Montemor-o-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > 14 de Outubro de 2006 > O David Guimarães, ao centro, em amena cavaqueira com o Humberto Reis, à direita, e a esposa deste, a Teresa, à esquerda (ambos estão de costas.
Foto:© Manuel Lema Santos & esposa (2006) (com a devida vénia...) . Fonte: página pessoal do Manuel Lema Santos > Encontro na Ameira > 14 de Outubro de 2006 > Luís Graça & Camaradas da Guiné . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Texto do David Guimarães, com data de 24 de Outubro último:
Independentemente de tudo, também é verdade que, se certos termos [tuga, nharro, turra, etc. ] poderão parecer ser ofensivos, eles só o serão efectivamente segundo a carga emocional que se coloca atrás. Contudo poderá evitar-se, sim, uma vez que poderão ser mal interpretados (1)...
Vocês perdoem-me mas vamos ter cuidado em não cair em textos demasiadamente elaborados, senão entramos no capítulo do romance e, então, os textos começam a ganhar qualidades literárias em demasia e a perder a outra qualidade, que é falar-se sobre o que acontece... A linguagem simples e perceptível é documento para todos, a outra não o será... Falamos na caserna, que assim seja, mas linguagem de caserna menos descuidada...
Os cuidados do Luis são pertinentes, sim... Contudo sei que nada é ofensivo, mas enfim... Às vezes com a palavra mais bem dita - aparentemente - dá-se uma grande facada, sem querermos (...).
Sendo que a guerra foi a mesma, os episódios são bem diferenciados. O atropelamento deverá evitar-se e sempre, mas a correcção, essa sim, é necessária... Aconteceu isto e aquilo... e outros dirão: bem, não foi assim mas assim e assado... E isso é muito bom.
A guerra, toda ela é um drama mas não nos fixemos demasido numa ou noutra acção dramática, Contemos, sim, como estamos a fazer: a bebedeira de cerveja, a vez que eu e o Martis (Ranger da CART 2716) estavamos ambos na vala a conversar. Nem força tínhamos para subir aquele metro e meio, tinhamos misturado várias qualidades de bebidas alcoólicas na cerveja... É que a guerra foi tudo isso, e muito mais...
Vi hoje um comentário do Vinhal (2), partilho o ponto de vista dele e o que estou a dizer é senão um reforço ao que João Tunes diz (3)... em volta do General Luís, que não se cansa de enquadrar tudo lá nos sítios devidos...
Que difícil será aturar esta tropa!
Um abraço
David Guimarães
2. Comentário de L.G.:
E siga a marinha, a força aérea e o exército, coadjuvados pelas bajudas, os básicos, os capelões e as senhoras enfermeiras (que nunca mais aparecem, senhores enfermeiros Zé Teixeira, Baia, Rui Esteves, João Carvalho...).
Obrigado, David, pelas tuas reflexões, mas nunca te esqueças que és um homem do Norte, carago!
Obrigado, Carlos, pela tua confiança no timoneiro...
Obrigado também ao João Tunes que, como bom transmontano tresmalhado em terra de mouros, gosta de pensar pela sua cabeça, e por isso faz questão de acentuar: blogue colectivo, sim, mas não colectivista... Pluralíssimo, pois, claro... E onde todos são camaradas, e não há senhores camaradas, ou seja, camaradas mais camaradas do que outros...
João, andava a sentir, a tua falta... Gostei dessa: para o bem e para o mal, nós estivemos lá! O único problema é o teu descritor ultrapassar, em muito, os 500 caracteres que os gajos do Blogger.com nos autorizam (são caracteres, e não palavras, como eu escrevi ontem...). Tens 148 palavras, 743 caracteres (sem espaços), 891 caracteres (com espaços)... Mas o mais importante são as ideias: as palavras depois arrumam-se...
David: Só não gosto dessa do general... Um gajo como eu que um dia disse que limpava o c... às folhas do RDM, nunca poderia chegar a general... João: E tu, se promoves a comandante, eu corro o risco, um dia destes, de estar como o teu querido Coma... Andante...
O melhor, amigos e camaradas, é não me nobilitarem... Os meus avoengos eram do mar, nasciam no mar, viviam do mar, morriam no mar, ou à beira-mar: na época dos Descobrimentos, foram arrebanhados, à força, para servir nas naus, como parte da guarnição (e não tripulação, como me corrigiu o comandante, esse, sim, de jure et de facto, Pedro Lauret)... Eram Maçaricos, esses meus antepassados, e o nome ficou na família, lá para os lados de Ribamar da Lourinhã (4)...
Se me quiserem promover, estou lixado... Não esquecerei o aviso que, no tempo do Senhor Dom Carlos se fazia aos cães de Lisboa, a acreditar no Ramalho Ortigão: Foge cão, que te fazem barão... Mas para onde, se me fazem conde?...
Em resumo, estamos a precisar de ouvir mais umas estórias bem curtidas do Jorge Cabral ou do Rui Felício que são tão boas ou melhores do que a lebre com feijão que a gente não chegou a provar na Ameira... E a propósito, já abriram o último post, com o videoclipe (que palavrão!) do Zé Luís e o Fernando Calado no cante alentejano ?... Pois não percam (5)...
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1225: Questões politicamente (in)correctas (1): Descrição do nosso blogue (Luís Graça)
(2) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1226: Questões politicamente (in)correctas (2): Tugas, nharros e turras (Carlos Vinhal)
(3) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1227: Questões politicamente (in)correctas (3): Blogue colectivo, mas não colectivista (João Tunes)
(4) V. post de 12 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIV: Cabo Verde (1941/43) (1): os mortos e os esquecidos do império
(...) "Uma saga que durou cinco séculos, e que atravessou a minha própria família do lado paterno: a minha bisavó [ Maria Augusta ] Maçarica, nascida em Ribamar em 1864, descendia justamente dos pobres diabos arrebanhados, à força, para os porões das caravelas e nas naus. Embarcados como pau para toda a obra, daí a alcunha (Maçaricos) e, possivelmente mais tarde, o apelido de família (Maçarico).
"O mar marcou-os de tal maneira que nunca conseguiram viver longe dele: foram (e continuam a ser) gente ribeirinha, concentrados maioritariamente em Ribamar da Lourinhã, mas também com um possível núcleo em Mira, sendo marinheiros, aventureiros, mercadores, pescadores, calafates, construtores de barcos, mestres de traineiras, pescadores de lagosta, pescadores do alto, cabos de mar, peixeiros, negociantes de peixe, donos de restaurantes, tascas e hotéis à beira mar, perdidos e achados nas setes partidas do mundo, junto aos cais" (...) .
Devo acrescentar que o meu concelho, o concelho da Lourinhã, também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Se nos reportarmos às três últimas décadas (ao período de 1968 a 2000), sabe-se que houve seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece). Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico.
Muito provavelmente também é descendente desta linhagem plebeia o Domingos Maçarico, ex-alferes miliciano da CART 1690, ferido no decurso da Op Jigajoga 2, em 31 de Agosto de 1967: vd. post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III
5) Vd. post de 3 de Junho de 2005> Guiné 63/74 - P1208: Eu ouvi o passarinho, às quatro da madrugada (J.L. Vacas de Carvalho / Fernando Calado)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 4 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)
Foto:© Manuel Lema Santos & esposa (2006) (com a devida vénia...) . Fonte: página pessoal do Manuel Lema Santos > Encontro na Ameira > 14 de Outubro de 2006 > Luís Graça & Camaradas da Guiné
Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Texto do Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (Có, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1)
Caro Luís,
No último email que me enviaste, transparecia a ideia de que eu ia publicar digitalmente no blogue o livro que recentemente publiquei (2). Não é essa a minha intenção. Irei publicar alguns excertos resumidos e reescritos de modo a tornarem-se menos cansativos a quem os queira ler. Isto relativo ao livro já editado ou ao segundo volume ainda em fase de concepção.
O livro, editado em 2005, tinha interesse em ter sido consultado no convívio [da Ameira], não tanto pelo conteúdo, mas pela organização do mesmo. Ele foi inteiramente concebido para os elementos da companhia e seus familiares. Daí a ter características próprias. Inclui a fotografia tipo passe de todos os elementos com duas listas de nomes, ordenadas alfabeticamente e por sub-unidades dentro da companhia. Foi incluída uma selecção de fotografias divididas por temas, retiradas dum amplo repositório na posse do fotógrafo da companhia, o Cabo Esparteiro, e de várias fotos em poder dos militares.
Os textos dos eventos mais importantes foram abertos à participação geral de quem o quis fazer (qual blogue de papel de um único sentido), permitindo várias perspectivas de um mesmo acontecimento.
Por fim, numa terceira parte do livro, acrescentei-lhe a versão oficial da companhia, denominada Factos e Feitos mais Importantes, sem lhe fazer qualquer tipo de intervenção. É que, como todos sabemos, chamar factos àqueles relatos oficiais, especialmente o números de mortos do inimigo, é pura ficção. Eram documentos confidenciais na altura e assim deviam permanecer eternamente. Dava vontade de rir quando víamos, como resultado de uma operação, a indicação de um número de mortos do inimigo, que eu, que tinha estado no terreno, não tinha dado conta, possivelmente por distracção ou falta de imaginação. Os corpos só raramente ficavam no terreno, porque os turras faziam tudo para o evitar, privando-nos assim de confirmarmos as baixas deles.
Neste primeiro convívio [da nossa tertúlia, em 14 de Outubro de 2006], verifiquei um grande desejo de cada um em mostrar os seus álbuns, documentos ou livros, produzidos com grande carinho. Procurei dar uma olhadela a todos. E a todos apreciei nas suas particularidades. Porque o dia foi curto para tanta convivência e pela minha retirada prematura, não foi possível disponibilizar o meu trabalho, ficando para outra oportunidade, possivelmente o segundo convívio.
Um abraço a todos,
Raul Albino
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Notas de L.G.:
(1) (1) Vd. posts de:
17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)
2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1142: Um dia no mato: parabéns ao Vitor Junqueira pelo seu texto (Raul Albino, CCAÇ 2402)
(2) Vd. post de 23de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)
(...) "O meu livro levou três anos a ver a luz do dia, sendo que o primeiro ano foi gasto na estruturação do livro, aquisição do hardware necessário (PC, Impressoras e Scanners), estudo do software de composição e fotografia.
"O livro ficou com uma particularidade curiosa: como foi totalmente redigido, composto e impresso por mim, fiquei com a possibilidade de criar versões personalizadas, adicionando páginas particulares com textos e fotos de interesse exclusivo dum indíviduo" (...).
Guiné 63/74 - P1245: Efemérides: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)
Guiné > Região de Tombali > Catió > Vista aérea de Catió em 1968 (fotos, a preto e branco, de Vitor Condeço) e em 2005 (foto , a cores, de Jorge Rosmaninho).
Fonte: Africanidades (2006) (com a devida vénia...). O Jorge Rosmaninho é membro da nossa tertúlia e mantém connosco uma política, mutuamente vantajosa, de troca de serviços e de roncos...
Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Quarenta anos sobre Catió
por João Tunes
Quanto é que a distância no tempo e dos lugares pode impressionar a memória? Contento-me com o vago muito. E no remexer da memória, falando do registo em imagens, mais que uma velha fotografia que se desenterra e a que se limpa o pó, tanto é o tamanho do que impressiona ao rever um lugar onde ficou um bocado da pele e olhar-lhe as idas e voltas do tempo e a mudança da afirmação da sua modernidade (ou, por vezes, a sentença da decadência).
Há dias, mirando o blogue do Jorge Rosmaninho (*)(o Africanidades), dei com fotografias de Catió com quase quarenta anos de diferença. As duas mais antigas (de 1968), a preto e branco, tiradas por Vítor Condeço, mostra a Catió que bem conheci dois anos após o tempo do bater das fotos.
Em primeiro plano, a pista de aviação em terra batida e que era a nossa principal ligação ao resto da Guiné e ao mundo. Após a pista, a vila habitada por gente bem hospitaleira. Ao fundo, quase indistinto, o quartel sede de batalhão onde se viveram sufocos de morteirada e alegrias de excelentes convívios e camaradagens, além dos copos, muitos copos, para aguentar a espera do passar o tempo e arribar a hora de zarpar.
A recente, a cores e sob o mesmo ângulo, tirada há um ano, traz o verde especial do sul da Guiné e a mesmíssima (antiga) pista, agora recortada com trilhos e os sinais humanos de ocupação social do espaço.
Pela foto de hoje, imagino a importância que Catió hoje ocupa como capital de distrito. E que fará toda a diferença da Catió sitiada e flagelada, encrustada como testa de ponte e comando na resistência militar colonial a que o sul da Guiné (o famoso reino de Nino) não fosse o desastre absoluto da anunciada derrota na guerra como era seu destino.
E fixo-me naquela hoje transformada pista de aviação, pensando no contraste. Ficando a meia nau entre feliz e triste. Feliz porque antes assim. Triste porque me pergunto porque raio o tempo me levou ali, pousando naquela pista, no tempo que não o certo.
Confesso que é esta mesma perplexidade, este conflito de sentimentos, esta dualidade de querer e não querer, que me mantêm a força da recusa em voltar à Guiné e voltar a pisá-la com os meus passos. Por muita garantia que a voltaria a pisar, como o fiz de 1969 a 1971, com os cuidados devidos a quando se pisa terra de outros. Talvez daqui até 2008, seja tempo suficiente para acumular a energia de desinibição necessária para voltar a Catió em passagem para Guileje para poder mirar a excelente obra do Pepito e seus companheiros (3), rendendo-lhe o preito que eles tanto merecem. Oxalá vença a vontade sobre a desvontade. Oxalá.
Abraços para todos.
João Tunes
(Ex- Alf Mil Trms,
CCS/ BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/7o; CCS/ B..., Catió, 1970/71)
(*) Porque diabo o Jorge Neto, num ápice, se crismou de Jorge Rosmaninho? O companheiro casou-se e adoptou o apelido da consorte? E, se por isso foi, como não pagou ronco ao pessoal? (2)
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. Africanidades, blogue de > 29 de Outubro de 2006 > Catió, ontem e hoje
Uma foto aérea tirada há pouco mais de um ano e outras duas enviadas por Vitor Condeço, que por ali passou nos anos 60 e muitos.
Segundo Condeço "pelo que é dado ver, a vila cresceu e ocupou também parte da pista. Será que foi um sinal de progresso? Gostava que sim! Para que compare a diferença 37 anos e meio decorridos, em anexo envio-lhe uma foto dessa mesma pista e uma vista da vila, tiradas por mim em Janeiro de 1968, e digitalizadas dos negativos, passados 38 anos, tem a patine do tempo."
Obrigado.
(2) A explicação vem do própiro, em e-mail de 6 de Outubro de 2006:
(...) Quanto ao nome, duas razões:
(i) o ter migrado para o Beta [, a migraçºao do Africanidades para a versão Beta do Blogger.com], abrindo uma conta no Gmail, que é Jorge.rosmaninho. Aliás, este passará a ser o e-mail de serviço (jorge.rosmaninho@gmail.com). O nome de guerra pode passar a ser este, mas quem quiser chamar pelo outro (ou se isso der mais jeito), não terá problema;
(ii) é mais alentejano! Esta é a minha costela do Sul. Uma questão de identidade mal resolvida, que quero recuperar! (...)
(3) Vd. post de 8 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1158: AD anuncia para 2008 simpósio internacional 'A memória de Guiledje na luta pela independência da Guiné-Bissau'
sexta-feira, 3 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1244: Continuaremos... amigos, brancos e negros (Paulo Santiago)
Guiné > Zona Leste > Sector L5 > Galomaro > Saltinho > Pel Caç Nat 53 > Distintivo da unidade: "Continuaremos"...
Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.
1. Texto do Paulo Santiago, de 6 de Outubro de 2006:
Luís
Pedias um título para as histórias da minha vivência na Guiné com o Pel Caç Nat 53. Fui ao distintivo do 53 e penso que poderá ser CONTINUAREMOS...AMIGOS.
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos nossos camaradas do Pelotão, brancos e negros;
CONTINUAREMOS...AMIGOS de outros camaradas militares com quem convivemos;
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos civis que conhecemos pelas tabancas;
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos outrora designados inimigos.
Aguardo a tua opinião sobre o assunto.
Junto o distintivo do Pel Caç Nat 53.
Um abraço do
Paulo Santiago
PS - Não sei qual o meu antecessor que imaginou o emblema.
2. Comentário de L.G.:
Olha, Paulo, se queres saber a minha opinião, não te achava com tiques de poeta, o teu ar de guerreiro, viking, façanhudo era mais consentâneo com a ideia que a gente faz de um comandante de pelotão de caçadores nativos... Não segui a tua sugestão, pela razão simples de que a vida de um editor de blogues é uma grande blogaria, o que o obriga a decisões rápidas, que nem sempre são as mais acertadas e concertadas, como deves imaginar... Se eu fiz mal a escolha (1), espero que me perdoes...
Em contrapartida, achei bonita, solidária, apropriada, congruente, de bom gosto, a tua glosa... Ficaria mais preocupado se tivesses uma deriva para o abismo, do género Continuaremos... pátria ou morte; Continuaremos... até à última gota de sangue; Continuaremos... até onde der o depósito de gasolina; Continuaremos... até à vitória final; Continuaremos... até ao fim; Continuaremos... até que se acabem as munições; Continuaremos... até à próxima curva do caminho... A ideia pode heróica, mas a frase não se presta a título de post: preferi um título mais prosaico, Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (que de resto mereceu a tua posterior concordância)...
A verdade, amigo e camarada, é que não se passa impunemente, incolumemente, pela Guiné sem deixar lá nossa amizade e trazer de lá a amizade dos guineenses... Os conflitos passam à história, e fica o melhor de cada um dos nossos povos.... Não é demagogia: tu mesmo, durão, tiveste que lá voltar, à Guiné, com o teu puto (que lindo!), no regresso de todas as emoções, em Fevereiro de 2005...
_________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts de:
12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado
13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2) : nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança
19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1192: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (3): De prevenção por causa da invasão de Conacri
Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.
1. Texto do Paulo Santiago, de 6 de Outubro de 2006:
Luís
Pedias um título para as histórias da minha vivência na Guiné com o Pel Caç Nat 53. Fui ao distintivo do 53 e penso que poderá ser CONTINUAREMOS...AMIGOS.
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos nossos camaradas do Pelotão, brancos e negros;
CONTINUAREMOS...AMIGOS de outros camaradas militares com quem convivemos;
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos civis que conhecemos pelas tabancas;
CONTINUAREMOS...AMIGOS dos outrora designados inimigos.
Aguardo a tua opinião sobre o assunto.
Junto o distintivo do Pel Caç Nat 53.
Um abraço do
Paulo Santiago
PS - Não sei qual o meu antecessor que imaginou o emblema.
2. Comentário de L.G.:
Olha, Paulo, se queres saber a minha opinião, não te achava com tiques de poeta, o teu ar de guerreiro, viking, façanhudo era mais consentâneo com a ideia que a gente faz de um comandante de pelotão de caçadores nativos... Não segui a tua sugestão, pela razão simples de que a vida de um editor de blogues é uma grande blogaria, o que o obriga a decisões rápidas, que nem sempre são as mais acertadas e concertadas, como deves imaginar... Se eu fiz mal a escolha (1), espero que me perdoes...
Em contrapartida, achei bonita, solidária, apropriada, congruente, de bom gosto, a tua glosa... Ficaria mais preocupado se tivesses uma deriva para o abismo, do género Continuaremos... pátria ou morte; Continuaremos... até à última gota de sangue; Continuaremos... até onde der o depósito de gasolina; Continuaremos... até à vitória final; Continuaremos... até ao fim; Continuaremos... até que se acabem as munições; Continuaremos... até à próxima curva do caminho... A ideia pode heróica, mas a frase não se presta a título de post: preferi um título mais prosaico, Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (que de resto mereceu a tua posterior concordância)...
A verdade, amigo e camarada, é que não se passa impunemente, incolumemente, pela Guiné sem deixar lá nossa amizade e trazer de lá a amizade dos guineenses... Os conflitos passam à história, e fica o melhor de cada um dos nossos povos.... Não é demagogia: tu mesmo, durão, tiveste que lá voltar, à Guiné, com o teu puto (que lindo!), no regresso de todas as emoções, em Fevereiro de 2005...
_________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts de:
12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado
13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2) : nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança
19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1192: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (3): De prevenção por causa da invasão de Conacri
Guiné 63/74 - P1243: Questões politicamente (in)correctas (7): Desaparecido em campanha, morto em combate, retido pelo IN (Luís M. Lopes / Luís Graça)
Material gentilmente cedido pelo Alferes miliciano Reis da CART 1690 (Geba, 1967/69).
Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.
1. Mensagem de 30 de Setembro de 2006, enviada por um não-tertuliano, o Luís Mário Lopes:
Caro Luís Graça,
Precisava de uma informação para um trabalho que estou a preparar. Se ma souber e quiser fornecer, ficar-lhe-ia muito agradecido. É o seguinte:
Na guerra colonial, quando um militar era morto em combate calculo que os colegas tentassem levar o corpo com eles para o devolverem à família. Mas se isso não se revelasse possível, como é que se fazia? O que é que se comunicava aos familiares? Que o militar tinha sido "morto em combate" ou que tinha "desaparecido em combate"? Ou seja, perante a ausência de um corpo a devolver era dada a certeza da morte? O militar era considerado legalmente morto? Tinha direito a serviço fúnebre?
Desde já muito obrigado.
Cumprimentos
Luís Mário Lopes
2. Resposta de L.G., tamb+em comdata de 30 de Setembro de 2006:
Luís Mário Lopes:
(i) Obrigado pelo teu e-mail. Eu não tenho, para já, uma resposta definitiva para te dar... A tua questão é pertinente e interessa-nos, a todos... Vou pedir aos meus amigos e camaradas de tertúlia - e são já mais de um centena - que nos ajudem, a ti e mim... Há camaradas de tropa - incluindo pessoal que fez carreira, no Exército e na Marinha - que são mais qualificados do que eu para te responder...
(ii) Por exemplo, segundo a explicação dada pelo nosso camarada A. Marques Lopes (coronel, DFA, na reforma), em termos militares, desaparecido em campanha queria dizer que não se recuperou o corpo: aplicava-se aos militares portugueses, mortos em combate, no Ultramar, mas cujos corpos não puderam ser recuperados.
Mas havia ainda outra expressão, retido pelo IN: era um eufemismo, diz o coronel Marques Lopes. Porquê ? O Governo Português não reconhecia o PAIGC (bem como o MPLA, em Angola, ou Frelimo, em Moçambique) como inimigo, face à Convenção de Genebra; logo oficialmente, não podia haver prisioneiros... A verdade é que os houve: veja-se, por exemplo, a lista das baixas da CART 1690 (Geba, 1967/69).
(iii) Há dias soube da história de um militar, de Fafe ou Familicão, feito prisioneiro pelo MPLA, no leste de Angola... Foi dado como morto e o cadáver mandado para o cemitério da terra... Depois do 25 de Abril, o homem foi libertado, chegou à terra e a primeira coisa que viu foi a namorada com outro... Houve muitos dramas destes, ao longo dos nossos quinhentos anos de Império... O Frei Luis de Sousa, de Almeida Garret, foi de certo inspirado num caso destes...
(iv) Já pedi aos Amigos & camaradas da Guiné para darem mais uma mãozinha ao Luís Mário (e também a mim)... Ese assunto merece ser discutido no blogue... Já foi aflorado, há tempos, não tenho tempo agora para localizar os posts em questão (1)...
3. Resposta a seguir do Luís Mário Lopes, de 1 de Outubro de 2006:
Luís Graça,
Muito obrigado pela tua ajuda. Fico a aguardar mais informações que consigas recolher dos teus amigos e camaradas de tertúlia.
O trabalho que estou a preparar é uma peça de teatro em que surge uma situação com semelhanças com a do tal militar de Fafe ou Famalicão de que falas. Mesmo tratando-se de uma situação lateral, gostava de tratá-la com rigor.
É a minha primeira peça de teatro. Tenho escrito argumentos para cinema mas como não sou realizador é muito complicado os projectos concretizarem-se. Até agora foi produzida uma curta metragem A6-13 (realizada por Raquel Jacinto Nunes; foi prémio Tóbis no Lisbon Village Festival e tem sido seleccionada para alguns outros festivais), e neste momento está a ser realizada por Leandro Ferreira a longa metragem Deste lado do mundo (a rodagem deve prolongar-se até Novembro).
Quando conseguires mais informações por favor comunica-mas.
Abraços gratos
4. Comentário de Luís Graça:
Luís Mário Lopes: Os meus parabéns pelos teus êxitos. Eu ajudar-te-ei, na medida do possível, tal como os meus amigos e camaradas da Guiné. Como já reparaste, nesta caserna virtual (a maior da Net, em português, sobre este tópico, a experiência da guerra colonial em África, e na Guiné em particular), tratamo-nos por tu, como camaradas que fomos (e continuamos a ser)...
5. Nova mensagem do L.M. Lopes, com data de 3 de Outubro:
Luís Graça,
Agrada-me bastante o tratamento por tu. Julgo mesmo que os problemas deste país seriam mais rapidamente resolvidos se ao abordarmos os outros não tivéssemos sempre de estar a escolher entre o tu, o você, o senhor, o doutor, o V. Exa.,... , muitas vezes mais preocupados em saber se os outros se irão melindrar com a forma como os tratamos do que com a eficácia da comunicação (não será por isso que os anglo-saxónicos são regra geral mais eficazes do que os latinos?).
Seja como for tenho também a agradecer-te isto: o teres-me recebido como um camarada desta vossa caserna. Tanto mais que mereces tu muito mais felicitações do que eu. Os meus "êxitos", como tu lhes chamas, não são nada de especial. E não penses que me estou a armar em modesto (para que não haja dúvidas em relação a isso digo-te já que duvido que haja em Portugal argumentista melhor do que eu; e não estou também a armar-me em bom; é simplesmente a minha convicção). O problema é que como eu não sou realizador os meus argumentos acabam por ser completamente alterados e desvirtuados pelos realizadores e produtores (claro que isso viola os direitos de autor, mas não há grande coisa a fazer); aconteceu assim com a tal curta-metragem A6-13 e está a acontecer agora também com a longa-metragem que está a ser rodada. Impotente perante o modo do cinema funcionar neste país, resta-me tentar outras formas (talvez o teatro, talvez os contos ou os romances).
Mas chega de desabafos.Um grande abraço e mais uma vez obrigado (já recebi um relato com uma história de um teu camarada - agora também meu - que apesar de não corresponder exactamente à questão que te pus tem algumas analogias)
Luís
PS - Ainda a propósito do desabafo: é claro que não vivo da escrita; o que me sustenta é o facto de ser professor de matemática.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P827: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigoTala Djaló (Hugo Moura Ferreira)
(...) "Recordas-te de uma mensagem que enviei, de que te dei conhecimento, a solicitar ajudas no sentido de tentar encontrar o meu amigo Furriel Graduado Comando Tala Biu Djaló?
(...)"Pois ele faz parte de uma lista de mais de uma vintena (ele é o 3º) de militares da 1ª Companhia de Comandos Afriacanos que ficaram em Conakry, na Operação Mar Verde, que tem como titulo Retidos pelo Inimigo.
"Ao falar com quem está envolvido nesta operação de registo histórico, foi-me afirmado que, como os vários Governos, desde essa época até hoje, não podem (esta é a palavra exacta, dado que à face do Direito Internacional poder-nos-ia ainda hoje obrigar a pagar indemnizações elevadíssimas a um país estrangeiro – foi esta a explicação) assumir oficialmente o episódio. Como tal não poderemos envolver, nem sequer a diplomacia para saber de forma oficial o que aconteceu àqueles militares que todos nós sabemos foram fuzilados logo a seguir ao fiasco da Operação ou morreram durante a mesma, mas cujos corpos não atravessaram a fronteira.
(...)"Perante esta situação de Retidos pelo Inimigo, apenas me interrogo o porquê desta situação, que certamente será comum aos diversos teatros de operações, não fazer parte das listagens de baixas que tivemos com as nossas campanhas em África.
"Poderia eventualmente ser uma listagem paralela às dos mortos em combate, em que constassem os Desaparecidos e os Retidos. Gostaria de ver essa lista publicada oficial ou oficiosamente, nem que fosse no nosso Blogue-fora-nada." (...)
(2) No meu Diário de um Tuga, em 20 de Dezembro de 1969, eu escrevia, quando estive destacado em Nhabijões, o seguinte (extractos):
(...) "Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme…
"Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação…
(...) "Hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos [como o do Nhabijões], esse, não tem enquadramento jurídico...
"Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…
"Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN" (...)
Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P1242: Postais Ilustrados (9): Dança do compó, Bissau (Beja Santos)
Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado (1) > Legenda > 113. Dança do compó, Bissau. Fotografia verdadeira. Reprodução proibida. Edição Foto Serra - C.P. 239 Bissau. s/d.
Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos a um familiar... Data e local: Bissau, 31/7/968. Carimbo do correio de Bissau: Ilegível. Valor dos selos: 2$00 pesos. Dois selos com efíge do Presidente da República, Alm Américo Tomás, evocativos da "viagem presidencial" à Guiné em 1968.
Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
Acabado de desembarcar em Bissau, escreveu ele neste postal:
(...) "Vim hoje à cidade conhecer o museu, a biblioteca, o mercado, os monumentos, a catedral e o mais pouco que há. Aqui fica um pouco de folclore para si. Tomo amanhã o barco para Bambadinca, donde seguirei para o meu destacamento [, Missirá,].
"Tenho nestes dias de férias, descansado o mais possível, e uma estrela secreta me ilumina. Uma vez mais, Deus me dá um mister belíssimo para cumprir. Sinto-me cheio de força e entusiasmo. Logo que possa mandarei mais notícias" (...) .
_______
Nota de L.G.:
(1) Vd. último post desta série > 17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1184: Postais Ilustrados (8): Allahu Akbar, Deus é Grande (Beja Santos)
quinta-feira, 2 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1241: Questões politicamente (in)correctas (6): turras, nharros, tugas, guerra colonial (A. Marques Lopes)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > 1969 ou 1970 > O 1º Cabo Monteiro, transportando às costas, à moda tradicional das mães africans, um miúdo da tabanca. Neste post escreve o Marques Lopes, um grande amigo do povo guineense (esteve lá em 1967/68, em 1999 e em 2005): "Quando fui recentemente à Guiné, muitas vezes, no mato ou em Bissau, se dirigiam a mim chamando Ó branco!. Também lhes dizia O que é que tu queres, ó preto?.
Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.
Texto do A. Marques Lopes:
Eis a minha opinião sobre turras, nharros, tugas e guerra colonial. E começo por aqui: Portugal tinha, de facto, colónias, embora as conveniências tivessem levado a que essa palavra tivesse sido mais de uma vez embrulhada em papel bonito para o mundo externo ver. Só que o papel era transparente, e nunca nos livrámos internacionalmente de ser um país que travava uma guerra contra os movimentos de libertação das colónias. E eu senti que estive nessa guerra, não em guerra do Ultramar, nem em guerra nas Províncias Ultramarinas, nem em luta contra terroristas. Foi guerra colonial, não duvido, e assim tem de ser para que o efeito não venha a desmentir a causa.
Quanto a nharro e turra, não penso que alguém, agora, use essas expressões com intuitos pejorativos para com os nossos amigos da Guiné. Usamo-los para expressar as nossas vivências e o nosso linguajar do mato e da guerra. Esta foi um fenómeno histórico que nos orientou a linguagem e, até, muitas vezes, o pensamento. Já estamos noutra e não vamos voltar a chamar-lhes isso. Mas fez parte daquilo que vivemos e não vejo mal que recordemos isso como tal.
Quanto a tuga, até acho piada e não me importo que me chamem. Já agora: quando fui recentemente à Guiné, muitas vezes, no mato ou em Bissau, se dirigiam a mim chamando Ó branco!. Também lhes dizia O que é que tu queres, ó preto?. Em certas conversas ouvi guineenses referirem-se a nós como tugas. Tudo bem, sem qualquer tipo de intenção malévola, em conversa natural de pessoas que se respeitam.
Não vejo, pois, mal no uso destas palavras, desde que contextualizadas no tempo. Era assim.
Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.
Texto do A. Marques Lopes:
Eis a minha opinião sobre turras, nharros, tugas e guerra colonial. E começo por aqui: Portugal tinha, de facto, colónias, embora as conveniências tivessem levado a que essa palavra tivesse sido mais de uma vez embrulhada em papel bonito para o mundo externo ver. Só que o papel era transparente, e nunca nos livrámos internacionalmente de ser um país que travava uma guerra contra os movimentos de libertação das colónias. E eu senti que estive nessa guerra, não em guerra do Ultramar, nem em guerra nas Províncias Ultramarinas, nem em luta contra terroristas. Foi guerra colonial, não duvido, e assim tem de ser para que o efeito não venha a desmentir a causa.
Quanto a nharro e turra, não penso que alguém, agora, use essas expressões com intuitos pejorativos para com os nossos amigos da Guiné. Usamo-los para expressar as nossas vivências e o nosso linguajar do mato e da guerra. Esta foi um fenómeno histórico que nos orientou a linguagem e, até, muitas vezes, o pensamento. Já estamos noutra e não vamos voltar a chamar-lhes isso. Mas fez parte daquilo que vivemos e não vejo mal que recordemos isso como tal.
Quanto a tuga, até acho piada e não me importo que me chamem. Já agora: quando fui recentemente à Guiné, muitas vezes, no mato ou em Bissau, se dirigiam a mim chamando Ó branco!. Também lhes dizia O que é que tu queres, ó preto?. Em certas conversas ouvi guineenses referirem-se a nós como tugas. Tudo bem, sem qualquer tipo de intenção malévola, em conversa natural de pessoas que se respeitam.
Não vejo, pois, mal no uso destas palavras, desde que contextualizadas no tempo. Era assim.
Guiné 63/74 - P1240: Questões politicamente (in)correctas (5): terrorismo, terrorista (Carlos Vinhal)
Mensagem do Carlos Vinhal, com data de 24 de Outubro de 2006:
Caríssimo camarada bloguista Dr. Beja Santos (1):
Voltando ao termo terrorista que eu pessoalmente não gosto de utilizar, venho rebater/clarificar o meu ponto de vista.
Para mim, acto terrorista é uma reacção violenta contra pessoas e/ou bens, sem ter em conta se essas pessoas foram agentes activos nas acções que motivaram o terrorismo. Lembremo-nos do 11 de Setembro e do 11 de Março, por exemplo. Tratou-se de actos violentos de um inimigo sem rosto e nome duvidoso que originou a morte a milhares de pessoas inocentes e a destruição de bens, com o fim de atingir a economia dos países respectivos, confundindo regimes políticos com cidadãos indefesos. Foram ataques indiscriminados, visando o caos.
No nosso caso, estivemos numa guerra subversiva em território mais ou menos conhecido e delimitado, onde os contendores tinham nome e rosto. O objectivo era conhecido e a missão era o controle da população e o reconhecimento político, deixando para segundo plano a conquista de terreno.
Diga-se em abono da verdade que as populações controladas, por nós e por eles, foram muitas vezes apanhadas pelo fogo cruzado, mas as batalhas mais importantes foram travadas entre forças militares ou militarizadas. Cometeram-se exageros quando se mataram civis desarmados e crianças. Estes, os tais casos de consciência a que me referi anteriormente. As minas e as armadilhas que fizeram e ainda fazem vítimas inocentes, infelizmente fazem parte de uma sub-guerra onde todos temos culpas. Como a utilização do napalm.
Os termos Ultramar ou Colónia para mim são pacíficos. O primeiro designa que a posição geográfica dessa parcela territorial está além-mar. O segundo designa um conceito de soberania sobre um terrritório afastado duma Metrópole politicamente dominante. O doutor(2) sabe isto bem melhor do que eu, mas refiro-o para alicerçar o meu ponto de vista.
Quanto aos republicanos terem entrado na 1.ª Guerra Grande para defender o Ultramar, aqui tratava-se de defender o território da cobiça internacional, nomeadamente por parte da Alemanha e Inglaterra, como sabe. A nossa guerra, contra o PAIGC, foi contra o direito à soberania.
Os melhores cumprimentos e um abraço do camarada e admirador
Carlos Vinhal
Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá (1970/72)
Leça da Palmeira
Telem 916032220
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1228: Questões politicamente (in)correctas (4): Terror e contra-terror na guerra colonial ou do Ultramar (Beja Santos)
(2) O tratamento por tu é a regra básica da nossa tertúlia. O uso de títulos (académicos, militares ou outros) também não é incentivado. Razão: não melhora a nossa comunicação, é ruído. Respeita-se, em todo o caso, as outras formas de tratamento que, excepcionalmente, um ou outro dos nossos tertulianos queiram usar em público. O Carlos Vinhal não gosta de tratar ninguém por tu, fora das suas relações íntimas. O Beja Santos respondeu na mesma moeda: tratou o Carlos por você. Aliás, recordo-me de ele tratar por você os seus soldados do Pel Caç Nat 52. Eu e os meus soldados da CCAÇ 12 tratávamo-nos por tu. Sem complexos de inferioridade ou de superioridade. A nossa caserna é plural, pelo que deve respeitar as diferentes idiossincrasias, sensibilidades, particularidades...O mais importante é que todos e cada um se sintam confortáveis na tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné.
Caríssimo camarada bloguista Dr. Beja Santos (1):
Voltando ao termo terrorista que eu pessoalmente não gosto de utilizar, venho rebater/clarificar o meu ponto de vista.
Para mim, acto terrorista é uma reacção violenta contra pessoas e/ou bens, sem ter em conta se essas pessoas foram agentes activos nas acções que motivaram o terrorismo. Lembremo-nos do 11 de Setembro e do 11 de Março, por exemplo. Tratou-se de actos violentos de um inimigo sem rosto e nome duvidoso que originou a morte a milhares de pessoas inocentes e a destruição de bens, com o fim de atingir a economia dos países respectivos, confundindo regimes políticos com cidadãos indefesos. Foram ataques indiscriminados, visando o caos.
No nosso caso, estivemos numa guerra subversiva em território mais ou menos conhecido e delimitado, onde os contendores tinham nome e rosto. O objectivo era conhecido e a missão era o controle da população e o reconhecimento político, deixando para segundo plano a conquista de terreno.
Diga-se em abono da verdade que as populações controladas, por nós e por eles, foram muitas vezes apanhadas pelo fogo cruzado, mas as batalhas mais importantes foram travadas entre forças militares ou militarizadas. Cometeram-se exageros quando se mataram civis desarmados e crianças. Estes, os tais casos de consciência a que me referi anteriormente. As minas e as armadilhas que fizeram e ainda fazem vítimas inocentes, infelizmente fazem parte de uma sub-guerra onde todos temos culpas. Como a utilização do napalm.
Os termos Ultramar ou Colónia para mim são pacíficos. O primeiro designa que a posição geográfica dessa parcela territorial está além-mar. O segundo designa um conceito de soberania sobre um terrritório afastado duma Metrópole politicamente dominante. O doutor(2) sabe isto bem melhor do que eu, mas refiro-o para alicerçar o meu ponto de vista.
Quanto aos republicanos terem entrado na 1.ª Guerra Grande para defender o Ultramar, aqui tratava-se de defender o território da cobiça internacional, nomeadamente por parte da Alemanha e Inglaterra, como sabe. A nossa guerra, contra o PAIGC, foi contra o direito à soberania.
Os melhores cumprimentos e um abraço do camarada e admirador
Carlos Vinhal
Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá (1970/72)
Leça da Palmeira
Telem 916032220
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1228: Questões politicamente (in)correctas (4): Terror e contra-terror na guerra colonial ou do Ultramar (Beja Santos)
(2) O tratamento por tu é a regra básica da nossa tertúlia. O uso de títulos (académicos, militares ou outros) também não é incentivado. Razão: não melhora a nossa comunicação, é ruído. Respeita-se, em todo o caso, as outras formas de tratamento que, excepcionalmente, um ou outro dos nossos tertulianos queiram usar em público. O Carlos Vinhal não gosta de tratar ninguém por tu, fora das suas relações íntimas. O Beja Santos respondeu na mesma moeda: tratou o Carlos por você. Aliás, recordo-me de ele tratar por você os seus soldados do Pel Caç Nat 52. Eu e os meus soldados da CCAÇ 12 tratávamo-nos por tu. Sem complexos de inferioridade ou de superioridade. A nossa caserna é plural, pelo que deve respeitar as diferentes idiossincrasias, sensibilidades, particularidades...O mais importante é que todos e cada um se sintam confortáveis na tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné.
Guiné 63/74 - P1239: Recordando o meu pai: era o silêncio o que mais custava ouvir-lhe (Ana Ferreira)
Amigos & camaradas:
1. Segundo os nossos usos e costumes de cristãos (e antes deles, os antepassados dos nossos antepassados, recolectores-caçadores do Paleolítico Superior), hoje que é dia de lembrar todos os nossos entes queridos que partiram desta vida, incluindo os nossos camaradas que morreram na Guiné, incluindo as centenas que terão ficado enterrados, longe de casa, como o Lourenço, o Peixoto ou o Victoriano (Guidaje, Maio de 1973), ou muitos outros cuja nome a terra e os vivos já apagaram (em Bissau, em Bambadinca, e tantos outros 'cemitérios' militares, já aqui abundamente evocados (1) ...
Mas também podemos e devemos lembrar todos os que morreram precocemente, a seguir à guerra, ou muitos anos depois da guerra, na lassidão da paz que nunca chegaram a conhecer, vítimas de doença física ou mental, vítimas incluindo as do stresse pós-traumático de guerra...
2. Hoje que é de dia de lembrar, de maneira muito especial, os nossos mortos, mando-vos em primeira mão o testemunho de Ana Paula Ferreira, filha do nosso camarada, o cabo Ferreira, carinhosamente conhecido como o cabo 14... A Ana Ferreira, que eu não conheço pessoalmente, é professora e, além disso, é membro da nossa tertúlia, uma das poucas mulheres, de resto, que têm enviado os seus escritos para o nosso blogue.
É mais um testemunho puro e duro de alguém, de nós, da nossa tertúlia, a quem a guerra dói, ainda dói, e continuará a doer... Emocionou-me o seu testemunho e transmiti-lhe isso, a par do convite para aparecer num próxmo encontro da nossa tertúlia: todos gostaríamos, seguramente, de a poder conhecer.
3. Texto de Ana Ferreira (2):
"Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi", diz o José Teixeira (3). Acredito. Não o foi para o José nem para ninguém. Não o foi para os que lá estiveram , de facto, nem para os que viveram esta guerra, através dos que amavam.
Nos primeiros tempos, ainda eu não era nascida, sei que o meu pai acordava banhado em suores frios, gritando. Achava que ainda estava lá..... a minha mãe não conseguia perceber as palavras que proferia..... falava a língua de lá, que nós aqui não chegámos a aprender.
Anos depois contava-nos os episódios mais pitorescos... o riso das hienas, o banho de mar surpreendido por alguns tubarões curiosos... e depois a voz ficava grave e soturna quando se lembrava dos amigos com quem tinha partilhado tudo e que não tinham voltado. A fome, a sede, a falta de dinheiro, os aerogramas para a minha noiva querida, as ladaínhas repetidas sem vontade nem coragem de contar a verdade.
Era o silêncio que mais custava ouvir-lhe, era quando se calava que mais doía. A todos. Tenho pena que não tivesse dinheiro e não tivesse fugido para fora; tenho pena que tivesse que pactuar com algo tão errado; tenho pena que ele próprio achasse que já não havia retorno; apesar da guerra ser errada, a lealdade para com os amigos falava mais alto.
Um dia chamaram o seu nome. Chamaram o seu nome para uma curta viagem a Portugal. A Lisboa. Mas foi outro que embarcou. A sua incorrecção com superiores tinha desfeito o prémio do louvor "com indómita coragem...blah, blah , blah". Indómita, significaria na altura, a adrenalina que vem da certeza da morte demasiado próxima. Daí a vontade de ir para o mato. Tantos já lá haviam ficado, porque não ele?...
Pequeno e franzino mas sempre livre, mesmo sem o saber desafiava o destino, os superiores , a estupidez da guerra. Trouxe fotografias que desafiam a moral, a sanidade, a ética. Trouxe histórias que arrepiam. Sendo apenas um miúdo, revolta-me.
Hoje vivemos com uma geração que não sabe, não conhece, não quer conhecer. Sou professora e invariavelmente acabo por falar deste tema. Alguns alunos sabem que algum familiar esteve em África. Alguns falam em guerra colonial mas sem saber o que significa. Faço questão de lhes falar da História, da nossa História. Não são as datas, mas os factos. Peço-lhes para falarem, com tios, avós; alguém que tenha vivido nessa altura e tenha de facto, sabido, o que significava partir para o Ultramar (É claro que tenho de explicar o significado de Ultramar. É claro que tenho de explicar o que significa colonial. É claro que tenho de explicar o que significa guerra).
"Justiça moral"? Ninguém vai pedir desculpas pelas vidas então destruídas. Mas nós podemos continuar a falar. Ninguém, nem nada nos poderá impedir se assim o desejarmos. É um direiro que nos assiste e não reconhecerei a ninguém, nunca, o direito de mo retirar. Alguém roubou ao meu pai e a milhares de outros Portugueses, Homens e Mulheres, o direito de escolherem as suas próprias vidas. A esses desejo-lhes o Inferno: a falta de paz, de serenidade, de tranquilidade.
Não estou a ser ambiciosa. Lamento apenas, a nível pessoal, que o meu pai não tenha sobrevivido até hoje, para eu lhe poder contar, como tantos outros, ainda hoje se reunem e falam do que ele silenciou durante a sua curta vida. Afinal ele não estava sozinho nas suas recordações. Posso imaginar a sua comoção ao reencontrar amigos desses tempos tão longamente calados.
Obrigada por me fazerem sentir menos sozinha.
Filha do 1º Cabo Ferreira, Ana Ferreira
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd., por exemplo, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)
(2) Vd. posts anteriores relacionados com a autora e com o seu pai:
8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 616, 1964/66)
9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVI: Cabo 14: pergunto-me se ele algum vez regressou, de facto (Ana Ferreira)
4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1148: Cabo 14, um blogue de homenagem de uma filha a seu pai (Ana Ferreira)
(3) Vd. post de 26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)
1. Segundo os nossos usos e costumes de cristãos (e antes deles, os antepassados dos nossos antepassados, recolectores-caçadores do Paleolítico Superior), hoje que é dia de lembrar todos os nossos entes queridos que partiram desta vida, incluindo os nossos camaradas que morreram na Guiné, incluindo as centenas que terão ficado enterrados, longe de casa, como o Lourenço, o Peixoto ou o Victoriano (Guidaje, Maio de 1973), ou muitos outros cuja nome a terra e os vivos já apagaram (em Bissau, em Bambadinca, e tantos outros 'cemitérios' militares, já aqui abundamente evocados (1) ...
Mas também podemos e devemos lembrar todos os que morreram precocemente, a seguir à guerra, ou muitos anos depois da guerra, na lassidão da paz que nunca chegaram a conhecer, vítimas de doença física ou mental, vítimas incluindo as do stresse pós-traumático de guerra...
2. Hoje que é de dia de lembrar, de maneira muito especial, os nossos mortos, mando-vos em primeira mão o testemunho de Ana Paula Ferreira, filha do nosso camarada, o cabo Ferreira, carinhosamente conhecido como o cabo 14... A Ana Ferreira, que eu não conheço pessoalmente, é professora e, além disso, é membro da nossa tertúlia, uma das poucas mulheres, de resto, que têm enviado os seus escritos para o nosso blogue.
É mais um testemunho puro e duro de alguém, de nós, da nossa tertúlia, a quem a guerra dói, ainda dói, e continuará a doer... Emocionou-me o seu testemunho e transmiti-lhe isso, a par do convite para aparecer num próxmo encontro da nossa tertúlia: todos gostaríamos, seguramente, de a poder conhecer.
3. Texto de Ana Ferreira (2):
"Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi", diz o José Teixeira (3). Acredito. Não o foi para o José nem para ninguém. Não o foi para os que lá estiveram , de facto, nem para os que viveram esta guerra, através dos que amavam.
Nos primeiros tempos, ainda eu não era nascida, sei que o meu pai acordava banhado em suores frios, gritando. Achava que ainda estava lá..... a minha mãe não conseguia perceber as palavras que proferia..... falava a língua de lá, que nós aqui não chegámos a aprender.
Anos depois contava-nos os episódios mais pitorescos... o riso das hienas, o banho de mar surpreendido por alguns tubarões curiosos... e depois a voz ficava grave e soturna quando se lembrava dos amigos com quem tinha partilhado tudo e que não tinham voltado. A fome, a sede, a falta de dinheiro, os aerogramas para a minha noiva querida, as ladaínhas repetidas sem vontade nem coragem de contar a verdade.
Era o silêncio que mais custava ouvir-lhe, era quando se calava que mais doía. A todos. Tenho pena que não tivesse dinheiro e não tivesse fugido para fora; tenho pena que tivesse que pactuar com algo tão errado; tenho pena que ele próprio achasse que já não havia retorno; apesar da guerra ser errada, a lealdade para com os amigos falava mais alto.
Um dia chamaram o seu nome. Chamaram o seu nome para uma curta viagem a Portugal. A Lisboa. Mas foi outro que embarcou. A sua incorrecção com superiores tinha desfeito o prémio do louvor "com indómita coragem...blah, blah , blah". Indómita, significaria na altura, a adrenalina que vem da certeza da morte demasiado próxima. Daí a vontade de ir para o mato. Tantos já lá haviam ficado, porque não ele?...
Pequeno e franzino mas sempre livre, mesmo sem o saber desafiava o destino, os superiores , a estupidez da guerra. Trouxe fotografias que desafiam a moral, a sanidade, a ética. Trouxe histórias que arrepiam. Sendo apenas um miúdo, revolta-me.
Hoje vivemos com uma geração que não sabe, não conhece, não quer conhecer. Sou professora e invariavelmente acabo por falar deste tema. Alguns alunos sabem que algum familiar esteve em África. Alguns falam em guerra colonial mas sem saber o que significa. Faço questão de lhes falar da História, da nossa História. Não são as datas, mas os factos. Peço-lhes para falarem, com tios, avós; alguém que tenha vivido nessa altura e tenha de facto, sabido, o que significava partir para o Ultramar (É claro que tenho de explicar o significado de Ultramar. É claro que tenho de explicar o que significa colonial. É claro que tenho de explicar o que significa guerra).
"Justiça moral"? Ninguém vai pedir desculpas pelas vidas então destruídas. Mas nós podemos continuar a falar. Ninguém, nem nada nos poderá impedir se assim o desejarmos. É um direiro que nos assiste e não reconhecerei a ninguém, nunca, o direito de mo retirar. Alguém roubou ao meu pai e a milhares de outros Portugueses, Homens e Mulheres, o direito de escolherem as suas próprias vidas. A esses desejo-lhes o Inferno: a falta de paz, de serenidade, de tranquilidade.
Não estou a ser ambiciosa. Lamento apenas, a nível pessoal, que o meu pai não tenha sobrevivido até hoje, para eu lhe poder contar, como tantos outros, ainda hoje se reunem e falam do que ele silenciou durante a sua curta vida. Afinal ele não estava sozinho nas suas recordações. Posso imaginar a sua comoção ao reencontrar amigos desses tempos tão longamente calados.
Obrigada por me fazerem sentir menos sozinha.
Filha do 1º Cabo Ferreira, Ana Ferreira
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd., por exemplo, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)
(2) Vd. posts anteriores relacionados com a autora e com o seu pai:
8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 616, 1964/66)
9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVI: Cabo 14: pergunto-me se ele algum vez regressou, de facto (Ana Ferreira)
4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1148: Cabo 14, um blogue de homenagem de uma filha a seu pai (Ana Ferreira)
(3) Vd. post de 26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)
Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos (1). Na fotografia aparece, na segunda fila, de pé - devidamente assinalado com um círculo a azul - o médico David Payne (já falecido), tendo a seu lado, à direita, o major Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 e, à sua esquerda, o capitão Brito, comandante da CCAÇ 12.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Alferes Miliciano Médico David Payne integrou a coluna que partiu de Bambadinca (2º Gr Comb da CCAÇ 12 e Pel Rec Inf da CCS do BCAÇ 2852) em socorro do Beja Santos e dos seus militares do Pel Caç Nat 52, vítimas de emboscada com mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé, entre Finete e Missirá.
Na foto, o Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404). Deste episódio de guerra resultou um morto e três feridos graves, entre o pessoal que seguia na viatura.
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos:
Caro Luis, o Payne, mais do que meu amigo, foi um missionário e a imagem ao vivo dos médicos tipo João Semana. Ele merece entrar pela porta alta do nosso blogue. Aqui vai e recebe um abraço do Mário.
Algumas notas vibrantes para um luso-britânico e médico no Sector L1, algures entre 1968 e 1969
por Beja Santos
Tocou-me profundamente as lembranças que o Torcato Mendonça (2) veio aqui trazer sobre o primeiro médico do BCAÇ 2852, David Payne Pereira. Conhecemo-nos em 62, à volta dos nossos protestos estudantis. E foi com muita alegria que o revi no dia 24 de Julho de 1968, a bordo do Uge.
Falámos de tudo e de nada e quando nos despedimos, já na madrugada de 29, mal sabíamos que nos iríamos encontrar tão regular e intensamente, a partir de Setembro. Apanhei-o ainda na inocência, e saquei-lhe um acordo quanto a receber as populações civis de Missirá e Finete, pelo menos duas horas de uma manhã à sua escolha.
Eram tantas as doenças, tanto o sofrimento e tantos os doentes que as duas passaram para três e mesmo quatro horas, e em determinada altura mesmo todos os dias havia lista de espera para a consulta da gente do Cuor.
O Payne era um luso-britânico. Quero eu com isto dizer que bebia chá sem macaquear a finesse, acreditava nas instituições multisseculares, fora educado por uma mãe inglesa a cumprir horários, a amar a música e a tratar toda a gente com deferência.
Tínhamos vários ídolos em comum, sendo o principal Gerald Moore, talvez o maior pianista acompanhante de todos os tempos. Quando eu procurava surpreendê-lo propondo-lhe ouvirmos a Sinfonia Ressureição, de Mahler, na versão de Otto Klemperer à frente da orquestra Philarmonia, ele respondia-me com versões surpreendentes dos Concertos Brandburgueses de Bach.
O Torcato Mendonça refere as suas deambulações/visitas de trabalho pelas unidades do sector, o que era um facto e emanava da sua personalidade e sentido do dever: um médico está disponível e mostra que antecipa tal disponibilidade.
Quando havia feridos, ele apresentava-se. Assim vai acontecer na noite de 15 de Outubro de 69, quando ele for a Finete cuidar dos meus feridos graves e fechar os olhos ao nosso condutor que não resistiu ao impacto da mina anticarro (3).
Em 69 ele vai trabalhar para Bissau e, em 70, por meu convite, ele e a Isabel (a sua mulher), foram padrinhos de casamento da Cristina, em Abril. Regressámos, e a nossa amizade fortaleceu-se. Visitava-o frequentemente na Avenida António Augusto Aguiar, e enquanto os miúdos brincavam nós ouvíamos Gerard Moore a acompanhar vozes divinas e bebíamos chá.
Duas doenças traiçoeiras foram minando-o, numa altura em que ele fazia uma carreira brilhante na psiquiatria. Ele partiu na força da vida e cheio de coisas para fazer. Perdemos um camarada da Guiné que recordava amíude, e com uma saudade nada lamechas, a vida de caserna, as consultas, os tratamentos de urgência e o crédito das boas amizades firmadas.
Fiquei-lhe a dever inestimáveis atenções e permito-me propor que de vez em quando ele entre em cena. Da minha parte, vou distingui-lo em determinados momentos na Operação Macaréu à Vista: a noite da visita triunfal do Pimbas ao Cuor; o seu comportamento aquando a companhia do Paulo Raposo foi sujeita ao doloroso traumatismo das vidas perdidas no Rio Corubal, em Cheche (4); a visita de urgência que me fez quando em Abril de 69 eu julguei que tinha a vida por um fio; a sua elegância no acolhimento que me fez na sua casa em Bissau quando em casei.
Toda aquela imagem que temos do médico devotado, materialmente desinteressado e incapaz de receber dinheiro pelas consultas, e cujas estátuas encontramos em tantas localidades do nosso País, reconhecidos como anjos tutelares por aqueles que foram suavizados no seu sofrimento, enquadra perfeitamente na postura exemplar do David Payne Pereira no Sector L1. E um obrigado ao Torcato Mendonça por me ter ajudado a remexer nos escaninhos da memória.
________
Nota de L.G.:
(1) Bd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1096: O álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)
(2) Vd. pots de 28 de Outubrod e 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira
(...) "Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui, [na foto,] veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.
"Tive agora conhecimento do seu desaparecimento. Lastimo profundamente" (...).
(3) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá.
Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)
(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (1): A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).
"Não foi a 15, mas sim a 16. O Corca Só não levou para Madina/Belel o escalpe do Beja Santos. E isso é o mais importante: ele hoje está vivo e entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos" (...).
(4) A CCAÇ 2405, aquartelada em Galomaro e Dulombi (1968/70), e a que pertenciam os nossos tertulianos Paulo Raposo, Rui Felício e Victor David, perdeu 17 dos seus homens, na travessia do Rio Corubal, em Cheche, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereirod e 1969 Vd. entre outros os seguintes posts:
7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)
6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois (Luís Graça / Xico Allen / Albano Costa)
3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)
8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé
8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)
2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...
17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
Guiné 63/74 - P1237: Lembranças do David Payne (Torcato Mendonça / Beja Santos)
1. Mensagem do Beja Santos, de 30 de Outubro de 2006:
Caro Luís, gostei muitíssimo das recordações do Torcato Mendonça sobre o Payne. Como sabes, conheci o Payne nas manifestações estudantis de 62, depois a vida separou-nos e reencontramo-nos no Uíge, em Julho de 68. Fiquei-lhe a dever inúmeras atenções, sobretudo com a forma tão disponível como ele recebia regularmente as populações civis de Missirá e Finete. Só faz sentido eu atrelar-me a esta saudação se tu tiveres espaço. Prefiro escrever quando tu me disseres que é oportuno. Recebe um abraço do Mário.
2. Resposta de L.G.:
Mário: A nossa conversa é como às cerejas… Seria justo evocar aqui os médicos (mas também os enfermeiros) que estiveram connosco. Dentro das tuas prioridades, escreve sobre o Payne, quando quiseres. Prometo publicar o teu texto logo a seguir.
3.Mensagem, a seguir, do Torcato Mendonça, de 30 de Outubro de 2006
Caro Luís Graça:
Foi, através de uma das estórias do Beja Santos, que soube do desaparecimento do Payne. Fiquei triste. Se há pessoas que gostava de voltar a ver, ele era uma era uma delas. Tive conversas com o Payne sobre os mais variados assuntos. A saúde física e mental das NT, das populações e... muito mais, muito mais.
Ele estava em Bambadinca com a mulher. O conhecimento do Beja Santos é mais forte, quer pelas razões por ele aduzidas no mail quer pela convivência em Bambadinca. È bom saber que alguém vai escrever, vai relembrar um amigo. Os afectos vindos de lá são diferentes. Mesmo divergindo nalguns pontos, a nossa união, chamemos-lhe assim, é superior ou transcende mesmo o normal. É, ou foi a vivência das situações de perigo. Creio que sim.
Posso não concordar com algumas coisas que escreves, Beja Santos. Além de gostar de ler, respeito a tua forma de sentir e relatar o passado. Fala do Payne. Merece ser relembrado quem ajudou tantos, discordando da guerra.
Luís Graça: o primeiro morto da CART 2339 foi um enfermeiro. Foi ferido na Moricanhe (1). O desempenho deles era fundamental para as NT. Em operações e nos aquartelamentos.
Parece que [ainda] ninguém falou das Enfermeiras Paraquedistas. Fui evacuado e tratado por uma, em Nova Lamego. Contactei várias vezes com elas nas evacuações. Vezes demais. Era interessante alguém, que as tenha conhecido bem ou, alguma delas, escrever sobre a Guiné.
Um abraço aos dois do
Torcato Mendonça
_________
Nota de L.G.:
(1)Moricanhe: destacamento de milícias e tabanca em autodefesa, entre o Xime e Mansambo, na ZA da CART 2339, Mansambo,1968/69, mais tarde abandonado pelas NT, no decurso da reacção do PAIGC à Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969): vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Carlos Marques dos Santos)
Caro Luís, gostei muitíssimo das recordações do Torcato Mendonça sobre o Payne. Como sabes, conheci o Payne nas manifestações estudantis de 62, depois a vida separou-nos e reencontramo-nos no Uíge, em Julho de 68. Fiquei-lhe a dever inúmeras atenções, sobretudo com a forma tão disponível como ele recebia regularmente as populações civis de Missirá e Finete. Só faz sentido eu atrelar-me a esta saudação se tu tiveres espaço. Prefiro escrever quando tu me disseres que é oportuno. Recebe um abraço do Mário.
2. Resposta de L.G.:
Mário: A nossa conversa é como às cerejas… Seria justo evocar aqui os médicos (mas também os enfermeiros) que estiveram connosco. Dentro das tuas prioridades, escreve sobre o Payne, quando quiseres. Prometo publicar o teu texto logo a seguir.
3.Mensagem, a seguir, do Torcato Mendonça, de 30 de Outubro de 2006
Caro Luís Graça:
Foi, através de uma das estórias do Beja Santos, que soube do desaparecimento do Payne. Fiquei triste. Se há pessoas que gostava de voltar a ver, ele era uma era uma delas. Tive conversas com o Payne sobre os mais variados assuntos. A saúde física e mental das NT, das populações e... muito mais, muito mais.
Ele estava em Bambadinca com a mulher. O conhecimento do Beja Santos é mais forte, quer pelas razões por ele aduzidas no mail quer pela convivência em Bambadinca. È bom saber que alguém vai escrever, vai relembrar um amigo. Os afectos vindos de lá são diferentes. Mesmo divergindo nalguns pontos, a nossa união, chamemos-lhe assim, é superior ou transcende mesmo o normal. É, ou foi a vivência das situações de perigo. Creio que sim.
Posso não concordar com algumas coisas que escreves, Beja Santos. Além de gostar de ler, respeito a tua forma de sentir e relatar o passado. Fala do Payne. Merece ser relembrado quem ajudou tantos, discordando da guerra.
Luís Graça: o primeiro morto da CART 2339 foi um enfermeiro. Foi ferido na Moricanhe (1). O desempenho deles era fundamental para as NT. Em operações e nos aquartelamentos.
Parece que [ainda] ninguém falou das Enfermeiras Paraquedistas. Fui evacuado e tratado por uma, em Nova Lamego. Contactei várias vezes com elas nas evacuações. Vezes demais. Era interessante alguém, que as tenha conhecido bem ou, alguma delas, escrever sobre a Guiné.
Um abraço aos dois do
Torcato Mendonça
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Nota de L.G.:
(1)Moricanhe: destacamento de milícias e tabanca em autodefesa, entre o Xime e Mansambo, na ZA da CART 2339, Mansambo,1968/69, mais tarde abandonado pelas NT, no decurso da reacção do PAIGC à Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969): vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Carlos Marques dos Santos)
Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
Évora > A Praça do Giraldo em 2006 > "De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo" (Mendes Gomes)…
Foto: Luís Graça (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
O Palmeirim de Catió é o Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a segunda parte da sua crónica. Continuamos a aguardar fotos do seu álbum do tempo da Guiné (1).
Segunda Parte > 2. De Évora para a Guiné
2.1. Sorte ou destino ?
As últimas semanas de Évora redobraram em esforço e penar, quando se soube o destino que nos calhara.
Das três hipóteses, a Guiné era, à partida e em abstracto, a mais receada por toda a gente. Pior clima, risco muito maior, segundo se dizia. Além disso, a Guiné só tinha uma cidade que merecesse o nome: Bissau. O resto era mata e campos de arroz.
O fascínio de Angola e Moçambique compensava, um pouco, o que de mau pudesse esperar-se. Tantos continuavam a escolher aquelas paragens para viver. Depois, os testemunhos, directos e de portas travessas, abonavam uma passagem por lá, apesar dos riscos.
A grandeza de África, nos rios e matas, nas montanhas e na riqueza natural, a vida selvagem, a variedade da população nativa emprestavam um apelo forte àquela sorte. E as muitas cidades, erguidas à boa maneira africana, como réplicas de cidades da metrópole lusíada!…
Na Guiné, só a beleza natural e étnica prometiam lenitivo para a tormenta certa.
2.2. R.I. 16 - ÉVORA
De novo, uns dias de descanso, para mim, em terras de Pedra Maria, à espera do embarque.
Em dia certo de Agosto, teríamos de regressar ao quartel de Évora. A partida para o barco, no cais de Alcântara, far-se-ia de lá, Évora, em comboio especial.
Unidos pela sorte comum, estávamos condenados a ser bons camaradas e, de preferência, melhores amigos.
Era a guerra, imaginada em pesadelos, que nos esperava nas matas tenebrosas da Guiné.
A experiência viva da instrução militar, nos montes e caminhos perdidos no vasto Alentejo, não deixava espaço para grandes esperanças, numa luta de guerrilha traiçoeira.
- Seja o que Deus quiser -, pensava eu e poucos mais.
A maioria dos soldados eram alentejanos, para quem Deus pouco ou nada dizia. Para eles, era só a sorte e esta, o destino de cada um. E qual seria?…
A cerveja, essa, haveria de ajudar a passar o tempo. O resto se veria.
Uma coisa parecia certa e não querida. Aquele batalhão tinha à frente de cada uma das três companhias de infantaria um dos três mais temíveis oficiais, dizia-se, nunca antes saídos da Academia Militar. Chamavam-lhe os Três Mosqueteiros.
Na semana de Évora que antecedeu a incorporação dos recrutas no R.I.16, a dúzia de aspirantes milicianos, os designados comandantes de pelotão do batalhão que iria formar-se com destino para o ultramar, foi um joguete nas mãos daqueles figurões.
Na preparação física, o tenente Pinto pôde demonstrar, à saciedade, todo o capital acumulado de recordes, em flexões de braços e pernas, abdominais, saltos, corridas e demais proezas e de toda a panóplia muscular, religiosamente esquartejada nas longas horas académicas. Para além da ufana exibição de resultados através das linhas do seu físico escultural…
Na preparação ético-militar, era o tenente Varão quem dava cartas. O tenente Varão, o mais bravo, era comandante da minha companhia, a 728.
De porte garboso, longos braços e pernas, bamboleantes, gerindo muito bem a sua estatura, excepcionalmente elevada, bastante acima da nossa média, cultivava, sem esforço, uma eloquência fácil, onde procurava realçar uma escrupulosa propriedade de termos, em discurso que procurava ser demonstrativo da grande cultura geral que lhe atribuíam.
Rosto, oval e afilado por um nariz comprido e adunco; olhos mortiços, embora aquilinos; boca em forma de y, sugerindo a de um tenro golfinho; cabelo claro, curto e hirsuto, mas obrigado a formar madeixa ao lado; tez pálida e tristonha, onde o sorriso nunca se abria, apenas se esboçava.
Parecia querer incarnar, em si, o protótipo do verdadeiro militar, na decisão, na autoconfiança, na disciplina e na valentia. Pronto a subir até ao generalato. Iríamos ser, por certo, um chicote implacável, nas suas mãos, em terras de África.
O outro, o tenente Cavaleiro parecia ser o mais normal e aproximado do padrão miliciano. Mais dialogante e menos castrense. ( Só este viria a chegar a general…)
Toda a experiência de instrutores, desenvolvida nos vários quartéis, como simples aspirantes, ia ser posta à prova. Em proveito próprio, também. Tratava-se de preparar o pelotão que ia ser levado até às matas da guerra.
A seriedade e densidade da aprendizagem que, pelos seus 4 aspirantes teria de ser incutida aos soldados da companhia, teve no comandante Varão, um incansável e obssessivo mentor. A distância entre ele e os seus aspirantes e sargentos estava fora de dúvidas. Relacionamento, só em serviço e de serviço…e, muito respeitinho pelos elos da hierarquia…
Os montes secos e tórridos do Alentejo, de Maio a Agosto, ajudaram a causticar a modelação pretendida. A única saída residiu no espírito de corpo que se desenvolveu, apesar de tudo, entre os 4 oficiais milicianos e respectivos sargentos da 728.
O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão.
Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura. Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.
Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos 4.
O Arlindo Santos, bairradino de origem, aparentado ao famoso José Cid, então na berra, era de feitio fleumático, calado e observador. Bom conversador, quando se dispunha a isso, embora limitado e concentrado numa temática, balizada pelo sensacional e fantástico. Quem quisesse saber as últimas, verdadeiras ou, por vezes, fantasiosas, era procurá-lo.
Eu tinha o 3º pelotão à minha conta: 90% de alentejanos, lentos, mas dóceis. Melancólicos, por natureza. Só o furriel Brás, tripeiro de gema, conseguia quebrar aquele bloco desvitalizado com a sua viola inseparável e um reportório vasto de desgarradas nortenhas.
O 2º sargento Gaspar, mais velho uma dezena e meia de anos do que todos, já ia na 2ª ou 3ª comissão de ultramar!…Modos de vida. Era casado e com filhos na metrópole.
Corpo e espírito de orangotango, haveria de dar os seus problemas, em teatro de guerra. Na véspera das operações, não havia doença que aquele corpanzil não tivesse. Para o fim, o pelotão já lhe perdoava e até preferia que ele ficasse no quartel. Um peso morto. Mas refilão, de sobra…Ah! Ainda conseguia fazer flic-flac, à rectaguarda…e era bom a contar anedotas. No final, já as repetia. Dizem que voltou para Angola, noutra missão e acabou chefe de posto…Uma Autoridade Administrativa.
O cabo Augusto era empregado de mesa no hotel Ritz. Revelar-se-ia um prestimoso cozinheiro de caldeiradas…Pacato e sempre pronto a avançar, muito dialogante. Os soldados gostavam dele. O cabo Madaíl, aveirense castiço, muito frontal, parecia ser destemido. À última da hora, os cuidados do pai, muito bem relacionado nas terras e salinas da ria, conseguiu comprar-lhe a sua substituição. Não foi promovido a furriel… Daí o ter surgido o 2º sargento, Leonel, um coimbrão, pacato, repetente, em mais uma comissão. Vidas. Também era casado e com descendentes.
No 4º pelotão, estava o Aspirante Gonçalves. Alentejano das raias de Espanha, em Campo Maior. De porte pequeno, ratinho, de olhos azuis, caracoletas alouradas, mas voz barítona. Era bravo e vivaço. Sempre, um leal amigo…Já nos conhecíamos das românticas guerras no B.I.19 da Madeira…
Falar-lhe da sua Passarinho foi sempre o ponto fraco…Então, com uma cerveja a mais, era um livro aberto… Ainda hoje, aquela felizarda é a sua feliz cara-metade…
De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo…
Só aos fins de semana, poucos, foi possível partilhar aquela calma, quase a roçar uma tristeza lânguida.
A rica Sé e o seu tesouro quase milenar, o resto das colunas de sabor grego do templo de Diana, a capela dos ossos, de gosto irreverente, dedicada sei lá porquê, a São Francisco, o verde jardim, viçoso e labiríntico de D. Manuel I, as ruelas brancas e estreitinhas, autênticos pedaços das urbes mouriscas, as formosas e arabescas chaminés no cimo das casas, onde parecia ninguém habitar, pelo calor constante, foi o repasto turístico da maioria, ali deslocada, originária das terras buliçosas do norte.
O quartel era quase moderno nas suas enormes casernas, que as camas de 2 e 3 andares multiplicavam, sabiamente, o reduzido espaço para tanta gente: As salas de oficiais, sargentos e praças eram verdadeiros bares, cá de fora; a cozinha monacal, de grandes panelões a fumegar e um refeitório amplo, com as terrinas metálicas sobre mesas, compridas, de mármore; a cadeia castrense para serenar os ânimos mais exaltados; uma enorme parada calcetada a granito, servindo de altar quotidiano à indispensável mística militar... são as reminiscências que ficaram a perdurar na lembrança dos candidatos forçados à guerra de África…
_____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
Foto: Luís Graça (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
O Palmeirim de Catió é o Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a segunda parte da sua crónica. Continuamos a aguardar fotos do seu álbum do tempo da Guiné (1).
Segunda Parte > 2. De Évora para a Guiné
2.1. Sorte ou destino ?
As últimas semanas de Évora redobraram em esforço e penar, quando se soube o destino que nos calhara.
Das três hipóteses, a Guiné era, à partida e em abstracto, a mais receada por toda a gente. Pior clima, risco muito maior, segundo se dizia. Além disso, a Guiné só tinha uma cidade que merecesse o nome: Bissau. O resto era mata e campos de arroz.
O fascínio de Angola e Moçambique compensava, um pouco, o que de mau pudesse esperar-se. Tantos continuavam a escolher aquelas paragens para viver. Depois, os testemunhos, directos e de portas travessas, abonavam uma passagem por lá, apesar dos riscos.
A grandeza de África, nos rios e matas, nas montanhas e na riqueza natural, a vida selvagem, a variedade da população nativa emprestavam um apelo forte àquela sorte. E as muitas cidades, erguidas à boa maneira africana, como réplicas de cidades da metrópole lusíada!…
Na Guiné, só a beleza natural e étnica prometiam lenitivo para a tormenta certa.
2.2. R.I. 16 - ÉVORA
De novo, uns dias de descanso, para mim, em terras de Pedra Maria, à espera do embarque.
Em dia certo de Agosto, teríamos de regressar ao quartel de Évora. A partida para o barco, no cais de Alcântara, far-se-ia de lá, Évora, em comboio especial.
Unidos pela sorte comum, estávamos condenados a ser bons camaradas e, de preferência, melhores amigos.
Era a guerra, imaginada em pesadelos, que nos esperava nas matas tenebrosas da Guiné.
A experiência viva da instrução militar, nos montes e caminhos perdidos no vasto Alentejo, não deixava espaço para grandes esperanças, numa luta de guerrilha traiçoeira.
- Seja o que Deus quiser -, pensava eu e poucos mais.
A maioria dos soldados eram alentejanos, para quem Deus pouco ou nada dizia. Para eles, era só a sorte e esta, o destino de cada um. E qual seria?…
A cerveja, essa, haveria de ajudar a passar o tempo. O resto se veria.
Uma coisa parecia certa e não querida. Aquele batalhão tinha à frente de cada uma das três companhias de infantaria um dos três mais temíveis oficiais, dizia-se, nunca antes saídos da Academia Militar. Chamavam-lhe os Três Mosqueteiros.
Na semana de Évora que antecedeu a incorporação dos recrutas no R.I.16, a dúzia de aspirantes milicianos, os designados comandantes de pelotão do batalhão que iria formar-se com destino para o ultramar, foi um joguete nas mãos daqueles figurões.
Na preparação física, o tenente Pinto pôde demonstrar, à saciedade, todo o capital acumulado de recordes, em flexões de braços e pernas, abdominais, saltos, corridas e demais proezas e de toda a panóplia muscular, religiosamente esquartejada nas longas horas académicas. Para além da ufana exibição de resultados através das linhas do seu físico escultural…
Na preparação ético-militar, era o tenente Varão quem dava cartas. O tenente Varão, o mais bravo, era comandante da minha companhia, a 728.
De porte garboso, longos braços e pernas, bamboleantes, gerindo muito bem a sua estatura, excepcionalmente elevada, bastante acima da nossa média, cultivava, sem esforço, uma eloquência fácil, onde procurava realçar uma escrupulosa propriedade de termos, em discurso que procurava ser demonstrativo da grande cultura geral que lhe atribuíam.
Rosto, oval e afilado por um nariz comprido e adunco; olhos mortiços, embora aquilinos; boca em forma de y, sugerindo a de um tenro golfinho; cabelo claro, curto e hirsuto, mas obrigado a formar madeixa ao lado; tez pálida e tristonha, onde o sorriso nunca se abria, apenas se esboçava.
Parecia querer incarnar, em si, o protótipo do verdadeiro militar, na decisão, na autoconfiança, na disciplina e na valentia. Pronto a subir até ao generalato. Iríamos ser, por certo, um chicote implacável, nas suas mãos, em terras de África.
O outro, o tenente Cavaleiro parecia ser o mais normal e aproximado do padrão miliciano. Mais dialogante e menos castrense. ( Só este viria a chegar a general…)
Toda a experiência de instrutores, desenvolvida nos vários quartéis, como simples aspirantes, ia ser posta à prova. Em proveito próprio, também. Tratava-se de preparar o pelotão que ia ser levado até às matas da guerra.
A seriedade e densidade da aprendizagem que, pelos seus 4 aspirantes teria de ser incutida aos soldados da companhia, teve no comandante Varão, um incansável e obssessivo mentor. A distância entre ele e os seus aspirantes e sargentos estava fora de dúvidas. Relacionamento, só em serviço e de serviço…e, muito respeitinho pelos elos da hierarquia…
Os montes secos e tórridos do Alentejo, de Maio a Agosto, ajudaram a causticar a modelação pretendida. A única saída residiu no espírito de corpo que se desenvolveu, apesar de tudo, entre os 4 oficiais milicianos e respectivos sargentos da 728.
O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão.
Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura. Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.
Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos 4.
O Arlindo Santos, bairradino de origem, aparentado ao famoso José Cid, então na berra, era de feitio fleumático, calado e observador. Bom conversador, quando se dispunha a isso, embora limitado e concentrado numa temática, balizada pelo sensacional e fantástico. Quem quisesse saber as últimas, verdadeiras ou, por vezes, fantasiosas, era procurá-lo.
Eu tinha o 3º pelotão à minha conta: 90% de alentejanos, lentos, mas dóceis. Melancólicos, por natureza. Só o furriel Brás, tripeiro de gema, conseguia quebrar aquele bloco desvitalizado com a sua viola inseparável e um reportório vasto de desgarradas nortenhas.
O 2º sargento Gaspar, mais velho uma dezena e meia de anos do que todos, já ia na 2ª ou 3ª comissão de ultramar!…Modos de vida. Era casado e com filhos na metrópole.
Corpo e espírito de orangotango, haveria de dar os seus problemas, em teatro de guerra. Na véspera das operações, não havia doença que aquele corpanzil não tivesse. Para o fim, o pelotão já lhe perdoava e até preferia que ele ficasse no quartel. Um peso morto. Mas refilão, de sobra…Ah! Ainda conseguia fazer flic-flac, à rectaguarda…e era bom a contar anedotas. No final, já as repetia. Dizem que voltou para Angola, noutra missão e acabou chefe de posto…Uma Autoridade Administrativa.
O cabo Augusto era empregado de mesa no hotel Ritz. Revelar-se-ia um prestimoso cozinheiro de caldeiradas…Pacato e sempre pronto a avançar, muito dialogante. Os soldados gostavam dele. O cabo Madaíl, aveirense castiço, muito frontal, parecia ser destemido. À última da hora, os cuidados do pai, muito bem relacionado nas terras e salinas da ria, conseguiu comprar-lhe a sua substituição. Não foi promovido a furriel… Daí o ter surgido o 2º sargento, Leonel, um coimbrão, pacato, repetente, em mais uma comissão. Vidas. Também era casado e com descendentes.
No 4º pelotão, estava o Aspirante Gonçalves. Alentejano das raias de Espanha, em Campo Maior. De porte pequeno, ratinho, de olhos azuis, caracoletas alouradas, mas voz barítona. Era bravo e vivaço. Sempre, um leal amigo…Já nos conhecíamos das românticas guerras no B.I.19 da Madeira…
Falar-lhe da sua Passarinho foi sempre o ponto fraco…Então, com uma cerveja a mais, era um livro aberto… Ainda hoje, aquela felizarda é a sua feliz cara-metade…
De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo…
Só aos fins de semana, poucos, foi possível partilhar aquela calma, quase a roçar uma tristeza lânguida.
A rica Sé e o seu tesouro quase milenar, o resto das colunas de sabor grego do templo de Diana, a capela dos ossos, de gosto irreverente, dedicada sei lá porquê, a São Francisco, o verde jardim, viçoso e labiríntico de D. Manuel I, as ruelas brancas e estreitinhas, autênticos pedaços das urbes mouriscas, as formosas e arabescas chaminés no cimo das casas, onde parecia ninguém habitar, pelo calor constante, foi o repasto turístico da maioria, ali deslocada, originária das terras buliçosas do norte.
O quartel era quase moderno nas suas enormes casernas, que as camas de 2 e 3 andares multiplicavam, sabiamente, o reduzido espaço para tanta gente: As salas de oficiais, sargentos e praças eram verdadeiros bares, cá de fora; a cozinha monacal, de grandes panelões a fumegar e um refeitório amplo, com as terrinas metálicas sobre mesas, compridas, de mármore; a cadeia castrense para serenar os ânimos mais exaltados; uma enorme parada calcetada a granito, servindo de altar quotidiano à indispensável mística militar... são as reminiscências que ficaram a perdurar na lembrança dos candidatos forçados à guerra de África…
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
Guiné 63/74 - P1235: Coronel Correia de Campos: um homem de grande coragem em Sambuiá e Guidaje (A. Marques Lopes)
O Coronel António Correia de Campos, um homem de cavalaria e do 25 de Abril, aqui justamente evocado pelo nosso camarada A. Marques Lopes. Fonte: Portal do Exército (2006)
Texto enviado em 22 de Outubro último pelo A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba; e CCAÇ 3, Barro), membro da direcção da delegação Norte da A25A - Associação 25 de Abril.
Caros camaradas:
A propósito de Guidaje, e do post recentemente colocado no blogue (1), deixem-me aqui recordar um homem por quem fiquei com muita admiração desde a primeira vez que o conheci.
Eu conheci o tenente-coronel António Correia de Campos num dia de 1968, quando eu estava com a CCAÇ3 de Barro, durante uma operação realizada no corredor de Sambuiá e por ele comandada (foi nessa altura também o comandante do COP3).
No meio do fogachal de uma emboscada vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
- O morteiro está à direita, uma bazucada para lá!... Fogo intenso para o lado esquerdo, é lá que está o RPG!...
Disseram-me, depois, que o Correia de Campos era mesmo assim, uma coragem e calma impressionantes. Numa outra operação na mesma zona [vd. carta de Bigene], já nos finais de 1968, também comandada por ele, o meu grupo, quando foi dada ordem de retirar, atrasou-se, porque levava um morto com o pescoço aberto por um estilhaço de rocket, e um guerrilheiro, ferido com uma rajada na barriga e deixado pelo IN, ia apoiado nos ombros de dois soldados meus (2).
Quando tivemos que atravessar uma bolanha com água muito alta (foi em plena época das chuvas) disse aos meus para fazerem uma maca de ramos para o deitar e levá-la pela bolanha. Fizeram a maca, sim senhor, mas não quizeram pegar nela:
- É turra, deixa ficar, vem jagudi e come ele...
Pegámos nela, eu e um furriel branco. O nosso morto foi às costas de um do grupo. Só quando íamos a meio da bolanha, com água pelo peito, é que apareceram dois, muito enfiados, a oferecerem-se para levar a maca. Chegámos depois à base de operações, onde estava já o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira paraquedista. Mandei formar o grupo, mesmo em frente do tenente-coronel, e dei-lhes uma piçada, chamei-lhes todos os nomes... e que nem eram bons para os gajos da raça deles... e coisas que me vieram à cabeça por estar muito lixado. Diz-me o tenente-coronel Correia de Campos, que me ouvira serenamente:
- E pá, não te chateies, as coisas são mesmo assim... manda-os pó caralho e paga-lhes umas cervejas... Mas , olha, a enfermeira diz que o homem já morreu, não aguentou.
Era também comandante do COP3[, com sede em Bigene, ] durante o cerco de Guidaje (1), para onde foi assim que o cerco começou (esteve lá desde 10 de Maio). No Público Magazine, de 5 de Novembro de 1995, escreveu o jornalista Francisco de Vasconcelos:
“Sobre a acção de Correia de Campos no cerco (que é também destacada por Ayala Boto), um dos oficiais das forças especiais ali enviadas foi peremptório: Guidage, no fundo, não há dúvida, aguentou-se devido a ele. Foi um esforço brutal pedido a um homem de 50 anos. Uma vez terminado o cerco, Correia de Campos — hoje reformado em coronel — esteve alguns dias preso em Bissau, devido a uma infracção cometida em época anterior por um oficial sob o seu comando...
“No meio do inferno de Guidage, o governador Spínola foi ali de helicóptero para visitar a guarnição, dirigir um apelo à coragem e patriotismo dos oficiais e anunciar-lhes que iria enviar para a região o Batalhão de Comandos Africanos. Recorda Ayala Boto, que acompanhava Spínola como ajudante de campo: À chegada, a primeira imagem que surgiu foi a de uma povoação abandonada e com um único habitante que se dirigia para o heli como se estivesse a passear na Baixa de Lisboa. Era Correia de Campos.
"Após a partida do governador, gerou-se um movimento de abandono do quartel por parte de muitos militares, que queriam ir-se embora, tendo sido impedidos de o fazer por Correia de Campos, que, lembra o próprio, se postou de sentinela, à saída do aquartelamento" (...).
Lembro que ele foi um homem do 25 de Abril: às 10 horas do dia 25 foi ele que foi enviado pelo Comando da Pontinha para ali coordenar as operações. Foi ele, mais o Jaime Neves, que entrou, a seguir, no Ministério do Exército e aí prendeu diversos oficiais superiores, incluindo o coronel Álvaro Fontoura, chefe do gabinete do ministro do Exército (este já tinha fugido) ( ).
Após o 25 de Abril foi comandante do Regimento de Lanceiros 2 até ao 25 de Novembro de 1975.
Foi um bravo e nobre militar, injustiçado depois como muitos militares de Abril.
Abraços
A. Marques Lopes
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 24 de Outubro de 006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
Vd. também post de 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)
(2) Vd. post de 6 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLVII: O Alferes Lopes, com os balantas (CCAÇ 3, Barro, Cacheu)
(3) Vd. edição do semanário Expresso, de 27 de Abril de 1974 > O regime foi derrubado em clima de festa
(...) "Às 15 e 25 entra no Quartel do Carmo o tenente-coronel Correia de Campos para parlamentar com as individualidades que se encontravam do lado de dentro e negociar as condições da rendição. O povo impacienta-se e grita: Fora!
"Na posse das tropas da Junta de Salvação Nacional ficou um major da G.N. R. como refém.
"É preciso ter confiança nas pessoas honestas. Tenham calma para que tudo caminhe devidamente e dentro dos trâmites de pessoas civilizadas. Nós queremos resolver tudo a bem. Mas o tempo passa e não há meio de sair o tenente-coronel Correia de Campos. O capitão Maia, de megafone em punho, grita lá para dentro:
"Atenção Quartel do Carmo. As negociações estão muito demoradas. Não tenho ordens para as deixar demorar mais tempo. São 3 e 30. Ouve-se a ordem para as metralhadoras alinharem devidamente. 3 e 40: Saiam de mãos no ar e sem armas. Mas ninguém saía.
"Apenas, o tenente-coronel Correia de Campos apareceu depois de o capitão Maia haver gritado lá para dentro: Atenção Quartel do Carmo. Se acontecer qualquer mal ao nosso enviado o vosso responderá por tudo.
"Eram precisamente 16 horas quando, perante a não rendição das individualidades e da G.N.R. aquartelada no Carmo, foi dada ordem para abrir fogo sobre a frontaria do edifício, que praticamente nada sofreu.
"A Guarda Nacional Republicana, que havia tomado posições no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, declara a um dos responsáveis pelas forças da Junta de Salvação Nacional que estão dispostos a renderem-se, contando que o façam primeiro os que estão dentro do quartel. Por uma questão de solidariedade, afirmaram.
"Às 16 e 10 entra no Carmo o dr. Feitor Pinto, que leva uma mensagem de Spínola para Marcello Caetano. Noutro artigo desta edição descrevemos estes contactos mais pormeorizadamente, contactos em que intervieram Pedro Pinto, Feytor Pinto e Nuno Távora.
"Pouco depois, perante a demora da rendição, é comunicado que iria ser destruido o quartel, caso não saíssem imediatamente.
"Os carros de combate começam a tornar posição. Vive-se uma hora de certa angústia e expectativa, até que, por uma questão de segundos, se evitou o pior. Feytor Pinto trouxe de dentro a certeza de que a rendição se havia operado em termos completos, sendo imediatamente anunciado que, em breve, se iria proceder à transmissão de poderes e que o general Spínola se deslocaria ao Carmo. Os vivas irromperam de todos os lados e os militares a custo conseguiram segurar a multidão que pejava por completo o Largo do Carmo e artérias de acesso
"Às 17 e 40, um carro conduzia o General Spínola e o major Dias de Lima por entre os milhares de pessoas que se aglomeravam no Largo, ovacionando prolongadamente os ocupantes da viatura, que entraram imediatamente no edificio. Seguiu-se a transmissão de poderes" (...).
Vd. também Instituto Camões > Camões - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 5, Abril-JUnho de 1999 > Cronologia do 25 de Abril
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1234: Guileje: croquis do aquartelamento e tabanca (José Casimiro Carvalho)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 ou 1973 > Croquis do aquartelamento e tabanca, desenhado à mão pelo Fur Mil Op Espec José Casimiro Carvalho (CCAC 8350, 1972/73), e enviado pelo correio a seu pai.
Foto:© José Casimiro Carvalho (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Telegráfica mensagem, enviada pelo José Casimiro Carvalho (1), em 29 de Outubro de 2006:
"Motivado pela recente morte do meu Pai, vasculhámos as suas memórias... Encontrei isto... e chorei.
"Vou partilhar com a tertúlia este documento histórico"
2. Resposta de L.G., ao e-mail do José Casimiro:
José: Sinto muito... A morte dos nossos pais é sempre a antecipação da nossa própria morte... O teu gesto é bonito, é uma homenagem a ele: vou pôr o 'croquis' de Guileje no blogue, a teu pedido...
Cheguei do Porto há 4 horas... Fui lá cima, homenagear os velhotes da minha mulher que já se foram desta vida... Em contrapartida, ainda pude levar os meus... Fica bem, tanto quanto possível... Guarda, para ti, os melhores momentos que passaste com o teu velhote... Luís
3. Comentário de L.G.: Pelo que posso deduzir, este croquis do aquartelamento de Guileje deve ter sido desenhado pelo nosso camarada, à mão, e enviado pelo correio a seu pai. Vasculhando os seus papéis, o José Casimiro acaba por descobrir um documento que tem muita valia, para nós e para o Pepito e a sua equipa, às voltas com o projecto de reconstrução de Guileje. Obrigado, Zé, pelo teu gesto e pela tua sensilidade!
Pelo que consigo ler na info-imagem, o aquartelamento e a tabanca de Guileje formavam um rectângulo, todo minado à volta, na parte desmatada, com minas, armadilhas e fornilhos. A orientação parece ser norte/sul, tendo as peças de artilharia de 11.4, em número de três, apontadas para a fronteira com a República da Guiné-Conacri. Originalmente, eu pensava que os obuses de Guileje fossem de calibre 14 cm. Podem ver-se ainda as posições dos morteiros: dois 81 (incluindo o 'meu', o que era operado pela secção do Furriel Carvalho, do lado oeste, junto a um dos abrigos) e dois 10,7.
A oeste, há um campo de futebol, uma pista de aterragem de aeronaves e um heliporto. Ao longo do perímetro do aquartelamento, há arame farpado, postos de iluminação, postos de sentinela, abrigos e valas, todos devidamente assinalados. As palhotas da tabanca situam-se dentro do perímetro do aquartelamento. O trilho que corre a norte da pista de aviação era o trilho da água, o que significava que as NT e a população precisavam de sair do perímetro defensivo para se abastecer do precioso líquido. A esttrada que atravessava o aquartelamento e a tabanca, no sentido norte/sul era a que seguia para Mejo e Bedanda (a noroeste) e ligava a sul à estrada de Mampatá - Gadamael - Cacine, ao longo da fronteira.
O Pepito e o Nuno Rubim, a quem vou mandar uma cópia do documento, saberão melhor do que eu interpretar e completar estas informações.
_________
Nota de L.G.:
(1) O Zé Casimiro, o nosso herói de Gadamael, não pertenceu à CCAV 8356, mas sim à CCAÇ 8350... Além disso, não vive em Lisboa, mas sim na Maia, distrito do Porto, donde é natural. Não sei quem foi o filho da p..., mouro ou morcão, que trocou os seus dados biográficos na página da nossa tertúlia. Assumo a responsabilidade pelo erro: Em meu nome, e da nossa tertúlias, as minhas humildes desculpas... Em breve será feita a devida correcção.
O José Casimiro Carvalho, furriel miliciano de infantaria, com o curso de operações especiais, nas vésperas de embarcar para a Guiné, em 1972. Ele escreveu-me nestes termos: "Meu amigo;
sou natural do Porto; vivo na Maia desde 1983; sou de infantaria (Operações Especiais); fui incorporado numa Companhia de Cavalaria (CCAV 8350)... Não é caso de morte, mas se puderes corrige... Obrigado. Ah!... sou adepto do FCP, mas fui do SLB até aos 27 anos de idade... Outras estórias, he he he"....
Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados
O editor do blogue, Luís Graça e o herói de Gadamael, José Casimiro Carvalho, na Ameira, em 14 de Outubro de 2006.
Foto: © Manuel Lema Santos & esposa (2006) (com a devida vénia...). Fonte: Encontro na Ameira > 14 de Outubro de 2006 > Luís Graça & Camaradas da Guiné
Guiné 63/74 - P1233: O meu cantinho na Net (Fernando Chapouto, CCAÇ 1426, Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, 1965/67)
Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no TT Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção.
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
O Fernando Chapouoto, ontem (1965) e hoje (2006),
Fotos: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados.
1. O Fernando Chapouto, nosso tertuliano desde 30 de Junho de 2005 (1), mandou-me no verão passado um e-mail com saudações e fotos para a fotogaleria. Entre outras coisas escrevia:
"Quero dizer-te que já comecei a minha história da passagem pela Guiné. É longa e complicada. Estou a chegar perto do pontão de Banjara. Daí para a frente é que a guerra começa a sério.
"Quero felicitar-te pelo [teu] exemplar trabalho sobre a guerra colonial, em especial na Guiné. Porque me toca e porque já muito foi dito sobre aqueles que se intitutam ex-combatentes das esplanadas de Bissau. Para esses, peço-te que não passes cartão, porque a caravana passa e os cães ladram, enquanto nós continuamos fiéis aos princípios de ex-combatentes".
2. O Fernando, que vive na área da Grande Lisboa (Bobadela, Loures), tem a sua página pessoal na Net, a que chamou O Cantinho do Fernando. Tem a sua secção sobre a Guiné e a sua CCAÇ 1426.
Recorde-se que ele foi furriel miliciano mas também ranger (descobri-o há dias, no nosso encontro na Ameira, em 14 de Outubro de 2006) (2). A sua unidade esteve sedeada em Geba, na Zona Leste, com passagem por Banjara, Camamudo e Cantacunda. Pelo seu comportamento em combate, o Fernando tem a cruz de guerra, uma estória que desde já lhe peço para ele um dia destes nos contar.
A página está ainda em construção, mas já estão disponíveis algumas dezenas de fotos do seu álbum de fotografias da Guiné. É pena ainda não estarem devidamente legendadas. Tomei a liberdade de seleccionar uma, pelo seu interesse documental: o embarque do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné, em meados de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ao fundo vê-se o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo, ainda em construção.
3. Dou os meus parabéns ao Fernando por, sendo um dos veteranos da guerra da Guiné (ele é de 1965/67), ter criado não só uma página pessoal na Net onde fala da sua experiência da Guiné, como por nos convívios anuais do pessoal da sua unidade manter o espírito de camaradagem que os uniu a todos nesses já longínquos tempos (3). A propósito, não resisto a transcrever uma mensagem que posta na sua caixa de correio, assinada pela filha de um camarada, com data de 19 de Setembro de 2006:
"O meu nome é Elsa, sou filha do Armindo Monteiro que esteve consigo na Guiné na Companhia 1426. Estivemos no passado dia 16 de Setembro, no Encontro. Acompanhei o meu pai ao referido encontro, e foi muito especial para mim saber parte da história de uma pessoa que amo, o meu Pai. Nunca falámos, ou melho, sempre evitámos falar no que aconteceu na Guiné, e foi importante para mim perceber que o meu pai teve amigos, formou amizades e que nem tudo foi mau. Adorei o Encontro e adorei conhecer-vos. Obrigado! Elsa Rodrigues".
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 30 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIX: Recordando Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, Bafatá (CCAÇ 1426) (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)
(2) Vd. post de 15 de Outubrto de 2006 > Guiné 63/74 - P1178: Ameira: Que belo dia! (Fernando Chapouto)
(3) Outro tertuliano que também fez parte da CCAÇ 1426 é o Belmiro Vaqueiro, hoje reformado, residente em Bragança: vd post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67): Presente!(Belmiro Vaqueiro / A. Marques Lopes)
Guiné 63/74 - P1232: O soldado comando Raimundo, morto em combate, não foi abandonado em Guidaje (A. Mendes, 38ª CCmds)
1. Mensagem do Amílcar Mendes:
Amigo Luís Graça, venho-te pedir que publiques o que te escrevo: O corpo do soldado Comando José Luís Inácio Raimundoje que morreu nas valas em Guidage, foi trazido por nós, Comandos da 38ª Companhia, aquando do nosso regresso a Binta na coluna.
Não ficou enterrado em Guidaje porque NUNCA deixamos mortos ou feridos para trás. Tínhamos o dever moral de trazer o seu corpo e só o largámos em Binta quando ficou numa urna e dali seguiu para a capela mortuária de Bissau onde foi devolvido à família.
Recebi mensagens peguntando porque não ficou ele enterrado em Guidaje como outros; porque na nossa formação de COMANDOS foi-nos ensinado que o mais importante era o HOMEM!
2. Comentário de L.G.:
Amílcar:
(i) Foi um lapso da minha parte, involuntário, um típico erro cometido por simpatia: estava a pensar nos camaradas paraquedistas da CCP 121 que lá morreram e lá ficaram, o Lourenço, o Victoriano e o Peixoto, aqui evocados num post recente do Victor Tavares, no decurso da Op Mamute Doido, em 23 de Maio de 1973: vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(ii) Aqui fica a tua correcção (e o teu protesto, implícito): eu sei que um camarada ferido ou morto em combate não se deixa para trás, que isso era um ponto de ponto para os bravos da 38ª CCmds.
(iii) Aceita as minhas desculpas, extensivas a todos os teus camaradas que estiveram contigo nesses longos e difíceis dias de Maio de 1973, em Guidaje. As minhas desculpas também à família do Raimundo, que era natural da Chamusca. Eu sei que ainda é doloroso falar da morte de camaradas nossos.
(iv) Vou corrigir o título do post P1223, de 30 de Outubro último.
Amigo Luís Graça, venho-te pedir que publiques o que te escrevo: O corpo do soldado Comando José Luís Inácio Raimundoje que morreu nas valas em Guidage, foi trazido por nós, Comandos da 38ª Companhia, aquando do nosso regresso a Binta na coluna.
Não ficou enterrado em Guidaje porque NUNCA deixamos mortos ou feridos para trás. Tínhamos o dever moral de trazer o seu corpo e só o largámos em Binta quando ficou numa urna e dali seguiu para a capela mortuária de Bissau onde foi devolvido à família.
Recebi mensagens peguntando porque não ficou ele enterrado em Guidaje como outros; porque na nossa formação de COMANDOS foi-nos ensinado que o mais importante era o HOMEM!
2. Comentário de L.G.:
Amílcar:
(i) Foi um lapso da minha parte, involuntário, um típico erro cometido por simpatia: estava a pensar nos camaradas paraquedistas da CCP 121 que lá morreram e lá ficaram, o Lourenço, o Victoriano e o Peixoto, aqui evocados num post recente do Victor Tavares, no decurso da Op Mamute Doido, em 23 de Maio de 1973: vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(ii) Aqui fica a tua correcção (e o teu protesto, implícito): eu sei que um camarada ferido ou morto em combate não se deixa para trás, que isso era um ponto de ponto para os bravos da 38ª CCmds.
(iii) Aceita as minhas desculpas, extensivas a todos os teus camaradas que estiveram contigo nesses longos e difíceis dias de Maio de 1973, em Guidaje. As minhas desculpas também à família do Raimundo, que era natural da Chamusca. Eu sei que ainda é doloroso falar da morte de camaradas nossos.
(iv) Vou corrigir o título do post P1223, de 30 de Outubro último.
terça-feira, 31 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)
Texto de Pedro Lauret, ex-oficial imediato da LFG Orion (Guiné, 1971/73) e hoje capitão-de-mar-e-guerra na reforma (1):
Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial
Durante toda a minha comissão (1971-1973) era frequente receber no navio mensagens referindo a possibilidade de serem colocadas minas aquáticas nos diversos rios e braços de mar.
As mensagens invariavelmente previam: a vinda de especialistas soviéticos para dar formação sobre minas; a colocação de minas neste ou naquele curso de água; a ida de elementos do PAIGC especializar-se a um país de leste …
A Marinha sempre levou a sério estas informações. Os sistemas tradicionais de rocega de minas não eram aplicáveis à realidade dos rios da Guiné pelo que a sua minagem iria trazer graves problemas à navegação. Algumas dúvidas se punham, no entanto, sobre a real possibilidade de uma minagem sistemática dos rios pois as condições naturais eram adversas: fortes correntes, grandes amplitudes de maré, fundos baixos, cursos sinuosos.
Colocada esta nota prévia vamos à nossa estória:
Numa tarde de 1972 descia, no NRP Orion, o Rio Cacheu vindo de Binta em direcção a Ganturé. Ao descrever a curva de acesso à clareira do Tancroal avistei um objecto estranho a flutuar, acestei os binóculos e apercebi-me de um objecto esférico a flutuar.
Uma mina?! Era óbvio! Máquinas à ré, a toda a força!
O navio devia navegar a 14 nós (3), as máquinas inverteram, o navio tremeu, na gíria da Marinha diríamos que até fogueiros saíram pela chaminé. O navio estancou antes de atingir o terrível objecto. De novo de binóculos em riste comecei a aperceber-me que era uma estranha mina. De facto era completamente esférica, mas mina não parecia ser. Com alguns toques de máquina aproximámo-nos, aos poucos fui-me apercebendo das características daquela exótica mina aquática.
Calculem o que era: uma cabra afogada que inchou e a sua esférica barriga aparecia a espreitar à tona de água.
Foi assim que um garboso navio da Armada colocou máquinas a ré a toda a força para não atropelar uma cabra afogada.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)
(2) Vd. último post desta série, 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1193: Estórias avulsas (4): O fantasma-cagão da 3ª Companhia do COM, EPI, Mafra, 1966 (A. Marques Lopes)
(3) Um nó é equivalente a um milha náutica/hora, ou seja,a 0,51444 m/s ou a 1,852 km/h. Neste caso, 14 nós correspondem a uma velocidade de 25,928 km/h. Fonte: Wikipédia (2006)
Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial
Durante toda a minha comissão (1971-1973) era frequente receber no navio mensagens referindo a possibilidade de serem colocadas minas aquáticas nos diversos rios e braços de mar.
As mensagens invariavelmente previam: a vinda de especialistas soviéticos para dar formação sobre minas; a colocação de minas neste ou naquele curso de água; a ida de elementos do PAIGC especializar-se a um país de leste …
A Marinha sempre levou a sério estas informações. Os sistemas tradicionais de rocega de minas não eram aplicáveis à realidade dos rios da Guiné pelo que a sua minagem iria trazer graves problemas à navegação. Algumas dúvidas se punham, no entanto, sobre a real possibilidade de uma minagem sistemática dos rios pois as condições naturais eram adversas: fortes correntes, grandes amplitudes de maré, fundos baixos, cursos sinuosos.
Colocada esta nota prévia vamos à nossa estória:
Numa tarde de 1972 descia, no NRP Orion, o Rio Cacheu vindo de Binta em direcção a Ganturé. Ao descrever a curva de acesso à clareira do Tancroal avistei um objecto estranho a flutuar, acestei os binóculos e apercebi-me de um objecto esférico a flutuar.
Uma mina?! Era óbvio! Máquinas à ré, a toda a força!
O navio devia navegar a 14 nós (3), as máquinas inverteram, o navio tremeu, na gíria da Marinha diríamos que até fogueiros saíram pela chaminé. O navio estancou antes de atingir o terrível objecto. De novo de binóculos em riste comecei a aperceber-me que era uma estranha mina. De facto era completamente esférica, mas mina não parecia ser. Com alguns toques de máquina aproximámo-nos, aos poucos fui-me apercebendo das características daquela exótica mina aquática.
Calculem o que era: uma cabra afogada que inchou e a sua esférica barriga aparecia a espreitar à tona de água.
Foi assim que um garboso navio da Armada colocou máquinas a ré a toda a força para não atropelar uma cabra afogada.
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Notas de L.G.:
(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)
(2) Vd. último post desta série, 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1193: Estórias avulsas (4): O fantasma-cagão da 3ª Companhia do COM, EPI, Mafra, 1966 (A. Marques Lopes)
(3) Um nó é equivalente a um milha náutica/hora, ou seja,a 0,51444 m/s ou a 1,852 km/h. Neste caso, 14 nós correspondem a uma velocidade de 25,928 km/h. Fonte: Wikipédia (2006)
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