O Carvalho Araújo (1930-1973), um navio da frota da Empresa Insulana de Navegação (1871-1974). Por quem se interessa pela história da nossa marimha mercante, recomendo o belíssimo sítio do Carlos Alberto Monteiro, que é um velho passageiro da Insulana, e em especial do Funchal, e um apaixonado coleccionador de postais e outros documentos relacionados com a frota da Insulana.
Foto: Ships Insulana, página de Carlos Albert Monteiro (2006) (com a devida vénia...).
Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1971 > "Foto 16 - Na rua principal de Mansoa. Eu estou de camuflado com o meu amigo Sampaio, de Guimarães, infelizmente falecido o ano passado" (GS)
Fotos e legendas: © Germano Santos (2007). Direitos reservados.
1. Texto do Germano Santos, ex-operador cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, (1)
Caro Luís Graça,
Conforme prometido há já uns tempos, aqui vai, finalmente, a minha história sobre a garrafa que decidiu dar uma grande volta marítima.
É uma história sem guerra, mas que nasceu do facto de eu ter ido para a guerra.
Como sabes, eu fui Operador Cripto (1), logo não operacional, e portanto a minha guerra foi muito diferente das guerras de alguns dos nossos camaradas.
Contudo, também sei o que é a guerra, através das diversas flagelações que Mansoa sofreu durante a minha estada por lá.
Também vi coisas que não queria ver; também passei por coisas que não desejava ter passado, etc.
Mas falemos então da viagem da minha garrafa, que começa exactamente na minha viagem para a Guiné.
Estamos em 1970, 19 de Dezembro, quando a bordo do navio Carvalho Araújo (2) - que até aí, segundo me relataram, fazia constantemente o transporte de gado dos Açores para o Continente - inicia a sua viagem para a Guiné o Batalhão de Caçadores 3832, formado pela CCS e pelas Companhias de Caçadores 3303, 3304 e 3305. Eu era um dos dois Operadores de Cripto desta última Companhia.
Este início de viagem não correu lá muito bem, dado que logo nesse dia o navio avariou e passámos a noite sob a ponte 25 de Abril.
Porém, lá fomos navegando e a certa altura mais me parecia que estava num barco de amotinados do que outra coisa qualquer, tal era a quantidade de gente mal embriagada e indisposta com a viagem.
Convém referir que estávamos em vésperas de Natal e passar esta quadra festiva, longe da família e a caminho da guerra, não era evidentemente o que nós desejávamos mais.
Já não me recordo muito bem, mas nesse dia de Natal ou no dia a seguir, alguns de nós - talvez uns quatro ou cinco - decidimos carpir as nossas mágoas com alguém que estivesse noutras paragens, e do mar nos quisemos servir como meio de comunicação. Vai daí, lançámos ao mar algumas garrafas com as mais variadas mensagens. A minha era tão só um cartão de visita, no qual acrescentei o SPM do Batalhão ou do local para onde íamos (Mansoa).
O tempo foi passando e a guerra também.
E surpresa das surpresas. Em finais de Janeiro de 1972 (um ano e pouco após ter deitado ao mar a garrafa), recebo uma carta proveniente dos Estados Unidos da América, mais concretamente de Milwaukee, datada de 19 de Janeiro desse ano e assinada por uma Senhora de nome Lillian Drake, dando-me conta de ter encontrado a garrafa com o meu cartão.
Como não sabia inglês, fui pedir ajuda ao meu Major de Operações - o saudoso, porque falecido, Major Cerqueira Rocha, irmão do então, salvo êrro, Comandante Chefe das Forças Armadas em Portugal (não sei se era assim a designação, mas fica a idéia). Quero deixar aqui uma palavra de muito apreço para os familiares do Major Cerqueira Rocha, um militar e um homem extraordinário, com quem foi um prazer conviver durante dois anos na Guiné.
Foi ele que me leu a carta e que, tal como eu, ficou muito surpreendido por tudo o que nela era referido.
Dizia a Senhora que tinha encontrado a garrafa na Ilha de Eleuthera, nas Bahamas, a pouca distância do continente norte-americano, em 10 de Dezembro de 1971 quando se encontrava naquela ilha a visitar amigos. Mais dizia que estava a passear na praia, apanhando conchas e outras coisas, quando reparou na garrafa. Na carta perguntava-me quando e onde é que eu a tinha atirado ao mar.
Passados dias, com a ajuda do meu Major, satisfiz a curiosidade dela.
Aproveito para informar que naquela altura as Bahamas eram pertença dos Estados Unidos da América, sendo, desde 1973, um país independente.
Já após ter regressado a Portugal, tive oportunidade de me deslocar à Embaixada dos Estados Unidos da América e falado com um funcionário sobre esta história. Na altura esse funcionário pedíu-me para esperar um pouco e, passados uns minutos, fui recebido pelo Embaixador que ficou encantado com o ocorrido, e fez o favor de me mostrar não só o mapa americano como o Atlas, para me explicar todo o percurso que a garrafa tinha feito desde o Golfo da Guiné até às Bahamas.
Também li recentemente que o percurso efectuado pela minha garrafa está dentro das 50 maiores distâncias até hoje percorridas por uma garrafa lançada ao mar.
Eu sei que não é uma história de guerra, mas sem a minha ida para a guerra esta história não existiria.
Se achares que é interessante para colocar no blogue, força.
Um grande abraço.
Germano Santos
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Germano: Aqui aparece todo o tipo de estórias, umas mais trágicas ou dramáticas, outras mais cómicas ou divertidas, umas outras ainda mais intimistas e pessoais... Estórias de guerra, de amor, de paz, de camaragem, de solidariedade, de humor... Todas elas estórias de homens (e de mulheres), afectados directa ou indirectamente por uma guerra. A tua estória merece a melhor atenção de nós, até pelo seu insólito e pelo seu simbolismo: o mar, apesar da sua imensa vastidão, é também um ponto de encontro...
Como já tive ocasião de te dizer, tenho uma estória parecida com essa. Um vizinho meu, da Lourinhã, costumava ir pescar para a Praia da Peralta, a sul da Praia da Areia Branca. Isto por volta de meados da década de 1960. Um belo dia apanhou, na praia, um garrafa de gin ou de rum, com uma carta lá dentro, redigida em inglês. De regresso a casa, deu a carta a ler à minha irmã. Era de um súbdito de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, embarcado num navio da Royal Navy. Ela mesmo respondeu à carta, com a mimnha ajuda, e fez um novo amigo. O marinheiro Barry começou a trocar correspondência com ela. Hoje, passados mais de quarenta anos, continuam amigos. E já se visitaram várias vezes: ele veio a Portugal, ela foi a Inglaterra... Ele inclusive aprendeu a falar e a escrever o português!...
Parabéns pela estória e pela tua garrafa que, na época, bem poderia ter entrado para o livro de recordes do Guiness (que já existia, desde 1951)... Obrigado pelas fotos (cerca de 20) que tu me mandaste, algumas da bela vila de Mansoa que tu ainda conheceste. Fica também aqui uma correcção: tu nunca pertenceste à CCS do BCAÇ 3832, mas sim à CCAÇ 3305, desse batalhão.
_______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1814: Tabanca Grande (8): Apresenta-se o Operador Cripto da CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832 (Mansoa, 1970/73) , Germano Santos
11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73
12 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1840: A trágica história dos sapadores Alho e Fernandes da CCS do BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73 (César Dias / Gerrmano Santos)
(2) Vd. posts anteriores desta série:
11 de Janeiro de 2007> Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)
21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)
21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)
19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)
12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)
Foto: Ships Insulana, página de Carlos Albert Monteiro (2006) (com a devida vénia...).
Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1971 > "Foto 16 - Na rua principal de Mansoa. Eu estou de camuflado com o meu amigo Sampaio, de Guimarães, infelizmente falecido o ano passado" (GS)
Fotos e legendas: © Germano Santos (2007). Direitos reservados.
1. Texto do Germano Santos, ex-operador cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, (1)
Caro Luís Graça,
Conforme prometido há já uns tempos, aqui vai, finalmente, a minha história sobre a garrafa que decidiu dar uma grande volta marítima.
É uma história sem guerra, mas que nasceu do facto de eu ter ido para a guerra.
Como sabes, eu fui Operador Cripto (1), logo não operacional, e portanto a minha guerra foi muito diferente das guerras de alguns dos nossos camaradas.
Contudo, também sei o que é a guerra, através das diversas flagelações que Mansoa sofreu durante a minha estada por lá.
Também vi coisas que não queria ver; também passei por coisas que não desejava ter passado, etc.
Mas falemos então da viagem da minha garrafa, que começa exactamente na minha viagem para a Guiné.
Estamos em 1970, 19 de Dezembro, quando a bordo do navio Carvalho Araújo (2) - que até aí, segundo me relataram, fazia constantemente o transporte de gado dos Açores para o Continente - inicia a sua viagem para a Guiné o Batalhão de Caçadores 3832, formado pela CCS e pelas Companhias de Caçadores 3303, 3304 e 3305. Eu era um dos dois Operadores de Cripto desta última Companhia.
Este início de viagem não correu lá muito bem, dado que logo nesse dia o navio avariou e passámos a noite sob a ponte 25 de Abril.
Porém, lá fomos navegando e a certa altura mais me parecia que estava num barco de amotinados do que outra coisa qualquer, tal era a quantidade de gente mal embriagada e indisposta com a viagem.
Convém referir que estávamos em vésperas de Natal e passar esta quadra festiva, longe da família e a caminho da guerra, não era evidentemente o que nós desejávamos mais.
Já não me recordo muito bem, mas nesse dia de Natal ou no dia a seguir, alguns de nós - talvez uns quatro ou cinco - decidimos carpir as nossas mágoas com alguém que estivesse noutras paragens, e do mar nos quisemos servir como meio de comunicação. Vai daí, lançámos ao mar algumas garrafas com as mais variadas mensagens. A minha era tão só um cartão de visita, no qual acrescentei o SPM do Batalhão ou do local para onde íamos (Mansoa).
O tempo foi passando e a guerra também.
E surpresa das surpresas. Em finais de Janeiro de 1972 (um ano e pouco após ter deitado ao mar a garrafa), recebo uma carta proveniente dos Estados Unidos da América, mais concretamente de Milwaukee, datada de 19 de Janeiro desse ano e assinada por uma Senhora de nome Lillian Drake, dando-me conta de ter encontrado a garrafa com o meu cartão.
Como não sabia inglês, fui pedir ajuda ao meu Major de Operações - o saudoso, porque falecido, Major Cerqueira Rocha, irmão do então, salvo êrro, Comandante Chefe das Forças Armadas em Portugal (não sei se era assim a designação, mas fica a idéia). Quero deixar aqui uma palavra de muito apreço para os familiares do Major Cerqueira Rocha, um militar e um homem extraordinário, com quem foi um prazer conviver durante dois anos na Guiné.
Foi ele que me leu a carta e que, tal como eu, ficou muito surpreendido por tudo o que nela era referido.
Dizia a Senhora que tinha encontrado a garrafa na Ilha de Eleuthera, nas Bahamas, a pouca distância do continente norte-americano, em 10 de Dezembro de 1971 quando se encontrava naquela ilha a visitar amigos. Mais dizia que estava a passear na praia, apanhando conchas e outras coisas, quando reparou na garrafa. Na carta perguntava-me quando e onde é que eu a tinha atirado ao mar.
Passados dias, com a ajuda do meu Major, satisfiz a curiosidade dela.
Aproveito para informar que naquela altura as Bahamas eram pertença dos Estados Unidos da América, sendo, desde 1973, um país independente.
Já após ter regressado a Portugal, tive oportunidade de me deslocar à Embaixada dos Estados Unidos da América e falado com um funcionário sobre esta história. Na altura esse funcionário pedíu-me para esperar um pouco e, passados uns minutos, fui recebido pelo Embaixador que ficou encantado com o ocorrido, e fez o favor de me mostrar não só o mapa americano como o Atlas, para me explicar todo o percurso que a garrafa tinha feito desde o Golfo da Guiné até às Bahamas.
Também li recentemente que o percurso efectuado pela minha garrafa está dentro das 50 maiores distâncias até hoje percorridas por uma garrafa lançada ao mar.
Eu sei que não é uma história de guerra, mas sem a minha ida para a guerra esta história não existiria.
Se achares que é interessante para colocar no blogue, força.
Um grande abraço.
Germano Santos
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Germano: Aqui aparece todo o tipo de estórias, umas mais trágicas ou dramáticas, outras mais cómicas ou divertidas, umas outras ainda mais intimistas e pessoais... Estórias de guerra, de amor, de paz, de camaragem, de solidariedade, de humor... Todas elas estórias de homens (e de mulheres), afectados directa ou indirectamente por uma guerra. A tua estória merece a melhor atenção de nós, até pelo seu insólito e pelo seu simbolismo: o mar, apesar da sua imensa vastidão, é também um ponto de encontro...
Como já tive ocasião de te dizer, tenho uma estória parecida com essa. Um vizinho meu, da Lourinhã, costumava ir pescar para a Praia da Peralta, a sul da Praia da Areia Branca. Isto por volta de meados da década de 1960. Um belo dia apanhou, na praia, um garrafa de gin ou de rum, com uma carta lá dentro, redigida em inglês. De regresso a casa, deu a carta a ler à minha irmã. Era de um súbdito de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, embarcado num navio da Royal Navy. Ela mesmo respondeu à carta, com a mimnha ajuda, e fez um novo amigo. O marinheiro Barry começou a trocar correspondência com ela. Hoje, passados mais de quarenta anos, continuam amigos. E já se visitaram várias vezes: ele veio a Portugal, ela foi a Inglaterra... Ele inclusive aprendeu a falar e a escrever o português!...
Parabéns pela estória e pela tua garrafa que, na época, bem poderia ter entrado para o livro de recordes do Guiness (que já existia, desde 1951)... Obrigado pelas fotos (cerca de 20) que tu me mandaste, algumas da bela vila de Mansoa que tu ainda conheceste. Fica também aqui uma correcção: tu nunca pertenceste à CCS do BCAÇ 3832, mas sim à CCAÇ 3305, desse batalhão.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1814: Tabanca Grande (8): Apresenta-se o Operador Cripto da CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832 (Mansoa, 1970/73) , Germano Santos
11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73
12 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1840: A trágica história dos sapadores Alho e Fernandes da CCS do BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73 (César Dias / Gerrmano Santos)
(2) Vd. posts anteriores desta série:
11 de Janeiro de 2007> Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)
21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)
21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)
19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)
12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)