domingo, 16 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS)


Guiné > Susana > Recolha de lenha para a população

Em mensagem do dia 10 de Setembro de 2007, o nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), enviou-nos a IV Parte de Susana, Chão Felupe (1).

Dizia, então:

Caríssimos editores:
A prosa de hoje versa a mulher Felupe.

Parte IV: Mulher Felupe

Comecemos por dizer que a povoação mais importante do Chão Felupe, que não da zona norte do Cacheu, tem nome de mulher: Suzana (com z).

Tendo em atenção os nossos padrões de sociedade, poderemos afirmar que a mulher felupe é uma mulher emancipada. Recebe todas as honras e desenvolve um papel extremamente importante na sociedade em que se integra.

Como exemplo, as suas actividades na família estão claramente definidas.
Ocupam-se dos trabalhos ligados à casa (fazer cestos, esteiras, redes de dormir, bem como trabalhos de olaria: vasos, potes e panelas). Podem, igualmente, ocupar-se da extracção do óleo de palma para ser vendido ou trocado, ou ainda proceder à colheita de palha nova para a substituição da existente na cobertura da casa. Cabe-lhes também armazenar madeiras e fabricar carvão para uso na cozinha.

É responsável pela culinária da morança, que pode ser providenciada também pelo marido, faz a limpeza da casa que o marido construiu, tira a água do poço que o marido cavou.

É sempre consultada pelo marido no que diz respeito à educação dos filhos ou outros assuntos do âmbito familiar.

Pode ainda, em determinadas condições, tornar-se uma sacerdotisa.

Quando casa, conserva o nome de solteira, o que de certa forma a faz ainda mais emancipada, tomando como termo comparativo as mulheres de outras etnias e de outros continentes.

Ocorrendo a morte do marido, a casa que ele construiu, os campos de arroz que ele plantou e todos os demais bens não são entregues à viúva mas sim ao irmão mais velho do falecido, que, por norma e bondade, permite que ela continue a habitar a morança. Confesso que nunca me ocorreu questionar o que seria feito se o falecido não tivesse irmãos, dado tratarem-se de famílias, normalmente, numerosas. Também nas pesquisas feitas não encontrei, até ao momento, resposta a tal dúvida.

Se a viúva for ainda jovem, regressará a casa dos pais e voltará a casar. Temos que ter em consideração o significado de jovem na etnia felupe, quando a esperança média de vida é de 47 anos e apenas 3% atingem os 65 anos.

Se for já de idade terá os cuidados dos filhos que além de casa onde morar providenciam também o seu sustento.

Em termos de direito de propriedade o Felupe só admite como privado a sua própria casa e os objectos de uso pessoal, nomeadamente os utensílios de lavoura, caça e pesca. São igualmente propriedade privada um reduzido número de cabeças de gado e os galináceos.

Pertencem à tabanca: a bolanha, as matas e a manada de gado bovino. A bolanha encontra-se distribuída em lotes atribuídos pelo homem grande (ancião mais velho) aos vários elementos da aldeia. As colheitas dos lotes são propriedade de quem a trabalha.

As palmeiras das várias matas, propriedade colectiva, são distribuídas a cada um dos moradores que se entregam à sua limpeza e donde só os próprios podem extrair o vinho.

A manada pode incluir as poucas cabeças de gado particular, mas só com o conhecimento e consentimento dos restantes moradores da tabanca. A manada é entregue ao cuidado dos jovens, alguns mesmo muito jovens, e pasta livremente porque as pastagens não têm dono.

Por decisão do Comandante da nossa Unidade, foi estipulada uma rotatividade das tabancas que entendessem fornecer um animal da sua manada para abate e alimentação da Companhia. Com as tabancas que aceitaram nunca se manifestou qualquer problema, sendo a carcaça pesada e o pagamento feito, à boa maneira Felupe, em géneros (farinha, açucar, muito raramente batatas, que apenas engordam e não criam força e músculos, como o arroz - afirmação felupe).

A grande dificuldade residia no apanhar do bicho que, desde longe, era indicado pelo chefe de tabanca. Tinha que ser aquele e só aquele, sem hipótese de troca. A tropa lá tinha que se preparar para uma pega de caras ou cernelha, com técnica TM (tudo a monte) com a ajuda de cordas, de forma a capturar o animal para o transportar para o aquartelamento. Sinal de melhoria de rancho.


Guiné > Susana> Caçar o bicho era uma autêntica tourada... para a nossa tropa

Os poços ou outros bens de utilidade pública são, como é bom de ver, propriedade de toda a tabanca. Uma bolanha está sempre vinculada a uma dada família, existindo um laço místico com os antepassados. Mesmo que uma dada família não tenha, temporariamente, homens válidos para o cultivo da sua bolanha, esta será explorada, depois de cerimónia religiosa para o efeito, por alguém estranho à mesma que voltará à "sua" família quando esta tiver individuo apto para retomar o seu cultivo.

Que melhores provas de espírito comunitário e solidariedade podemos pedir ?!

Por hoje terminado.
Kassumai

Luiz Fonseca
Ex-Fur MilTrms
CCAV 3366

Texto e fotos: © Luís Fonseca (2007). Direitos reservados.

_________________

Nota do co-editor CV

(1) Vd. post anterior, de 5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luiz Fonseca)

Guiné 63/74 - P2109: Tabanca Grande (34): António Manuel Salvador, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74, hoje funcionário da KLM, Amsterdão

Guine > Região de Tomboli > Cufar > PINT 9288 > 1974 > O 1º cabo enfermeiro Baia. Foto: © António Baia / Fernando Franco (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem de 7 de Julho que, por lappso, só agora é publicada:


Remetente: António Manuel Salvador, um camarada da diáspora

Assunto - Informação geral sobre alguns episódios na Guine, zona de Tombali/Cufar 72/74

Amigo Luís:

Foi deveras surpreendente ao ver o vosso blogue na Internet aqui na Holanda, Amsterdão.

Estou aqui desde treze de outubro de 1974. Cheguei, a Lisboa, vindo da Guiné a 3 de Agosto de 1974, mas a minha estadia em Portugal foi de pouca dura. E por aqui ando. Trabalho no aeroporto de Amesterdão, vou a portugal várias vezes ao ano. Como sou funcionário da KLM tenho as viagens mais baratas.

Falando um pouco de mim na Guiné... Eu era primeiro cabo enfermeiro numa companhia de açorianos, a CCAÇ 4740, os Leões de Cufar. Por lá andámos até para lá do fim (normal) da comissão. Já tínhamos os 24 meses quando foi o 25 de Abril e como não aparecia a rendição e não podíamos entregar aquilo sem mais nem menos, depois lá apareceu uma companhia com 7 meses e que nos rendeu. A bianda nunca faltou mas o conduto era as vezes o mais desejado...

Amigo Luís, o que eu gostava de saber era o seguinte: vi no blogue umas fotos de um barco a arder e um jipe todo desfeito. Ora eu assisti a tudo isso! Quando cheguei ao local,o cenário era horrível. Tenho aqui na minha agenda de 1974 em que se diz que morreram três pretos e dois brancos. A um deles chamavam-lhe o Jeová, não sei se seria essa a religião dele...

Luís Graça, o que gostava de saber era se o Furriel Pita tinha escapado porque foi o único que ainda dava sinal de vida. Quem deve saber isso ao certo, é o António Baia porque era ele o enfermeiro do Pelotão de Intendência. Pelos vistos ele mora na Amadora mas de resto não sei mais nada (1).

Antes que me esqueça, este acidente com as minas foi a 2 de Março de 1974, a um sábado.

Estou a ir férias 19 de Julho a 13 de Agosto... Se por acaso tiveres o número do telefone do Baia, ele que me ligue para 261932410, zona de Torres Vedras. Eu moro perto de Santa Cruz.

Sem mais me despeço, enviando um forte abraço a todos os tertulianos.

2. Comentário de L.G.:

Caro António: Foi bom saber notícias tuas… Só agora te respondo, porque só hoje li a tua mensagem, recebida na minha caixa de correio do local de trabalho. Estou a pôr a correspondência em dia… Enfim, meteu-se também o período de férias… Agora temos um endereço de email colectivo, para onde deve ser canalizada, de futuro, a correspondência do blogue: https://webmail.ensp.unl.pt/owa/redir.aspx?URL=mailto%3aluisgracaecamaradasdaguine%40gmail.com

O episódio trágico que relatas, já me tinha sido referido por dois camaradas ligados à Intendência, o Baia e o Franco. Já nos encontrámos duas vezes. O Baia não tem mail. Podes contactá-lo através do vizinho e amigo dele, o Fernando Franco ( https://webmail.ensp.unl.pt/owa/redir.aspx?URL=mailto%3afasfranco%40netcabo.pt ). Este episódio, já publicado no blogue (1), também vem descrito no livro do António Graça de Abreu ( https://webmail.ensp.unl.pt/owa/redir.aspx?URL=mailto%3aabreuchina%40netcabo.pt ), Diário da Guiné, publicado em 2007 (2). Hei-de divulgar essa parte do Diário do António, que estava em Cufar nessa altura.

Quanto a ti, convido-te para fazer parte da nossa tertúlia ou Tabanca Grande, se isso for do teu interesse. Basta que me/nos mandes as duas fotos da praxe e me/nos fales um pouco mais do teu tempo de Guiné, em Cufar. Vejo que somos vizinhos: eu nasci na Lourinhã. E de vez em quando passo por Amsterdão, em viagem. Tudo de bom para ti, e desculpa o atraso.

PS - Vou também publicar a tua mensagem, estes dias próximos. Estamos com algum atraso devido às férias, muito embora já sejamos três editores… em part-time.

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1283: Os nossos intendentes, os homens da bianda (Fernando Franco / António Baia)

(2) Vd. posts de:

5 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

27 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1552: Lançamento do livro 'Diário da Guiné, sangue, lama e água pura' (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P2108: Documentos (3): A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (2) (A. Marques Lopes / António Pimentel)






Conjunto habitacional de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12 (fundador e editor deste bloge) junto a um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta). A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá. O reordemanento desta população, considerada até então sob duplo controlo e pouco colaborante com (e senão mesmo hostil a) as NT, iniciou-se em 1969, sob a iniciatica do Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1970/72), tendo sido continuada pelo BART 2852 (1970/72).




Na foto, vê-se o Fur Mil Henriques num jipe, no destacamento que defendia Nhabijões. Ao fundo, descortinam-se as casas do reordenamento (a que ele na época um verdadeiro etnocídio...). Em 13 de Janeiro de 1971, duas minas anticarro recebentaram à saída do reordenamento, na estrada Nhabijões-Bambadinca (LG).


Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Reordenamento de Nhabijões> Trocando a espada pelo arado, ou melhor, a G3 pela pá e pela enxada... Pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões, um conjunto de aldeias sob duplo controlo, junto ao Geba Estreito, pertencente ao posto administrativo de Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste.
Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados.


Continuação da publicação do documento Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações. Província da Guiné, Bissau: Comando-Chefe das Forças Armadas da Guine. Quartel General. Repartição AC/AP. s/d. (2).


Fixação do texto: Virgínio Briote, co-editor


LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA E DEMOGRÁFICA (p.4)

1. É difícil fazer uma exacta localização geográfica das diferentes etnias da Guiné, atendendo principalmente ao factor emigração. Efectivamente, mercê de muitas e várias circunstâncias históricas e políticas, os povos guineenses constituíram muitas, e algumas delas significativas, correntes migratórias que partindo do seu chão originário se estabeleceram um pouco por todo o território, por tal forma que se pode dizer que vivem hoje, indistintamente, lado a lado, etnias animistas e islamizados, muitas vezes interpenetrando-se e constituindo, como já foi notado anteriormente, subgrupos híbridos. Uma das circunstâncias mais importantes para o surto migratório foi sem dúvida a eclosão do terrorismo, obrigando povoações inteiras a desalojarem-se e a imigrarem para zonas sob a protecção das Nossas Tropas.


No mapa 1, apresenta-se a localização das principais etnias nos seus chãos de origem.

2. A localização histórica dos povos da Guiné, dada a infinidade de etnias existentes, torna-se difícil. Em apontamentos desta natureza, não cabem pormenores que se destinariam a um estudo aprofundado. Bastará, talvez, dizer que a maioria das etnias aparece como fusão de várias outras que foram as originárias e são referidas largamente pelos navegadores e descobridores nas suas crónicas. Nelas se dá conta de existirem no século XVI Balantas e Papéis na ilha de Bissau e Buranos (nome primitivo dos Papéis) e Felupes na zona do Cacheu. Estas três etnias são das mais antigas, sendo os Felupes considerados os mais antigos dos povos originários.


Alguns outros povos existiam já no actual território da Guiné Portuguesa – colónias de Mandingas e Fulas – aquando da sua descoberta. No entanto, o contacto com eles só se verificou mais tarde, dado o tipo de colonização portuguesa, feita através de feitorias junto aos rios. Assim, o contacto fez-se primeiro com os habitantes da faixa litoral e, mais raramente com povos que vinham transaccionar com os portugueses, de pontos mais afastados do interior.
Já a partir do século XV se inicia a invasão de povos provenientes de vários países do continente Africano. No entanto, só mais tarde há a grande invasão vinda especialmente do Futa-Jalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Tere, Futa-Quebo, etc.), da Bandú (território situado entre o Alto Senegal e o Alto Gâmbia), Sudão, etc. Fulas e Mandingas instalam-se na zona do Gabú, trazidos por lutas intestinas, pela necessidade de novas almas para a difusão do Alcorão, pelo desejo de novas pastagens para o seu gado e novas lavras. Travaram lutas com os povos aí estabelecidos (os Beafadas principalmente que se viram subjugados pelos Fulas-Forros em Jaladú que mais tarde se tornou na Forro-ia ou Forreá) e conquistaram posições.
[… ilegível].



Mapa 1- Os chãos dos Povos da Guiné


3. Povo nómada, os Fulas emigraram do Gabú para quase todo o território, especialmente o Leste, onde se encontra ainda hoje em força. Mas, de uma maneira geral, como já foi dito, todas as etnias registam movimentos migratórios. Apontaremos dois ou três exemplos:


A região de Mansoa é chão Balanta. No entanto encontramos aí estabelecidas a par da maioria Balanta, Mandingas e Fulas.



  • Na zona de Farim, onde existiam primitivamente os Oincas (ou do Oio, subgrupo Mandinga), encontramos Fulas e Balantas. Aqui, notamos como curiosidade, Balantas e Mandingas permanecem em quase constante conflito, por causa dos roubos que os primeiros praticam por costume tradicional e é condenado pelo Alcorão. Alguns Balantas foram absorvidos pelos islamizados constituindo os Balantas-Mané, que também encontramos em Mansoa.

  • No actual concelho de Bafatá, habitado primeiramente por Beafadas, Mandingas e Fulas, encontram-se numerosas colónias de Manjacos, Papeis, Saracolés e Balantas, estes em maior percentagem.


No mapa 2, podem ver-se, como curiosidade, as primeiras migrações de Mancanhas (ou Brames), Manjacos e Balantas.




FUNÇÕES CIVIS EXERCIDAS POR MILITARES (p 6/7)




1. Estando a Guiné sob a pressão de um estado de subversão que visa a conquista das populações por vários meios, entre os quais a luta armada; existindo um Quadro Administrativo com graves deficiências quantitativas e qualitativas e possuidor da falta de meios para realizar a manobra de contra-subversão em tempo útil e ainda por razões de controle e segurança, não é possível à Administração Civil encarar sózinha, de momento, o esforço que se pretende realizar.


Assim, porque possuidoras de vários meios, humanos, técnicos e de defesa, as Forças Armadas estão aptas a colaborar, com carácter temporário, com as estruturas administrativas na solução dos problemas sócio-económicos. Porque, também, os problemas de desenvolvimento social e económico constituem a manobra da contra-subversão que é preciso fazer rapidamente e pertence à missão das Forças Armadas.


As F.A. são, pois, chamadas a participar temporariamente em funções que seriam da competência civil, se os quadros administrativos estivessem em condições de as desempenhar, e que lhes serão totalmente confiadas quando as condições o permitam. São funções de colaboração e reforço da orgânica...[ilegível].


2. (...) Os civis do Q. A. pensam e actuam de maneira diferente. E a diferença reside em dois pontos distintos: a estagnação e carências várias do próprio Q. A. e no diferente carácter de obrigatoriedade de uns e outros. As Forças Armadas são uma organização profunadmente hierarquizada, com escalões de comando definidos, com leis e regulamentos mais rígidos e pormenorizados, prevalecendo um forte espírito de disciplina. Arreigados a conceitos burocráticos ultra passados e morosos por natureza , regulados por leis mais vastas, com um carácter de disciplina menos acentuado e relativo momento a leis de carácter mais geral, os civis do Q. A. têm um diferente comportamento face a situações que exigem a resolução adequada em tempo próprio. A base de toda a actuação entre militares e civis terá de basear-se na compreensão e na colaboração, já que ambos servem o objectivo comum.


3. O tratamento para com as populações terá de ser diferente também. Não se podem obrigar as populações a tomar determinadas posições ou aceitar determinadas soluções pela força ou coacção, excepto quando o determine o interesse colectivo, o bem comunitário. Interessa muito mais usar argumentos válidos, convicentes e visíveis para os levar a optar melhor. No caso concreto das populações com quem vamos trabalhar, há que contar com os seguintes factores de oposição às nossas soluções:



  • São populações menos evoluídas

  • Têm sofrido pressões físicas e psicológicas dos agentes subversivos

  • São muito arreigados aos seus costumes étnicos e às tradições e práticas religiosas

  • São diferentes entre si, na sua evolução natural

  • Duvidam por sistema, devido à estagnação sócio-económica anterior à guerra, às promessas que nunca foram cumpridas antes nessa época e à propaganda inimiga orientada para esse passado.


Sintetizando, é preciso entender os civis do Q. A. e as populações como tal e como tal actuar nas relações com eles.




IMPORTÂNCIA SOCIAL E ECONÓMICA DOS REORDENAMENTOS (p. 6/9)


1. A ideia de se fazer o reordenamento das populações em aldeamentos, tem três razões de ser fundamentais



  1. A defesa e controle

  2. desenvolvimento social

  3. O desenvolvimento económico


Deixando de parte as questões da defesa, vamo-nos debruçar mais [...ilegível]




Mapa 2 - Primeiras migrações


2. A constituição geográfica da Guiné - sulcada de muitos rios, plana, densamente urbanizada-, a exploração agrícola fazendo-se especialmente junto das bolanhas e as diferenças étnicas que individualizam os agregados, conduziram à dispersão por inúmeros núcleos populacionais. Com uma população dispersa em áreas muito vastas, torna-se difícil se não impossível, tomar medidas de desenvolvimento que abranjam a totalidade ou, mesmo a maioria. O esforço económico e humano seria insustentável de momento e, especialmente moroso.


3. O que se pretende, pois, com os reordenamentos? Agrupar as populções de uma determinada zona num só ou em vários agragados populacionais significativos, possibilitando:



  1. A construção de casas com melhores condições de higiene e construídas com materiais mais resistentes aos factores climáticos e aos incêndios.

  2. A construção de condições de protecção social que abranjam um maior número de pessoas (escolas, postos sanitários, fontanários, assistência médica).

  3. A construção de condições de carácter económico que englobem uma população maior (construção de celeiros colectivos, garantia de mercados para venda da produção agrícola, condições técnicas para maior produtividade e outrs possíveis a desenvolver futuramente).

  4. O mais rápido desenvolvimento comunitário considerando um melhor rendimento no aproveitamento dos meios e quadros técnicos empenhados no esforço do desenvolvimento.


4. Pode parecer sem discussão, a priori, que o reordenamento das populações oferecendo tantas vantagens para o seu desenvolvimento, é sempre bem aceite. Efectivamente, nem sempre isto acontece e por várias razões. Vamos apontar esquematicamente, algumas das principais:

  • Motivações étnicas

  • Questões havidas entre grupos de uma mesmo etnia que os opõem e obstam a uma vida comunitária

  • Receio de perda de autoridade dos Chefes tradicionais

  • Proibição dos Guardas do Irã por motivos de interesse pessoal

  • Desejo de não mudar de chão

  • Receio de que faltem, no novo aglomerado, os meios suficientes de subsistência

  • Desejo de não se separarem dos seus haveres

  • Outras que só localmente poderão ser detectadas


5. Não devendo em princípio existir um carácter de obrigatoriedade quanto à deslocação das populações das suas tabancas para um aldeamento, a não ser que o interesse comunitário superiormente o determine, há que empregar meios persuasivos quando se encontre alguma resistência. Para se criar ...[ilegível]


Esquematicamente vemos, assim:


Antes da construção

  • Auscultação das populações (indirecta, directa)

  • Auscultação e elucidação do Chefe da Tabanca

  • Auscultação e elucidação do Guarda de "Irã"

  • Auscultação e elucidação das autoridades religiosas islâmicas


Durante a construção

  • Garantir a autoridade constituída

  • Garantir, tanto quanto possível, os interesses da localização dos aglomerados correspondentes às antigas tabancas, dentro do plano urbanístico

  • Respeitar os usos e costumes das populações

  • Colaborar no transporte de todos os haveres das populações deslocadas

  • Interessar as populações na construção das casas, escolas, postos sanitários, etc., permitindo e desenvolvendo o sentimento de posse.


6. A forma mais prática de se assegurar o deslocamento das populações para os reordenamentos é criar nelas a necessiade desse reordenamento. Para isso é necessário elucidá-las dos benefícios que vão auferir e garantir os seus desejos quanto a aspectos respeitantes aos seus usos e costumes. Será de toda a conveniência o conhecimento das suas motivações religiosas e étnicas. Nos quadros anteriores já foi feito um esquema suficientemente desenvolvido. Em novo quadro, indicar-se-ão as principais motivações a explorar para um útil e efectivo trabalho de consciencialização das populações.


1.BENEFíCIOS SOCIAIS
  • melhores casas

  • escolas

  • postos de socorros

  • assistência médica

  • água


2. BENEFíCIOS ECONÓMICOS
  • melhores lavras

  • celeiros colectivos

  • mercado para escoamento da produção

  • lojas


ISLAMIZADOS


Fulas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os régulos governarão melhor com toda a população junta

  • os fulas têm de voltar a ser senhores dos seu "chão" que o IN quer roubar

  • os antepassados foram valentes


Mandingas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os chefes poderão dirigir melhor

  • as novas tabancas poderão ter lojas e fazerem comércio para terem riqueza

  • os antigos foram valentes e têm de os saber imitar


ANIMISTAS


Balantas

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o Balanta terá a liberdade na tabanca e no mato, que o IN impede

  • o Balanta vai deixar de ser escravo do IN

  • os Balantas juntos têm força para exterminar o IN

  • haverá sempre muita fartura


Manjacos

  • terão maior protecção dos Irãs

  • juntos terão muita força

  • impedirão o roubo de mulheres quando estiverem juntos

  • poderão fazer comércio

  • cada família poderá ter os seu Irã


Brames

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o régulo governará melhor

  • vão ter mais vacas para estrumar as terras e para o choro

  • os Brames não terão necessidade de emigrar porque nada lhes faltará

  • o IN quer escravizá-los e não o poderá fazer estando todos juntos.


_________


Notas do co-ditor vb:


(1) Vd. posts de:


1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1558: Inesperada visita a Luís Graça, em Nhabijões, na noite de 3 de Fevereiro de 1970 (Beja Santos)


28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCIX: Luís Moreira, de alferes sapador a professor de matemática (Luís Graça)


23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)


22 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Moreira)


22 de Setembro de 2005 > (2) Vd. post de 12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2100: A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (1) (A. Marques Lopes / António Pimentel)


Reproduzo aqui o comentário de Abreu dos Santos:

  • Spínola não inventou os Reordamentos, antes reaplicou na Guiné o que anteriormente já o major Hélio Felgas ali havia posto em prática (cerca de 3/4 anos antes);

  • a guerra do Vietname, pelos vistos, continua a ser – erradamente – termo de comparação para quem esteve na Guiné;

  • mais remotamente, foram os romanos quem iniciou por regiões várias a táctica militar da colonização por recurso ao que, modernamente, se passou a chamar aldeamentos estratégicos; e em meados do séc. XIX foi o general francês Bigeaud quem, na Argélia, reformulou na prática tal conceito, retomado em 1955-59 naquele mesmo território através do Plano Challe, com objectivo de conter o alastramento de actos terroristas por parte da FLN;

  • Em Portugal, a responsabilidade pelo estabelecimento de doutrina castrense nesse sentido coube ao então ministro do Exército, na sequência do 1º relatório da missão militar que pouco antes havia concluído em Arzew (na Argélia), um estágio de contra-insurreição. Daí, o CIOE; e, também daí, a origem da instrução ministrada a tropas de Operações Especiais e aos Comandos, como aliás muito bem sabe o editor Briote, ao qual peço que releve quaisquer imprecisões minhas nesta breve resenha, tanto mais escrita directamente para esta janela...


Comentário do co-editor vb: Grato ao Abreu dos Santos, pelo oportuno comentário, que contribui para um melhor conhecimento sobre o reagrupamento das populações.

  • Entre os anos 1965/67, os reordenamentos da população não eram, em geral, muito discutidos no terreno, embora já se vissem esforços de alguns dos nossos militares nesse sentido, e foi até a um ou outro que pela primeira vez ouviu falar das aldeias estratégicas no Vietname.

  • Parece ser aceite que foi com Spínola, como Governador-Geral, que o plano foi implementado e estendido a praticamente todo o território.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2107: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (2): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte II)

Guiné > Zona Leste > Cuor > Missirá > 1966 > Pel Caç Nat 54 > O Alf Mil Marchand, comandante do destacamento, a avaliar os estragos do ataque de 22 de Dezembro de 1966, três dias antes da noite de Consoada.

 
Guiné > Zona Leste > Cuor > Missirá > Pela Caç Nat 54 > 1966 > O Alf Mil Freitas da CCAÇ 1439 que estava no Enxalé e avançou com um grupo para as primeiras ajudas.

Guiné > Zona Leste > Cuor > Missirá > 1966 > Alguns elementos do Pel Caç Nat 54 e da CCaç 1439, fotografados num cenário de destruição, na sequência do ataque do PAIGC.


  Guiné > Zona Leste > Cuor > Missirá > 1966 > A messe...

Guine> Zona Leste > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 54 > 1966 > ... e a morança do comandante que desta vez escaparam. 


 Fotos: ©: José Viegas / Henrique Matos (2007). Direitos reservados. 


 Segunda e última parte do texto de 12 de Julho de 2007,enviado pelo Henrique Matos, que foi o 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)(1). 


Para a história de Missirá, mando o resto das fotografias cedidas pelo Fur Mil José Viegas, do Pel Caç Nat 54. Este pelotão que estava naquele destacamento, ainda há pouco tempo, quando foi atacado em 22 de Dezembro de 1966, cerca das 22 horas. 

No ataque o IN usou canhão s/r (que deixou marcas no terreno), foram ouvidas vozes de comando de cubanos e houve 5 mortos da população civil. 

 Henrique Matos 

__________ 

 Nota de L.G.: 

 (1) Vd. posts de:

14 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2105: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (1): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte I)

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

Guiné 63/74 - P2106: Tabanca Grande (33): José Rodrigues Firmino, ex-Soldado Atirador (CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884, Jolmete, 1969/71)

José Rodrigues Firmino, ex-Soldado Atirador da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884, Jolmete 1969/71

1. Mensagem do nosso camarada Sousa de Castro, com data de 5 de Setembro de 2007:

Encontrei no [sítio] HI 5 um ex-combatente à procura de companheiros e que pertenceu à CCAC 2585 do BCAC 2884. Esteve na Guiné nos anos 1969 a 1971, na zona de Jolmete (1).

Dei-lhe a conhecer o nosso blogue, fazendo-lhe o convite a participar e tornar-se membro da nossa grande caserna de ex-combatentes da Guiné.

Chama-se José Rodrigues Firmino, ex-Soldado Atirador, casado, 60 anos de idade, natural de Armamar, Distrito de Viseu, residente em Paredes, Distrito do Porto.

Destaque para o louvor à CCAC 2585 atribuído pelo COM-CHEFE pelas acções e resultados obtidos em pouco espaço de tempo. Esta Companhia esteve envolvida em acções de combate, quando da morte dos três Majores na zona do Pelundo/Jolmete.

O Firmino, alegando pouco traquejo nestas coisas, pediu-me para fazer chegar à tertúlia e com pedido de publicação no blogue o trabalho que anexei.

Juntei também as duas fotos da praxe, uma da época e outra actual, retiradas da página pessoal dele no HI5. Gostaria também que o Firmino enviasse as fotos que tem no HI5 sobre a passagem dele pela Guiné para o blogue.

Cumprimentos,

Sousa de Castro
ex-1.º Cabo Radiotelegrafista
CART 3494/BART 3873
Xime e Mansambo
JAN72/ABR74

2. Mensagem de José Firmino de 6 de Setembro de 2007, chegada até nós por intermédio do nosso camarada Sousa de Castro:

Chamo-me José Rodrigues Firmino, ex-Soldado Atirador da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884.
A nossa Companhia esteve na Guiné - Jolmete, de 17 de Maio de 1969 a Fevereiro 1971.

Embarcámos em Lisboa a 7 de Maio de 1969 e desembarcámos em Bissau a 12 do mesmo mês.
Embarcámos em Bissau em 25 de Fevereiro de 1971 com destino à Metrópole e chegámos a Lisboa em 3 de Março.
Vou dar conta de algumas acções levadas a cabo pela minha Companhia.

(i) Em 21 de Maio de 1969
Missão: Patrulhamento de combate conjugado com emboscada na região de Pelundo GF4, com a finalidade de capturar ou aniquilar elementos IN que se revelem, destruir instalações e meios de vida e apreender material e documentos.

Tropas executantes: CCAÇ 2366 com o 1.º GCOMB e a CCAÇ 2585 com o PEL CAÇ NAT 59 e PEL MIL 128. Duração: 11h e 45m.

Resultados: As NT detectaram um grupo IN estimado entre 8 a 10 elementos armados de morteiro 60, LGF e armas automáticas ligeiras, com quem estabeleceram contacto, tendo o IN sofrido 3 feridos confirmados refugiando-se na mata. As NT não sofreram consequências tendo regressado ao quartel pelas 16h e 45min.

(ii) Em 23 de Maio

No quartel em Jolmete terminada que foi a segurança à escolta de abastecimento e transporte de pessoal, regresso da CCAÇ 2366 a Teixeira Pinto, no regresso ao quartel em Jolmete, deu-se um acidente grave com arma de fogo (Bazooca) com elementos da CCAÇ 2585 resultando daí alguns feridos graves sendo eles:

1.º Cabo n.º 19983868 Francisco Inácio da Paz
Soldado n.º 15606668 José Martins de Almeida
Soldado n.º 18119468 António Nunes Lopes
Soldado n.º 18457168 Henrique Pinto Araújo
Soldado n.º 18450068 António Fernandes Barbosa
Soldado Mil n.º 50/57 João da Silva do PEL MIL 128

Todos os feridos foram evacuados para o HM 241 de Bissau

(iii) Em 29 de Maio

Tropas da CCAÇ 2585 levaram a efeito mais uma acção de patrulhamento conjugado com emboscada Região de Bugula onde foi accionada uma mina AP na Região do Pelundo 617-28 que causou 2 feridos graves às NT.

Soldado Mil n.º 53/64 Mamadu Só
Soldado Mil n.º 56/67 Martinho Landi

Ambos evacuados para Bissau, pertenciam ao PEL MIL 128

(iv) Em 2 de Junho

Durante uma acção levada a cabo, pela CCAÇ 2585 com o 2.º GCOMB, o PEL CAÇ NAT 59 e PEL MIL 128 esta Operação demorou cerca de 8 horas, durante a qual foi recolhida cerca de 1 tonelada de arroz, que foi distribuído pelos elementos da população. Os celeiros foram destruídos pelo fogo.

(v) Em 8 de Junho

Patrulhamento e combate na Região de Cassical com a finalidade de capturar, aniquilar elementos IN e recolher o arroz referenciado nos dois celeiros encontrados nesta Região.

(vi) Em 16 de Junho

Operação À Carga

Missão - Patrulhamento conjugado com emboscada na Região de Ponta-Badá-Bugula, com a finalidade de capturar ou aniquilar o IN, destruir instalações e meios de vida, apreender material e documentos, e recuperar população fora do nosso controle.

Tropas executantes: CCAÇ 2585 juntamente com o 3.º GCOMB e PEL CAÇ NAT 59.

A Operação teve uma duração de cerca de 33h e 30m com o seguinte resultado: As NT estabeleceram contacto com um grupo IN armado estimado em cerca de 20 a 25 elementos armados de morteiro 60, LGF e armas automáticas ligeiras na Região do Pelundo 9C2-47, causando às NT 3 feridos ligeiros. O IN que se encontrava a construir um acampamento naquela Região foi obrigado a retirar perante a reacção das NT pelo fogo e movimento, sofrendo 2 mortos confirmados e sete feridos e a captura do seguinte material:

1 pistola metralhadora Sepagin 7,62mm
2 carregadores para p/metralhadora Sepagin 7,62mm
7 granadas de Morteiro 82
1 granada de mão defensiva F1
1 sabre baioneta
142 cartuchos para armas ligeiras
1 fita carregadora para metralhadora ligeira
1 bolsa de lona para carregador de PM SEGAGIN (PPSH)
1 rádio transistor
Várias roupas
Utensílios domésticos e vária documentação.
Foram destruídos os acampamentos que o IN se propunha construir.

Um grupo IN estimado em 15 elementos emboscou as NT com Morteiro 60, LGF e armas auto ligeiras na Região do Pelundo, causando 2 feridos ligeiros às NT. O IN retirou perante a rápida reacção das NT.

(vii) Operação com o código Não Passam

Numa missão de patrulhamento conjugado em emboscada na Região Ponta Nhaga, com a finalidade de capturar, aniquilar elementos IN, destruir instalações e apreender material e documentos.

Tropas executantes: CCAÇ 2585, 2.º GCOMB, PEL CAÇ NAT 59 e PEL MIL 128

Duração da operação: 1 dia.

Resultados obtidos: Cerca das 12h foram referenciadas 2 sentinelas IN armadas, na Região do Pelundo, tendo as NT aberto fogo e os elementos IN retiraram para além do limite do sector 05 acolhendo-se no sector 01 (Bula).

No regresso ao quartel pelas 16h45m um grupo IN estimado em 15 elementos emboscou fortemente as nossas tropas, utilizando LGF, MP e armas ligeiras automáticas, na Região do Pelundo.
Após a reacção das NT, o IN desencadeou nova emboscada com um grupo de 4 a 5 elementos armados de LGF e armas ligeiras automáticas a uma distância de 100 metros do aquartelamento, impedindo a saída das forças que tentavam manobrar para fora do aquartelamento e em socorro das NT emboscadas.

Nesta operação as nossas tropas sofreram 1 ferido grave e 3 ligeiros. O IN que retirou em face da reacção das NT, sofrendo 2 mortos confirmados e outras baixas prováveis.

Feridos evacuados para o HM 241 de Bissau:

Soldado n.º 57/68 Morel Biai PEL MIL 128 - Ferido grave
Soldado n.º 61/67 Gabriel Bramer PEL MIL 128
Soldado n.º 61/67 Granque Jaló PEL MIL 128
Soldado n.º 31/58 Augusto Balanta PEL CAÇ NAT 59

Destaque para o louvor à CCAC 2585 atribuído pelo COMCHEFE pelas acções e resultados obtidos em pouco espaço de tempo. Esta Companhia esteve envolvida em acções de combate, quando da morte dos três Majores na zona do Pelundo/Jolmete.

Sinto orgulho em ter contribuído com o meu trabalho e dedicação juntamente com os meus camaradas na construção de 22 casas para a população, 1 escola, 1 pequena capela que servia também para pedir à Mãe Protectora sorte, 1 cozinha e tantos outros trabalhos ali efectuados e no distribuir da comida àqueles miúdos após a nossa refeição. Lembro do mal que se comia na altura, tanto cá como lá e na ida no Niassa, a dormir em camas feitas de tábuas.

Mais teria para descrever no entanto penso ser suficiente. Um abraço e obrigado. José Firmino


3. Comentário do co-editor CV:

Caro Firmino sê bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Esperamos de ti estórias e fotografias dos acontecimentos da tua Companhia, que pelos vistos foi mesmo importante em termos operacionais.
Não te acanhes em contactar directamente o nosso Blogue e em mandar o que achares importante para aumentar o nosso espólio e os nossos conhecimentos sobre a guerra na Guiné.

Carlos Vinhal
Co-editor
__________

Nota de CV:

(1) Sobre a CCAÇ 2585, vd. os posts de:
27 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2004: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (Anexo A): Depoimento de Fur Mil Lino, CCAÇ 2585 (Jolmete, 1970)

27 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1629: Lendo os vossos depoimentos com um nó na garganta... O que é feito da CCAÇ 2585 ? (Raul Nobre, ex-Alf Mil Médico)

(...) Tenho lido estes depoimentos com um nó na garganta. É muito importante em todos os sentidos, quer histórica quer emocionalmente.
Em 1969 fui incorporado como médico na CCAÇ 2585, comandada pelo Capitão Tomaz da Costa. Ainda fiz o IAO na Arrábida e gozei os 10 dias de licença antes do embarque. Entretanto deu-se o "atentado" ao Niassa e o embarque do Batalhão fez-se com atraso. Eu não cheguei a embarcar, pois deferiram-me o requerimento que fizera para poder terminar a especialidade de Estomatologia e em 1971 mandaram-me para Timor donde regressei em 1973.
Nunca mais tive notícias de ninguém. Recordo-me que havia um Alferes chamado Almendra, creio que natural de Trás-os Montes.O meu contacto com os camaradas foi de curta duraçáo, pois tinha sido reinspeccionado, fizera uma recruta de um mês em Santarém e tinham-me colocado naquela Companhia que, por sua vez, tinha sido constituída a toda a pressa.Gostava de ter notícias daqueles rapazes (...).

Guiné 63/74 - P2105: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (1): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte I)

Guiné > Zona Leste > Cuor > Missirá > 1966 > O Fur Mil José  António Viegas, do Pel Caç Nat 54, autor das fotografias.


Guiné > Zona Leste > Cuor > MIssirá > Pel Caç Nat 54 > Imagens de Missirá após o ataque de 22/12/1966 

 Fotos: ©: José António  Viegas / Henrique Matos (2007). Direitos reservados. 

 Texto de 12 de Julho de 2007,enviado pelo Henrique Matos, que foi o 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)(1): 

 Meu caro Beja Santos e camaradas da Tabanca Rrande: O desafio lançado para ajudar a escrever a história do Pel Caç Nat 52 é aliciante e devo acrescentar que gostava de a ilustrar também com imagens dos lugares que conheci: Enxalé, Porto Gole e Missirá, este sempre de passagem durante os reabastecimentos. 

A tarefa não é fácil e não se faz de repente. A memória é traiçoeira e os camaradas com quem tenho contactado sofrem do mesmo mal. Estamos longe uns dos outros, as conversas por telefone são sempre inconclusivas e para mal dos nossos pecados tenho verificado que o pessoal do meu tempo não percebe nada destas coisas da Internet. Tenho de digitalizar as fotos e retocar algumas que estão degradadas. 

 Para a história de Missirá mando hoje uma séria de fotografias cedidas pelo Fur Mil José Viegas, do Pel Caç Nat 54 (2). Este pelotão que estava naquele destacamento não havia muito tempo quando foi atacado em 22 de Dezembro de 1966, cerca das 22 horas. 

Do ataque deve referir-se que o IN usou o canhão s/r que deixou marcas no terreno, foram ouvidas vozes de comando de cubanos e houve 5 mortos da população civil. 

 Ainda não aprendi a inserir comentários, como gostaria o nosso comandante Luís, por isso aproveito para enaltecer a entrada do coeditor Virgínio Briote de quem já li tudo o que escreveu e que, tal como eu, passou pelo BII 17. Tenho a certeza que quando nos encontrarmos vamos ter coisas para contar, não esquecendo o saudoso (no bom sentido) Ten Cor Garrido Borges. 

 Também gostaria de mandar uma saudação especial ao Rui Alexandrino Ferreira, com quem estive na Companhia de Adidos em Brá nos primeiros meses de 67 (não me recordo a data exacta) e que me contou umas coisas sobre Madina do Boé. 

 Abraços Henrique Matos

 ___________ 

 Nota de L.G.: 






Guiné 63/74 - P2104: Álbum das Glórias (26): Café Avenida, Bissau (Gabriel Gonçalves)

Mensagem do Gabriel Gonçalves (ex-1.º Cabo Cripto da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) (1), com data de 11 de Setembro:


Caros amigos editores da nossa Tabanca Grande:

Depois das férias e de um merecido descanso, entro em contacto convosco para vos enviar uma foto tirada em Bissau, em Outubro de 1969, no conhecido Café Avenida, com o título "Uma mesa cheia de criptos".

Esta foto foi-me enviada recentemente pelo nosso camarada e tertuliano Luís Camões, que pertencia à CCAÇ 2589 sediada em Mansoa, onde se encontrava o BCAÇ 2885.


Guiné > Bissau> Outubro de 1969> Café Avenida> Uma mesa cheia de Criptos


Foto: © Luís Camões (2007). Direitos reservados.

Nesta foto, da esquerda para a direita está o Camões (2); o nosso camarada a seguir não nos lembramos no nome, mas pertencia ao Batalhão dos velhinhos de Mansoa e era das Transmissões; a seguir o Brazão que também era Operador Cripto da Companhia do Camões; depois o Gabriel Leal Op Cripto de rendição individual, QG-Bissau, e eu.

Podemos ver, por baixo do meu banco, um saco da TAP. No dia seguinte ao que esta foto foi tirada, iria apanhar o avião para Lisboa, para vir conhecer a minha filha mais velha que tinha nascido no mês anterior (3).

Um abraço
GG
_________________________

Notas de CV

(1) Vd. post de 18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves

(2) Vd. post de 26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1886: Tabanca Grande (18): Luís A. Camões de Matos, Op Cripto da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2885, Mansoa (1969/71)

(3) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1485: Bambadinca revisitada... ou os azares de um operador cripto em fim de carreira (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2103: Gente do Olossato (Rui Silva, CCAÇ 816, 1965/67)


Guiné > Região do Oio > Olossato > c. 1966 > O Sana, o Abdul e o Mamadú...


O Jorge devidamente engravatado e com ar solene, cá em Portugal, no dia do casamento do Rui Silva (Abril de 1970).


Fotos: © Rui Silva (2007). Direitos reservados

1. Texto do nosso camarada Rui Silva, ex-Fur Mil, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa
1965/67), e que vive hoje em Vila da Feira (1). Enviado em 31 Julho de 2007:

Para todos os que passaram por Olossato, mormente para os camaradas da 566 e da 816 (a minha Companhia).

Vejam se os reconhecem! ... Não?

Eu apresento-vos: da esquerda para a direita, de pé e sem bola, e…sem roupa: o Sana, o Abdul e o Mamadú (à atenção do Sargento Preto - era o apelido do Sargento - da 566 que o acarinhou e protegeu na zona de Morés) ou Morés (hoje Jorge e a viver desde 1967 em Riomeão).

Na outra foto, o Jorge devidamente engravatado e com ar solene, cá em Portugal e no dia do meu casamento (Abril de 1970).

Aproveito para saudar a gente de Olossato (que saudade!), gente ordeira, leal, humilde, trabalhadora e respeitadora.

O Sana e o Abdul (hoje com quarenta e tal anos), espero que estejam bem. Um abraço para todos.

Rui Silva
_________
Nota de L.G..

Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Mamadu Camará, um dos soldados do Pel Caç Nat 52, sob o comando do Alf Mil Beja Santos que lhe propôs um louvor devido à sua acção heróica na noite do ataque ao destacamento, em 19 de Março de 1969 (1). E no ataque de Agosto de 1969, salvou a vida ao seu comandante, episódio esse que aqui se relata.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.



Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 19 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 1 da Parte II da série Operação Macaréu à Vista, ou seja, ao futuro segundo volume das suas memórias do Cuor e, cronologicamente, ao seu 2º ano de comissão na Guiné (2).



Conforme foi oportunamente aqui noticiado, está já no prelo o livro do Beja Santos, Na Terra dos Soncó: Diário de Guerra (1968/69), em edição do Círculo de Leitores (3). Depois de mais de um mês de um interruptação, por motivo de férias, retomamos a publicação desta série.

Operação Macaréu à Vista - Parte II: Mamadu Camará, a onça vigilante
por Beja Santos

(i) Fogo de Santelmo, fogo de Madina

A partir do meio da tarde, o céu fez-se chumbo, o ar esfriou, ficámos à espera que chovesse, contrariados no meio das obras à volta do arame farpado. Quando parecia que o chumbo passaria a negro, o negro da nuvem espessa que se encaixara como uma abóbada sobre Missirá deixou imprevistamente que os raios e coriscos se acendessem e, como uma faca que rasga a seda, estoiraram estrepitosamente em Missirá, em todo o Cuor.

O anoitecer fez-se dia com aquela iluminação de teatro, espectral. A chuva abundante caiu dos céus, ficou a empapar-se às nossas botas, o sibilar da trovoada gigante levou-nos a fugir para casa. É nesse entretanto da fuga precipitada para as moranças que começa uma flagelação com morteiros e costureirinhas. Do pânico da chuva passou-se rapidamente para a resposta, corríamos nus, em roupa interior, encharcados, enlameados. Quem limpava as armas pô-las em funcionamento, quem fazia a contabilidade mudou de armas, quem cozinhava foi logo responder com metralhadoras, e todo este fogo de resposta amorteceu o som das obusadas que espalhavam o metal destruidor, salpicando a terra.

Os colhidos de surpresa, as mulheres e as crianças que cultivavam e brincavam, atiraram-se para as valas. No morteiro 81, encadeado por aquele maldito fim de tarde desorientador, pois falsa era a noite e o falso era o dia, com precioso auxílio do Queirós, eu punha e tirava cargas das granadas, procurando atinar com as distâncias. Era uma estranha flagelação, era um fogo espúrio, como se estivessem a testar-nos para o tiro a tiro. O Queirós gemia, segurando o tubo sem a braçadeira, o braço em chaga. As explosões chegavam espaçadas, como a lembrar que há muitas maneiras de fazer flagelação.

É então, entre esse dia e essa noite de Santelmo e do fogo de Madina que sou disparado a coice, saio do abrigo de morteiro com forte encontrão, alguém me projecta ao solo. Uma explosão ao pé soergue-me e ao intruso que me arrancara do morteiro 81. Eu desfiro palavrões mas o intruso grita de dor. Desprendo-me do fardo, o Queirós a tudo assiste aparvalhado, ponho-me de pé e vejo Mamadu Camará jazente e depois de tronco arqueado, com o rosto riscado pelo sofrimento. É o Queirós, que sai do atordoamento, que explica o transcendente daqueles instantes:
-Meu alferes, o Camará viu o rebentamento, quis salvar-lhe a vida.

Entretanto, acabou-se a flagelação, que deixou a mesquita com algumas chapas perfuradas, há os pés rasgados do costume, há semblantes enfarruscados e queimados e há ainda alguma luz para deitar contas à vida e ver o que correu mal. Felizmente, nada mais aconteceu, Madina lançou mais um aviso, muito provavelmente vieram patrulhar e antes de retirar deixaram este cartão de visita.

Agora, nada mais me interessa do que agradecer discretamente a Mamadu Camará, que cambaleia, cheio de contusões e rasgões. Nessa noite, depois do jantar, enquanto Missirá faz serão a comentar os acontecimentos, chamo o Mamadu, depois de ter reflectido sobre a sua bravura:
-Mamadu, não tenho palavras para te agradecer, tu estiveste pronto para dar a tua vida para me salvar. Tu merecias uma elevada condecoração. No entanto, vê a posição em que me encontro: se publicitar o teu feito, parece que estou a engrandecer o facto de estar no morteiro, no meu dever a enfrentar o inimigo. Peço-te que me compreendas, prefiro ficar com uma dívida contigo, deixa-me amanhã eu contar a todos o que fizeste por mim. E esta história fica sem ser conhecida por mais ninguém fora de Missirá.

O Mamadu, em todas as conversas sérias, ele que tinha um vozeirão de barítono wagneriano na vida corrente, pôs-se a entaramelar a voz, reduzindo-a a um fio, vacilando na resposta. Ouviu-me e disse:
-Está certo, ninguém tem o direito de saber fora de Missirá esta história. Eu já tenho uma medalha, não preciso de mais.

E ninguém soube até hoje. Chegou o momento da tua abnegação chegar aos quatro cantos do mundo, Mamadu (4).

A noite corre, a tensão é grande, só com os alvores da madrugada é que vamos perceber quem veio flagelar, como retiraram. Como não me saísse do sentimento a impressão desta dádiva total, um ímpeto leva-me a escrever no profundo silêncio da mata. Então simulo poetar:

Mãe, saúdo-te entre cravos olerosos, frutos deiscentes e os feridos que aguardam um helicóptero. Eu sou o fogueiro que subiu ao viaduto de gás e faço ressoar o hino da vitória desses meteoritos que se espalham por esta mata. Saúdo-te num abrigo - casamata, como se pegasse no arado das palavras e para te alegrar do fundo desta guerra. Sim, Mãe, devo-te a vida e a mais alguém. Saúdo o teu segredo num luar textual. É possível que Deus cavalgue a lua neste preciso instante em que ergo as mãos para te beijar e abraçar esse mais alguém que me ensinou o sopro da carne viva. A ti e a esse mais alguém, desejo-vos a hora viva nas palmeiras..

E deitei-me, derreado, agradecido, sem ilusões do sem préstimo desta pseudo-poesia a copiar escandalosamente o génio de Saint-John Perse (5).

Ao amanhecer, reconhecemos os itinerários da gente de Madina, eram um grupo de pouca monta, deixou marcas na estrada de Cancumba, apanhou a estrada principal até Morocunda, seguiu por Biassa.
- Tenho que pedir ao Reis sapador para vir cá, para armadilhar todo este trilho (6).

Mal sabia eu como iria increpar-me contra tal pensamento.


(ii) Em Gambana, o fim das canoas de Madina

Logo a seguir a esta flagelação quase sem memória, substituídas as chapas da mesquita, elaborada a informação que seguiu para Bambadica, com mais um dia a arranjar arame farpado e a patrulhar Mato de Cão, chegou o momento de ir buscar um grupo de sapadores para destruir as canoas identificadas a partir dos Nhabijões. O Reis sapador quis vir e mais entusiasmado ficou quando lhe disse que iríamos até o Enxalé festejar a sua entrada no nosso sector, e esse entusiasmo ficou ainda acrescido quando lhe pedi para vir armadilhar de novo os trilhos de Morocunda e nos arredores de Sansão, para onde eu suspeitava que um dia a gente de Madina nos faria a surpresa de aqui colocar os canhões sem recuo.

Saímos cedo de Finete, seriam sete da manhã, tudo estava cronometrado para afundar as canoas, armadilhar o local e às onze da manhã vermos passar dois batelões a caminho do cais de Bambadica. O Reis desempenhou-se com a sua equipa bem e depressa, três canoas desfizeram-se dentro da lama, depois ele montou um engenho e lá seguimos com duas viaturas a quebrar o silêncio numa estrada cheia de beleza, um dia calmo, ensolarado, aprazimento nos céus e sossego nos nossos corações.

Não vale a pena repetir como foi bom voltar ao Enxalé (7), reencontrar o Taveira, dar-lhe a notícia, foi um almoço apressado com mais conservas que comida feita na hora, o céu não estava de fiar, fora um grupo exíguo, o regresso urgente impunha-se para evitar mais suplícios na picagem da estrada. Recordo que deste vez não houve fogo de reconhecimento para os lados de Sinchã Corubal. Mas o que nunca mais esqueci foi que junto à estrada que ia para Madina o Alcino Barbosa encontrou uma sinalização de proibido, que vinha do antes da guerra. Fez-se fotografar e depois metemos o sinal num dos Unimogs. Sim, era inaceitável um caminho proibido até Madina. Mas a verdade é que só lá voltámos e com sucesso em Fevereiro de 70.

O Reis partilhava a nossa felicidade embora confessasse não perceber o meu entusiasmo em ficar em estreita cooperação com o Enxalé. A verdade é que saírei em Novembro de Missirá, tudo ficará na mesma, não aumentaram os efectivos, não se criou a cooperação desejada entre os dois destacamentos frente ao inimigo comum. Era assim a nossa estranha guerra, com as suas falsas mudanças e o inimigo cada vez mais forte.

Em Missirá, o Reis armadilhou com o fervor que lhe conhecíamos. Desta vez, tudo ficou esquematizado e ele prometeu voltar em breve para confirmar a eficácia do seu trabalho. Quase sempre esquecíamos estes engenhos, até que de madrugada acordávamos com o alvoroço dos estrondos: ou os humanos saíam estropiados com o rebentamento ou as gazelas ou macacos morriam e ficavam pasto dos jagudis. E não voltámos a ter acidentes com militares e civis, dentro e fora do aquartelamento de Missirá.

O Reis partiu e eu adoeci seriamente. Até ao fim de Agosto [de 1969], toda a minha correspondência sairá do punho do [Fur Mil] Pires, a quem vou ditando as cartas para a Cristina, para a família e os amigos. Evitarei nova vinda do David Payne a Missirá, aparecerei aos tombos na enfermaria de Bambadinca e, pela primeira vez em todo um ano de comissão, ficarei ali a descansar e a vitaminar-me, tratando dos líquenes, fungos e pés inchados, dois dias completos. Mas vou regressar sem emenda, vou recorrer dos préstimos do Casanova e do Pires nas idas a Mato de Cão. Até que um dia vai chegar uma mensagem e vou participar na primeira edição da Operação Pato Rufia e depois na segunda (8). Fiquei com sérias razões para detestar o Buruntoni e aquelas operações azaradas.

As obras prosseguem, já chegaram algumas das toneladas dos materiais oriundos do batalhão de engenharia de Brá. A jangada em que trouxe um atrelado para a bolanha de Finete apodreceu, o gerador não virá tão cedo. Terei a alegria de sair da cama, em Missirá, para cumprimentar o capitão Rui Gamito, que aproveitando uma ida à Ponte dos Fulas veio visitar-nos e trazer estímulo.


(iii) Uma viagem à Idade Média, uma ida ao tribunal com Perry Mason

Surpreendentemente, leio indiferente ao torpor da minha prostração. É uma consolação embrenhar-me na leitura de A sociedade medieval portuguesa pelo Doutor Oliveira Marques. É um quotidiano dos nossos ancestrais que eu desconhecia. É um encontro com o Portugal das florestas, refúgio de feras, esse Portugal de um milhão de habitantes que tanto sofreu com a Peste Negra, dividido entre a nobreza, o clero e o povo, que o medievalista nos vai contar com assombrosa mestria: o que era a comida, o vestuário, a habitação, a higiene e a saúde, o afecto, os lazeres e a morte, tudo escrito sempre com uma tocante simplicidade, demonstrando que a História não é um conhecimento hermético destinado a grupos elitistas. Os pobres comem peixe e fava ou castanha. Os condimentos são raros. É vasta a quantidade de fruta posta à disposição de todos. Os ovos são apreciados cozidos, escalfados e mexidos. A descrição dos banquetes são páginas emocionantes.



Capa do livro de A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medival Portuguesa: aspectos de vida quotidiana. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa. 1971 (1ª ed., 1964).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados



Fico a saber como vestem os homens e as mulheres e as crianças há seis séculos atrás, como se eliminam nas suas casas rústicas onde o conforto parece centrado na cama. A higiene é escassa mas é uma remantada mentira dizer-se que a Idade Média foi o paraíso da imundície. Leio pela primeira vez o que era a comunicação afectiva . Os filhos estão em poder dos pais até ao matrimónio. A religião não pode tudo, a Idade Média não escapou ao incesto como não escapou aos grandes arroubos do amor. Grande livro, que vai marcar o meu gosto pela vida quotidiana, a análise histórica feita de dentro da civilização e da cultura, no claro entendimento das mentalidades.

Li também com satisfação O Caso da Noiva Curiosa, de Erle Stanley Gardner. O livro é tão bom como a capa do Cândido da Costa Pinto é belíssima. Uma cliente vão ao escritório de Perry Mason saber se uma amiga tem o direito de se casar depois de 7 anos em que o primeiro marido esteve desaparecido. Mason apercebe-se que há mais história e faz investigação. O primeiro marido da cliente aparece morto e esta está manifestamente indiciada como homicida. Raras vezes Mason vai brilhar com tanto fulgor no tribunal convertendo as testemunhas de acusação em defesa, levando o segundo marido da sua cliente a uma dolorosa confissão.



Capa do romance policial de E. S. Gardner, O caso da noiva curiosa. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 29). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Estou a viver o mês de Agosto [de 1969] sem nervo, com pouco sabor, subindo a corda à procura de entusiasmo. Estou literalmente farto de escalas de serviço, listagem de gente que vai para a emboscada, fazer engenharia entre os que ficam em Missirá e o grupo que parte para Finete para arregimentar milícias e daqui seguir-se para Mato de Cão. As minhas cartas, disse-o atrás, são ditadas, não espelham exactamente o que me vai na alma.

Na última semana, parto com 12 homens e entro em Bambadinca para participar na Operação Pato Rufia. Esta aparece descrita em Setembro, mas elide que 15 dias antes vários destacamentos andaram a apanhar bonés com dois guias perdidos, entre a estrada do Xime e do Ponta do Inglês, sem se saber bem como chegar a um acampamento inimigo. Vale a pena contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

(2) Vd. post de 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

(3) Vd. post de 25 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1996: Nas Terras dos Soncó, um livro saído do nosso blogue, em próxima edição do Círculo de Leitores (Beja Santos / Luís Graça)

(4) Cometendo embora uma inconfidência (o Mário e o Círculo de Leitores vão-me perdoar), posso desde já confirmar que o livro Na Terra dos Soncó, terá uma Dedicatória, com o seguinte teor:

A quem combateu comigo, muito especialmente a malta do Pel Caç Nat 52 e dos Pel Mil n.º 101 e 102, nos destacamentos de Missirá e Finete. Uma ternura muito especial ao Cherno Suane, ao Mamadu Djau e ao Mamadu Camará (eles sabem porquê).

(5) Diplomata e poeta francês (1887-1975), Prémio Nobel da Literatura (1960). Vd. sítio da Fundação Saint-John Perse.

(6) "O mais truculutento dos sapadores do Geba", é assim, carinhosamente, que o Beja Santos trata o Alf Mil Sapador Reis, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): vd. post de 18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

(...) O Alferes Reis, o mais truculento sapador da Guiné, veio passar 4 dias connosco. Zaragateámos um pouco por causa da quantidade de trotil que ele pretendia enterrar em todos os atalhos que circundam Missirá. O Reis começa-se a afeiçoar à região e quando eu for operado em Março, será ele que apanhará o vendaval de fogo . Mas hoje ajudou-nos imenso a colocar correctamente as fieiras de arame farpado e deixei-o com carta branca para armadilhar junto da fonte de Cancumba, que é um local que tenta os rebeldes (...).

(7) Vd. post de 26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2000: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (55): Uma visita a Enxalé, um tornado em Bambadinca, um enterro em Madina Xaquili....

(...) Uma memorável viagem ao Enxalé só para 'partir mantenha': Pelas 6 da manhã de 19 de Julho de 1969, perguntei ao contigente que ia a Mato de Cão se me queriam acompanhar ao Enxalé. Os nossos motoristas foram o Setúbal e o Manuel Guerreiro Jorge. Tal como eu esperava, houve urras e manifestações de alegria, logo uma adesão espontânea (...).

(8) Vd post de 8 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12 (Luís Graça).