
Meus caros camarigos:
Em comentário ao texto do Amílcar Mendes (*), aqui deixo a minha opinião.
Podem colocá-lo como comentário ou fazer dele o que quiserem, apenas vos digo que isto deve ter sido das coisas que mais me insultou como ex-combatente da guerra do Ultramar.
«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».
Estas são, por aquilo que me é dado saber, as frases proferidas por Lobo Antunes e que são objecto da justa indignação do Amílcar Mendes e de muitos mais.
Para mim, muito mais importante que a frase: «Eu tinha talento para matar e para morrer», que até posso levar à conta de liberdade de expressão do escritor, (embora me pareça mais uma “boca idiota” de auto-elogio de quê não se sabe), são as afirmações que faz seguidamente, essas sim de uma gravidade muito séria e que colocam em causa todos os ex-combatentes, na sua dignidade, na sua humanidade, bem como as Forças Armadas Portuguesas, para além da enorme mentira que contêm.
Lembremo-nos que Lobo Antunes esteve em Angola já nos anos 70, ou seja, quando a guerra em Angola estava praticamente acabada, (cheguei a Angola no início de 74 e circulava-se livremente por todo o território), e portanto as operações militares, sobretudo ao nível dos Batalhões em quadrícula, não eram de molde a provocar as baixas que ele cita e muito menos a barbárie que ele refere.
Para um Batalhão em Angola ter naquele tempo 150 baixas, (que número tão redondo), como ele refere na mesma ocasião, deve ter contado as baixas por matacanhas e as unhas encravadas!
Um dos meus irmãos mais velhos esteve no Norte de Angola de 63 a 65, sempre em zonas de combate, e disse-me peremptoriamente que essa história dos pontos é uma pura e simples invenção, o que aliás nós bem percebemos, porque se fosse prática em Angola porque não o seria na Guiné e em Moçambique?
Mas são sobretudo estas duas frases que me indignam, «E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros», porque faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade, o que nós sabemos nem de longe nem de perto corresponde à verdade.
Não nos esqueçamos que são frases proferidas por um médico, que já o era, e que
portanto estava, devia estar, arredado das acções directas de combate.
Coloca também em causa os seus camaradas de Batalhão, fazendo deles uma espécie sub-humana, sem sentimentos e a roçar o animalesco! (...)
Pode ser um grande escritor, pode ser um bom médico, pode ser um intelectual, mas não é com certeza um homem decente quando profere estas aleivosias e insulta os ex-combatentes e as Forças Armadas Portuguesas.
E, desculpem, mas não perco mais tempo com este gajo!!!
Abraço camarigo para todos.
Joaquim Mexia Alves
2. O Joaquim já tinha deixado um comentário no poste do Amílcar (*). Tomo a liberdade de reproduzir o seguinte excerto:
(...) Mas repara meu amigo, que já aqui por variadas razões se “terçaram armas”, por vezes bem mais “violentamente”, por outros ditos de militares, jornalistas, etc, e considero que não podemos invocar os talentos de Lobo Antunes para a escrita, ou as suas capacidades intelectuais, ou a sua bela definição de camarada de armas, para nos eximirmos de o criticar quando diz coisas que atentam contra a dignidade de todos os ex-combatentes, sobretudo os que estiveram em Angola, e isso toca-me como ex-combatente e toca-me na família.
Um homem grande, de honestidade intelectual, que eu apesar de tudo acredito que ele é, já devia ter “vindo a terreiro” explicar as suas palavras e se exagerou, (e quem de nós não o fez já em determinadas circunstâncias?), devia retratar-se e explicar que tudo não passou de “figuras de estilo”. (...)
3. Comentário de L.G.:
As infelizes frases ditas, no estrangeiro, por um escritor de que eu sou leitor, mas que só conheço de vista (autografou, ao meu filho, adolescente, um dos seus livros há já uns largos anos na Feira do Livro de Lisboa, ainda era vivo o seu grande amigo, o José Cardoso Pires que estava a seu lado, e que escreveu uma ternurenta dedicatória à minha filha no seu livro "Hóspede de Job"), essas infelizes frases, dizia eu, reportam-se à sua condição de médico militar durante a guerra colonial e, nessa qualidade, não nos podem deixar indiferentes, dizem-nos também respeito... Em todo caso, não podem ser usadas como título de caixa alta, postas entre parênteses, fora de contexto, muito menos como libelo de acusação para linchamento do homem e do escritor em praça pública...
Há que ler o livro e inserir essas e outras frases no contexto da experiência do autor que era, antes de mais, um oficial miliciano e só depois médico e só mais tarde escritor (em 1985, torna-se escritor profissional, abandonando a psiquiatria)... Deixo aqui outras frases do livro, o qual resulta - é bom não esquecê-lo! - de uma longa conversa com o Lobo Antunes, mantida pelo jornalista João Céu e Silva (que é, de facto e de jure, o AUTOR DO LIVRO!), entre Setembro de 2007 e Maio de 2009:
(...) [JCS] Dessa guerra há um dia que o tenha marcado mais do que todos os outros ?
[ALA] Há o dia 13 de Outubro de 1972, mas não posso dizer porquê. Foi uma violência, nunca vou equecer esse dia! (p. 111)...
(...) Eu nunca quis falar nem nunca escrevi sobre a guerra! (p. 110)... Há dias, tive uma conversa com um amigo... e recordei algumas coisas da tropa, o resultado foi que passei uma noite má. Acho que não há quem não tenha vindo de lá afectado (p. 111)...
Qual é esse terrível segredo que o escritor tem guardado, até hoje, só para si? E que não quis compartilhar com o João Céu e Silva (p. 391) ?... Aliás, essa "declaração inédita", esse terrível parágrafo que começa pelas terríveis palavras "Eu tinha talento para matar e para morrer"... podem ser "parte da solução do mistério sobre um certo episódio em África que se recusou a revelar-me" (sic) ... E, se for de facto assim, é um daqueles segredos que o homem leva para a cova , e não apenas uma manifestação da imaginação delirante do autor de "Memória de Elefante" (1979) ?
De resto, as declarações do veterano da guerra colonial de Angola podem levantar (levantam, seguramente) uma questão ética, que tem ver com ambiguidade, confusão e conflito de papéis a que o Lobo Antunes também não escapa, como ser social: onde acaba a consciência moral do homem, do militar e do médico e começa a liberdade criativa do escritor ?
Os lapsos de memória do ex-oficial miliciano médico ou até a sua falta de rigor em relação a questões técnico-militares (por ex., calibres de armamento) devem ser tidas em conta, mesmo que não sirvam de desculpa... Por ex., na página 239, leio algumas coisas que me espantam e que não tenho a certeza de serem correctas (pode ser que alguém mo confirme):
"E à volta de cada mina, [os guerrilheiros do MPLA] punham várias minas antipessoais, porque a mina anticarro rebentava com duzentos quilos e a mina antipessoal, com a pica, eram mais quarenta quilos e aquela merda estourava toda. Mas asim saía mais barata ao Estado , porque enquanto uma Berliet custava dois ou três mil contos, pela morte de um homem, por um rapazinho, paam quatrocentos contos à família. Ficava mais barato!"
Confesso que já não sabia a que pressão rebentavam as minas e, muito menos, que o Estado pagava, na época, 400 contos de indemnização à família pela perda de um vida, cinco ou sete vezes e meia menos do que o custo de uma Berliet do Tramagal...
Fico por aqui. Não sou advogado do escritor, muito menos do homem. E quero sobretudo reafirmar aqui um dos nossos princípios fundamentais, a (ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus), princípio esse que tem que ser compatível com o (i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)...
Quadratura do círculo ? Às vezes as peças não encaixam mesmo...
[ Revisão / fixação de texto / bold a cores / título: L.G.]
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Nota de L.G.
(*) Vd. poste de 17 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5283: Carta aberta ao António Lobo Antunes: que p... é essa de ter talento para matar ? (Amílcar Mendes, 38ª Cmds, 1972/74)