e tu, Luis Graça, por aí poderás por certo enriquecer o teu blogue que está uma maravilha... Diria eu que melhor é impossivel... É a primeira vez que vejo algo escrito sobre a nossa guerra, é verdade, a nossa guerra... Obrigado por lhe teres chamado o nosso espaço, é isso mesmo: tu arranjaste o nosso espaço... É aquele espaço da nossa juventude perdida. Obrigado.

Um abraço a todos os outros camaradas,
David Guimarães [CART 2715]


11 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Vocês, quer queiram quer não, já estão no ciberespaço, na Net… Pesquisem no Google os vossos nomes, sem mais nada:

http://www.google.pt/

Introduzam os vossos nomes juntos ou separadamente, com aspas. Assim, por exemplo:

“David J. Guimarães”
“Sousa de Castro”
“David J. Guimarães” + “Sousa de Castro”

Ou então os vossos apelidos seguidos de palavras-chaves como Guiné, Xime, Xitole, guerra colonial:

Castro + Xime
Guimarães + Xitole

É uma pequena homenagem ao vosso esforço para que nós, os ex-combatentes da Guiné, a malta do triângulo (que foi de morte e foi de vida, de guerra e de paz, de sofrimento e de amizade) do Xime-Bambadinca-Xitole, o Sector L1 da Zona Leste, mas também a malta de todos os outros sectores, do norte ao sul da Guiné, não caiamos no esquecimento, não nos tornemos uma espécie em vias de extinção…

Luís Graça [CCAÇ 2590/ CÇAC 12]

quarta-feira, 11 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P17: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (4)

1. O David J. Guimarães tem sido um incansável alimentador da minha/nossa memória da guerra colonial. As suas fotografias, os seus apontamentos, ajudaram-me a preencher inúmeras falhas de memória em relaçã à Guiné do meu tempo, desde Bissau a Bafatá, do Xime ao Xitole... Hoje recebi mais umas tantas fotografias de Bissau, tiradas por ocasião da sua viagem em finais de 2001. Diz o meu camarada do Xitole e de Bambadinca:

"Ora aí vai mais um pedaço daquilo que está lá, na nossa Guiné. Digo nossa porque afinal está no coração. Quanto ao resto, é deles e com todo o direito. E que eles tenham inteligência para não deixarem o país capitular. Pouco falta e é pena"...

Muitos ex-combatentes, como o David e eu, seguem com apreensão os acontecimentos políticos na Guiné-Bissau. São pessoas que têm um sentimento de afecto pelos guinéus, que querem o melhor para os filhos da Guiné, mas que receiam pelo futuro, pela paz, pela liberdade, pela independência daquele país. É um parto difícil a construção de um Estado democrático e moderno em África. Também nós levámos séculos, em Portugal e no resto da Europa, a modernizar e a democratizar as nossas sociedades e os nossos Estados. O ponto a que chegámos hoje não é, de modo algum, um ponto irreversível. A barbárie está sempre à espreita. O fascismo, o totalitarismo, podem sempre entrar-nos pela porta dentro. Historicamente não há conquistas irreversíveis. Quem sou eu para levantar o dedo acusador à Guiné-Bissau e aos guinéus ? É claro que me aflige ver que a Guiné-Bissau pode estar à beira da barbárie, do precipício,da pulverização, do golpe de Estado, da anarquia, da fome... É uma caixa de Pandora. Preocupa-me que não haja Estado, administração pública, serviços de saúde e escolas a funcionar em condições, garantias e liberdades, pão, paz, segurança... Preocupa-me o futuro da Guiné, das suas crianças, das suas mulheres, dos seus trabalhadores, dos seus desempregados... Vai haver eleições presidenciais, mais de vinte e tal candidatos e, pelo que ouvi na Rádio África, cada candidato terá direito a um subsídio de campanha no montante de vinte mil dólares. Será que ouvi bem ? Um dos países mais pobres do mundo, com um escasso milhão de habitantes, e que vive da caridade internacional, vai financiar com mais de meio de dólares a campamha eleitoral dos vinte e tal candidatos à Presidência da República!... Delirante ? Surrealista ? Burlesco ? Trágico ? Kafkiano ?

Quem sou eu, que fui combatente da guerra colonial, memso contra a a minha própria guerra, para dar lições de ética, de moral ou de civismo aos guinéus ? Mas mesmo assim tenho direito a pensar emn voz alta e em manifestar as minhas perplexidades perante ao actual momento social e político na Guiné-Bissau. SEm com isso querer ser paternalista e, muito menos, imiscuir-me nos "assuntos internos" do país que Amílcar Cabral ajudou a fundar.

2. Retomando a mensagem do Guimarães: " Envio-te esses testemunhos. Creio que todos reconhecerão a 5ª Rep, o antigo Café Bento: acho importante essa fotografia. Todos se lembrarão do Pelicano e da Marginal; da casa Gouveia, que é agora o Ministério da Economia; do Forte da Amura e do quartel-general, lá em cima, na zona de Santa Luzia...Enfim, é a Guiné.

"Muito gostaria, dado o ficheiro ser grande, de ter a certeza de que o recebeste em boas condições. Mata saudades que, afinal, é das coisas que vale a pena matar"...

Grande filósofo, grande sábio, o meu amigo David:

"Ninguém de sã espírito entenderá como um combatente gostará assim tanto dos locais onde sentiu a morte tão perto, o matraquear da metralhadora, o troar do obus, a metralha das armas ligeiras, os gritos de horror... Afinal a vida até por isso valerá a pena, não sei!"...

E com esta é que ele me mata: "Sabes, Luís, ninguém entenderá como milhares de Portugueses hoje têm saudades daquilo lá. E vale a pena, podendo, ires lá, digo eu... Para um dia dormires descansado. E se tiveres que chorar chora, porque agora temos liberdade para isso e faz-nos bem. Não, não é feio um homem chorar: feio foram outras coisas, mas isso já é política... Abraço. David".


3. Fico sem palavras. LG.

terça-feira, 10 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P16: No Xime também havia crianças felizes (2) (Luís Graça)

1. Acabei de falar com o José Carlos Mussá Biai: nasceu em 1963, no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 e a CART 3494. Era menino no tempo em que eu estive no Sector L1 da Zona leste, correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

Sei que, até ao fim da guerra, ele, a família e os vizinhos da sua tabanca sofreram muitos ataques. Uma família inteira, perto da sua morança, morreu. A sua infância não foi fácil. A vida também não foi fácil para a população civil, de etnia mandinga, que ficou no Xime.

2. Em contrapartida, também houve algumas coisas boas. Por exemplo, o furriel miliciano enfermeiro José Carlos José Luís Carcalhinho da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida dos outros meninos do Xime. Foi seu professor primário na única escola que lá havia, a PEM (Posto Escolar Militar) nº 14. O Mussá Biai também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa.

Em suma, o menino Mussá Biai fez a sua instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Tal como o Seco Camarà que morreu ingloriamente na Operação Abencerragem Candente, no dia 6 de Novembro de 1970, perto da Ponta do Inglês, no regulado Xime. O seu corpo foi resgatado por mim e pelos meus homens. Os restos humanos do mandinga Seco Camará, guia e picador das NT, morto à roquetada, foram transportados pelos meus soldados, fulas, para a sua tabanca do Xime. O José Carlos, embora menino, de sete anos, lembra-se perfeitamente deste trágico episódio em que os tugas do Xime tiveram cinco mortos, além do Seco Camarà.

O seu pai, um homem grande mandinga do Xime, era o líder religioso da comunidade muçulmana local. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Depois dos tugas sairem, o José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Tinham-lhe prometido uma bolsa, se trabalhasse dois anos como professor para as novas autoridades da Guiné-Bissau. Ficou cinco anos como professor, até decidir partir para Lisboa e lutar pela obtenção de uma bolsa de estudo. Conseguiu uma, da Fundação Gulbenkian. Matriculou-se no Instituto Superior de Agronomia. Hoje é formado em engenharia florestal. Trabalha e vive em Portugal. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. E é seu desejo fazê-lo.

Moral da estória: O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que pertence.

3. Ontem, 9 de Maio de 2005, o Mussá Biai deve ter tido uma agradável surpresa. O Sousa de Castro, que esteve no Xime nessa altura, escreveu-lhe, depois de saber a sua estória através de mim. E deu-he notícias do seu professor primário! Aqui vai o teor da sua mensagem:

"Como estas coisa são!... Como este mundo é pequeno!... Quero dizer ao Zé Carlos que eu, António Castro, de Viana do Castelo, fui 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Fantasmas do Xime), conheço perfeitamente o ex-Furriel enfermeiro, dou-me muito bem com ele. Curiosamente ele irá talvez em Junho ou Julho à Guiné ao abrigo da Plataforma de Cooperação com a Guiné-Bissau, mais precisamente ao Cacheu que está geminado com Viana do Castelo desde 1988.

"Informo também o Zé Carlos qual o endereço e telefone para o poder contactar. O nome correcto é:

José Luís Carvalhido da Ponte
Rua Moinho Vidro, 89
Viana do Castelo
4900-753 MEADELA".

O que dizer mais ? Que esta história não acaba aqui, mesmo acabando bem. Um dia destes almoçamos juntos e vamos continuar a contar estórias sobre o Xime e os meninos da guerra que às vezes até conseguiam ser felizes.

segunda-feira, 9 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P15: No Xime também havia crianças felizes (1)

1. Recebi na sexta-feira passada, dia 6 de Maio, uma mensagem que me comoveu e que, ao mesmo tempo, me deixou orgulhoso enquanto tuga. Passo a transcrevê-la:

"Dr. Luís Graça

"Descupe-me roubar o seu precioso tempo, mas tomei a liberdade de lhe enviar este e-mail, porque estive a ler o seu blogue e vi que você cumpriu o serviço militar na minha terra, Xime, e logo nas companhias que marcaram a minha infância, CART 2715 e CART 3494. Isso porque há alguém que me ficou na memória para sempre por ter sido meu professor na única escola que lá havia, a PEM (Posto Escolar Militar) nº 14, e de nos ter feito crianças felizes. Essa pessoa é de Viana de Castelo, era furriel [miliciano]enfermeiro, de nome José Luís Carcalhinho da Ponte.

Gostava de falar mais consigo, caso tenha tempo e disponibilidade para me aturar.
Os meus cumprimentos, José Carlos Mussá Biai."

2. Eis a minha resposta, com data de hoje:

"José Carlos: Só hoje de manhã li a sua mensagem. Deixe-me confessar-lhe que me comoveu mas ao mesmo tempo também me deixou uma pontinha de orgulho. Você não é dos guinéus que diabolizam os tugas (o termo depreciativo que, como deve estar lembrado, era utilizado pelos guineenses, em geral, para se referirem aos portugueses que ocupavam a vossa terra). Penso que esse tempo, em que as coisas eram vistas a branco e preto, já passou. O tempo dos ressentimentos já passou. A histórias e as estórias são sempre muito mais compridas e complicadas do que o tempo que a gente tem para as escrever e contar… Além disso, o meu país e o meu povo estão reconciliados um com o outro, e também com a Guiné e com os guineenses, os quais de resto continuam a ter um lugar especial no nosso coração de tugas.

"Dito isto, eu fico muito orgulhoso por saber que você era um menino do Xime, no meu tempo de furriel miliciano da CCAÇ 12 (Maio de 1969-Março de 1971), e que foi um outro furriel miliciano, enfermeiro, José Luís Carcalhinho da Ponte, tuga, minhoto de Viana do Castelo, que o ajudou a aprender a língua de Camões, e que fez de si uma criança feliz. De si e de outras crianças do Xime. A sua mensagem revela uma grande sensibilidade humana, além da gratidão por um homem que, nas horas vagas da guerra, ensinava os meninos da Guiné.

"Claro que eu terei tempo e muito gosto em falar consigo, e daí deixar-lhe os meus contactos. O mais simples é indicar-me o seu número de telefone. Procurei contactá-lo rapidamente. E, se mo permitir, vou pôr o seu nome e o seu endereço de e-mail na minha lista de contactos de pessoas que, por uma razão ou outra, estão ligadas ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole no tempo da guerra colonial. Veja a minha página sobre os Subsídios para a História da Gerra Clonial> Guiné.

"Devo esclarecê-lo que eu não pertenci à CART 2715 nem à CART 3494. Sou mais velho do que os elementos destas companhias. Mas metade da minha comissão passei-o em contacto frequente com a CART 2715 que estava sedeada no Xime. Os camaradas da CART 3494 (que chegou ao Xime por volta de Janeiro de 1972) já não os conheci, mas eles continuaram a trabalhar com a CCAÇ 12 (que era formada por praças africanas, oriundas do chão fula, e em especial dos regulados de Xime, Corubal, Badora e Cossé; todos eles eram fulas ou futafulas, à excepção de um mancanhe, que era natural de Bissau; havia ainda dois mandingas).

"Vou pô-lo em contacto com duas pessoas desse tempo:

(i) o Sousa de Castro (o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro, que pertencia à CART 3494, e que curiosamente também é natural de Viana do Castelo, ou vive e trabalha lá);

(ii) o David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole, e do mesmo batalhão da CART 2715, o BART 2917). O seu professor primário, José Luís Carcalhinho da Ponte, deve ter pertencido à CART 2715 ou à CART 3494 (que, por sua vez, estava integrada no BART 3873).

"Presumo que o José Carlos queira encontrar, contactar ou obter o contacto do seu mestre de escola. Talvez estes dois nossos amigos o possam ajudar. Eu, pessoalmente, não conheço nem me lembro desse furriel miliciano enfermeiro. Um ciber-abraço. LG."

3. Fiquei hoje a saber, pelo endereço de e-mail e por uma pesquisa rápida na Net, que o José Carlos Mussa Biai trabalha no Intituto Geográfico Português e é co-autor de um ou mais trabalhos de investigação na área de engenharia florestal onde se formou, relacionados com o seu país de origem.