quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20560: Antropologia (35): Djobel, uma tabanca vítima das alterações climáticas, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2019, dirigida ao editor CV:

Caríssimo Carlos, Boas tardes.
Acabo de receber da minha amiga Lúcia Bayan dois textos acompanhados de preciosas imagens. É uma oferta para o nosso blogue, presente de alto nível, bem revelador dos estudos que ela leva a efeito sobre a civilização e cultura Felupe. Peço a amabilidade de os publicar.
É uma dimensão que precisamos de explorar, a da investigação científica. Farás o favor de me indicares as datas da publicação para eu informar a autora.
A Dr.ª Lúcia ainda mandou outras imagens que eu vou utilizar em artigos meus, obviamente citando a sua origem.

Recebe um grande abraço do
Mário


2. Mensagem da Dra. Lúcia Bayan enviada a Mário Beja Santos em 14 de Janeiro:

Boa tarde caro Amigo,
Nesta troca de mensagens o Patrício refere alguns problemas que as alterações climáticas estão a provocar no chão felupe. Infelizmente, a Guiné-Bissau irá ser seriamente afectada, especialmente pela subida da água do mar.
Envio um pequeno texto para explicar os problemas e conflitos que a subida da água do mar já está a provocar actualmente no chão felupe.

Abraço,
Lúcia

********************

Djobel, uma tabanca vítima das alterações climáticas

Por Lúcia Bayan

Djobel[1] é uma pequena tabanca baiote situada no noroeste da Guiné-Bissau, no sector de São Domingos, região de Cacheu. Os Baiote são, como os Felupe, um subgrupo Joola. Em tempos idos, os Baiote desceram do Senegal e conquistaram aos Felupe o seu chão actual, entre Suzana e São Domingos. A última batalha foi travada entre Arame, tabanca baiote, e Suzana, a principal tabanca felupe. Arame venceu e ficou com as bolanhas de Suzana, situadas entre as duas tabancas. Uma pequena ponte à entrada de Suzana marca a fronteira entre os dois grupos: Felupes a oeste e Baiotes a leste.

Djobel, a quem os Felupe chamam Nhabane, está situada a sul de Arame e de Elia, muito próxima desta, e é uma tabanca muito diferente das tabancas baiote e felupe. Instalada no meio dos mangais e da água (Fig.1), na maré alta, as casas parecem palafitas e só na maré baixa se percebe que estão situadas em pequenos montículos rodeados de lama.

Foto 1

O acesso a Djobel só é possível de barco e na maré alta. Para quem chega a tabanca é lindíssima, mas a sua beleza esconde um tipo de vida muito duro. Não há água potável, apenas a captada em depósitos na época da chuva (Fig. 2) e a que as mulheres vão buscar de canoa a Elia (Fig. 3). Sair ou entrar em casa, ir ao mercado, trabalhar, à escola, buscar água, visitar o vizinho ou obter ajuda, tudo depende das marés.

 Foto 2

Foto 3

Em condições tão adversas a vida em Djobel só é possível devido à enorme mestria dos Joola na construção de diques. E é também em Djobel que melhor se pode observar esta técnica, pois os habitantes desta tabanca, além de construírem diques para os arrozais, as bolanhas, também utilizam diques para defender os pequenos montículos ou ilhas da subida da água (Fig. 4), impedindo assim que chegue às casas, e para a comunicação entre as ilhas, como pode ser visto na imagem retirada do Google (Fig. 1).

Foto 4

A construção destes diques envolve toda a população da tabanca. Todos os adultos contribuem para a compra dos materiais necessários, como kirintis, placas de entrelaçado de tiras de bambu ou palmeira utilizado para fazer vedações, e para o seu transporte. Os homens cortam os paus e tecem as cordas e, depois de reunidos todos os materiais necessários, é marcada a data da construção. Nesse dia, todos participam e a tabanca fica vazia (Figs. 5 e 6).

 Foto 5

Foto 6

No entanto, a subida acentuada do nível do mar, provocada pelas alterações climáticas, traz consigo a morte de Djobel. A água já chega às casas e, apesar das suas técnicas e esforços, os habitantes de Djobel terão de abandonar a tabanca.

A Guiné-Bissau faz parte dos 10 países do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas, especialmente à subida do nível do mar. Em Varela o mar sobe cerca de 7 metros por ano. A mudança de populações será uma necessidade cada vez mais recorrente.

As negociações para a mudança da população de Djobel iniciou-se há algum tempo. Este é um processo muito complexo que, nos últimos meses, tem originado uma série de conflitos. A escolha do novo espaço foi feita recorrendo à história: Djobel foi fundada por um filho de Arame e, por isso, esta tabanca aceitou receber os habitantes da primeira. Mas não os seus santuários!

O local escolhido, e certificado pelas entidades oficiais, situado entre Arame e Elia, começou a ser desmatado para a construção das casas. Contudo, as queimadas para preparação do terreno abrangeram uma horta de caju de uma família de Elia que, além da perda da horta, alega o terreno ser da sua família. Claro está, que os direitos à terra desta horta de caju originaram um conflito entre Arame e Elia. Cada tabanca defende uma localização diferente da fronteira que as divide. O conflito agravou-se e despoletou alianças e rivalidades tradicionais entre tabancas, alastrando-se às tabancas vizinhas Kassu e Colage. Em 24/05/2019, houve tiros e morreram duas pessoas.

Localização de Arame, Elia e Jobel
© Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

O ministro do interior Edmundo Mendes deslocou-se a Elia, foram estabelecidos percursos seguros para os habitantes de cada tabanca e a situação acalmou. No final do ano passado, em 10/12/2019, a Associação Onenoral dos Filhos e Amigos da Secção de Suzana (AOFASS), uma instituição de jovens, muito activa e muito influente, com sede em Bissau, e outras instituições realizaram, em Suzana, um encontro com os líderes tradicionais da secção de Suzana, «com o intuito de sensibilizá-los a serem patrocinadores da promoção do diálogo entre as tabancas de ELIA, ARAME, DJOBEL, KASSU E COLAGE» (https://www.facebook.com/aofass.suzana/). As fotos desta reunião, publicadas pela AOFASS, mostram que compareceram muitos líderes tradicionais: todos os que têm gorro vermelho, sendo os principais os também vestidos de vermelho. Um sinal de esperança para os habitantes de Djobel?

Lúcia Bayan, 11/01/2020
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[1] - Nota do editor: Vd. Tabanca de Jobel na carta de Susana
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20270: Antropologia (34): Cultura e tradição na Guiné-Bissau, por António Carreira (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

Foto nº 1


 Foto nº 1-A


Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  > Bambadinca > BART 2917 (1970/729 > Março de 1972 > Carreira de tiro > Foto nº1 > Da direita para a esquerda: (i) na primeira fila: o Comandante do CAOP 2, o General Spínola, e o ten cor Polidoro Monteiro (comandante do BART 2917); e atrás, na segunda fila, (ii) o Paulo Santiago (,de bigode e óculos escuros), o ten-cor Tiago Martins (, comandante do BART 3873). e o antigo administrador do oncelho de Bafatá, o então intendente Guerra Ribeiro (Foto nº1-A)

Foto nº 2 > em primeiro plano, dois civis, da administração colonial , sendo o segundo o intendente Guerra Ribeiro, no meio de militares, com o gen Spínola ao centro; ao fundo, à direita o nosso grã-tabanqueiro Paulo Santiago, na altura instrutor e comandante de companhia de milícias.


Fotos (e legendas): © Paulo Santiago (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso leitor Carlos Carvalho, guineense de origem cabo.verdiana, viva na Praia, Santiado, Cabo-Verde, é historiador e arqueólogo de profissão, filho de um antigo militante do PAIGC:

Data - sexta, 22/11/2019, 13:3722/11/2019
Assunto - Memórias: pedido de autorização


Exmo Senhor Luis Graça

Antes de mais meus melhores cumprimentos.

Sou Carlos de Carvalho, natural da Guiné, de nacionalidade cabo.verdiana.

Estou concluindo as Memórias de nosso falecido pai, um Combatente de Liberdade da Pátria, Inacio Soares de Carvalho, de nome de luta Naci Camara, varias vezes preso pela PIDE durante o tempo que durou a luta pela independência.

As Memorias narram a vida politica dele,  desde 1956 a 1974.

Nelas, numa das passagens, ele cita o famoso Guerra Ribeiro com o qual teve um "encontro" nada amigável. Procurando uma imagem desse administrador, alguém me recomendou ver seu blogue. Efectivamente, no seu blogue  vi as duas figuras, o Guerra Ribeiro e o Governador Spinola,  que precisava para ilustrar a passagem narrada nas Memórias.

Nesta conformidade e para salvaguardar os direitos autorais e de imagem, venho, por este meio, solicitar sua autorização para o uso dessa imagem, supondo ser de sua autoria essa fotografia. Em não sendo, muito agradecia que me informasse como poderia chegar à fonte e solicitar autorização para o efeito.

Certo de que este meio correio merecera sua devida atenção, agradeço antecipadamente.

Meus melhores cumprimentos.

Carlos de Carvalho

PS: Venho apreciando com enorme prazer o seu blogue com informações e imagens que ajudam a conhecer e reviver um pouco da historia recente daquela nossa martirizada terra. Às vezes da para perguntar se aquela música "Oh tempo volta pa trs" ´, não tem sentido. 


2. Resposta do nosso editor Luís Graça, com data de 22/11/2019, 17:33, e conhecimento ao Paulo Santiago:


Caro Carlos Carvalho:

Tenho todo o gosto de satisfazer o seu pedido. O nosso blogue (de ex-combatentes da guerra colonial e outros amigos da Guiné, incluindo guineenses, cabo-verdianos, etc.) pretende ser uma ponte entre os nossos dois povos que, afinal, têm uma história em parte comum, além de laços linguísticos e afetivos. (**)

Temos pelo menos 4 referências no nosso blogue ao administrador, e depois intendente da administração colonial, Guerra Ribeira (de seu nome completo, Manuel da Trindade Guerra Ribeiro. natural de Chaves).

As fotos que o Carlos refere são do meu camarada Paulo Santiago, que conheceu o Guerra Ribeira em Bambadinca, por volta de março de 1972...

De acordo com as nossas regras, terei que lhe pedir a sua (dele) autorização. Por parte do administrador do blogue, tem o meu OK, desde que cite a fonte:  Cortesia de © Paulo Santiago (2013) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Mas aguarde a resposta do engº Paulo Santiago, membro desta tertúlia, a quem dou conhecimento do seu pedido e da minha autorização.

Gostava depois que publicasse alguma coisa sobre o seu pai, no nosso blogue. Temos uma série,"(D)o outro lado do combate", já com mais de meia centena de referências. É muito importante que os filhos dos "combatentes da liberdade da Pátria", como é o seu caso, não os deixem "morrer na vala comum do esquecimento"... Fazemos isso, aqui, com os nossos camaradas que fizeram a guerra e a paz no teatro de operações da Guiné (1961/74).

Mantenhas. Muita saúde e longa vida. Luís Graça

3. Resposta, na volta do correio, do Paulo Santiago (, ex-alf mil,  ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72: é engenheiro técnico agrícola, reformado; vive em Águeda; tem 165 referências no nosso blogue):


Olá, Luís, boa noite

Interessante este pedido do filho do Inácio Carvalho, alguém do "outro lado" que vai falar. Acho bem acontecerem estas memórias.Vou dar autorização ao Carlos Carvalho.

Este mês, é o segundo pedido de autorização que recebo.Há dias foi de uma doutoranda,Verónica Ferreira (projecto CROME-CES UC) que chegou a mim através do Jorge Araújo. Perguntei ao Eduardo Costa Dias se conhecia a moça..."Boa miúda" respondeu-me. A Verónica vai enviar-me o capítulo (em inglês) onde será inserida a foto, e envio-te.

O Inácio esteve no Tarrafal. Em 2018 estive um mês em Santiago, Praia,e lá fiz uma visita à prisão, hoje museu da resistência...Tenebroso, aquelas celas disciplinares, a "holandinha", substituta da frigideira, horror.

Abraço, Paulo

4. Comentário do Cherno Baldé (Bissau), nosso colaborador permanente, sobre o Guerra Ribeiro (*):

(...) O Guerra Ribeiro, Administrador da Circunscrição, depois Concelho de Bafatá nos anos 60, era o terror dos nativos "indígenas" que viviam nos arredores ou visitavam a cidade, por força de uma medida administrativa que mandava prender e açoitar todos os nativos que nela entrassem de pés descalços.

A medida era inédita, controversa e paradoxal, porque no seu ambiente natural, salvo raras excepções (personalidades políticas ou religiosas), o nativo guineense, em geral, não usava sapatos no seu dia-a-dia e, também na fase inicial da colonização, o uso de sapatos entre o "gentio" ou era mal visto ou simplesmente proibido pela administração.

E, de repente, nos anos 60, o Administrador de Bafatá confundiu a mentalidade dos nativos com esta medida que intrigava muita gente e teria sido motivo para o surgimento de casos caricatos que ainda hoje se contam e são motivo de divertidas gargalhadas.

Com esta medida histórica, quem tivesse que passar por Bafatá, por qualquer motivo, sabia de antemão ao que era obrigado, mesmo que, por isso, tivesse que arrastar os pés ou andar como um coxo, porque os cipaios de Guerra Ribeiro estavam lá para fazer cumprir a ordem.

Assim, na região de Bafatá a história do uso de sapatos está intimamente ligada ao nome de Guerra Ribeiro, e a maioria dessas pessoas compravam o seu par de sapatos exclusivamente para satisfazer o Senhor Administrador de Bafatá.

O nome de Guerra Ribeiro está também ligado a construção do Bairro da Ajuda, o único Bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau, construído na base de trabalho obrigatório.

É por estas e outras coisas que, hoje, face a situação actual do pais, muita gente questiona (em especial os mais velhos) se não era melhor manter a ordem e a disciplina coloniais. (...)

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Notas do editor:


(...) No poste P11281 (...)  fala-se do Guerra Ribeiro, Administrador de Bafatá. Conheci a pessoa num dia em que apareceu no Saltinho,e lá pernoitou.

Mais tarde, apareceu em Bambadinca na cerimónia de encerramento do curso de Milícias. Nesta altura, já não era Administrador, era Intendente, e penso que estava em Bissau, mas sei muito pouco sobre estes cargos da Administração Civil. 

(...) Voltei a Bambadinca em Janeiro de 72 e, durante o novo curso de milícias, tive duas visitas do Com-Chefe, uma aí pelo meio e a outra no final tendo, desta vez, sido cumprido todo o programa de encerramento, que incluiu uma deslocação de viatura à carreira de tiro, que ficava para lá do destacamento da Ponte de Udunduma, a caminho do Xime. (...)

Nas fotos juntas, Março de 72, aparece o então Intendente Guerra Ribeiro. Na primeira, é a pessoa de farda amarela, atrás do Polidoro Monteiro e do Spínola. Na segunda, está a olhar para o lado esquerdo, e vê-se, também fardado,um outro elemento da Administração Civil que não sei quem é. (...)

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Rua principal de Contuboel, vendo-se à direita a célebre carrinha Ford do Manel Djoquim. Esta foto, sendo de 1969, foi tirada no tempo seco... Portanto, só pdoe ser do 1º semestre de 1969. O Valdemar Queiroz esteve em Contuboel, no Centro de Instrução Militar, entre fevereiro e julho de 1969. O nosso editor Luís Graça também lá esteve, mas já no inicío da época das chuvas (de 2 de junho a 18 de julho de 1969).  O "homem do cinema" fazia uma paragem, ficando retido em Bissau ou fazendo férias em Lisboa, no pico da época das chuvas (, o que coincidia com as férias grandes escolares das filhas na capital do Império, com a mãe,  Julinha, e a empregada cabo-verdiana). (Esta e a foto de baixo foram reproduzidas no livro de Lucinda Aranha (O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018), na pág. 96.




Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz a ver os cartazes, espetados numa árvore, do filme da semana : Riffi em Paris, película francesa, de 1966, dirigida por Denys de La Patellière e com Jean Gabin no principal papel... Filme de gângsters, popular na época... Chegava à Guiné três anos depois...Melhor do que nada... Hoje os guineenses não têm uma única sala de cinema..

Uma ternura (e uma preciosidade), esta foto!... A "fábrica de sonhos", ambulante, era a da nhô Manel Djoquim. Com ele, a "sétima arte" chegava a sítios recônditos de África...

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Notas de leitura:

Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.

Prometi a mim mesmo, e à autora, fazer uma nota de leitura, mais detalhada e pessoal, deste livrinho que só agora, ao longo do verão passado, fui lendo e anotando, de lápis na mão, como eu (ainda) gosto de ler os livros, em papel.

Devo, de resto, à autora, minha vizinha e nossa grã-tabanqueira, uma palavra de apreço e agradecimenhto pela oferta do livro com a seguinte dedicatória:


Cortesia de: Lucinda Aranha Antunes -
Andanças  na Escrita
"Para o Luís Graça com os meus agradecimentos pela ajuda que o seu blogue me deu. Lucinda Aranha Antunes."

Este agradecimento ela tornou-no também público na sua página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita28 de maio de 2019:

"Agradeço à Tabanca Grande e ao blogue luisgracaecamaradasdaguine o apoio que me deram nas fases de investigação e divulgação do meu novo livro."

A autora vive na Praia de Santa Cruz, no vizinho concelho de Torres Vedras, é licenciada em História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É professora, reformada, do ensino secundário. É coautora de programas e guias de apoio orientadores de trabalho de alunos e professores. É autora dos livros "Melhor do que cão é ser cavaleiro" (2009) e "no Reino das orelhas de burro"(2012), editados pela Colibri.  Integra a nossa Tabanca Grande, desde 15 de abril de 2014.

O livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim"  (e o seu "making of") suscitou um bastante interesse no nosso blogue e já foi objeto, na devida altura,  de uma excelente recensão do nosso crítico literário, Mário Beja Santos (*).

2. Destaco, entretanto,  aqui, outros comentários publicados no nosso blogue. Por exemplo, Valdemar Queiroz contribuiu com duas preciosas fotos, que documentam a passagem, por Contuboel, no 1º semestre de 1969, do homem do cinema, e que ele fez chegar à autora (, voltando nós  a reproduzi-las, acima).

 E, a este propósito, o Valdemar Queiroz escreveu o seguinte, como comentário no poste P1299 (**);

"Li com muito interesse o seu texto no nosso blogue. Julgo ter conhecido o sr. Manuel Joaquim Prazeres, pois vi alguns filmes em Contuboel e Nova Lamego que deviam ter sido exibidos por ele. Não devia de haver outra pessoa, em 1969/70, a exibir os filmes e até falei com ele. 

"Falámos do critério do preço dos bilhetes: um soldado pagava um valor, o cabo outro valor e assim diferia conforme a patente. Ele dizia-me que havia alguns sargentos e oficiais que tiravam os galões para pagarem menos pelo bilhete. Também falámos da maneira despreocupada como ele se deslocava, de terra em terra, na sua carrinha, com um criado e, apenas, uma pequena espingarda para matar alguma lebre, como ele dizia. Agora, lendo o seu texto, percebemos a razão da facilidade com que o Sr. Manuel Prazeres se movimentava naquelas paragens.

"No meu álbum fotográfico e nas fotos de Contuboel aparece na foto da rua Principal, no lado direito, a carrinha que o Sr. Prazeres se deslocava e noutra foto os cartazes do filme 'Rififi em Paris' por ele exibido." (*)

Eu próprio, Luís Graça,  também já tinha feito, em 16/4/2014, muito antes do livro sair, o seguinte comentário (**):

"Que vidas!... Que histórias de vida!... Manuel Joaquim dos Prazeres só pode ser um descendente direto dos 'lançados', dos grandes aventureiros de Quinhentos, do 'tuga' que ama a África e os grandes espaços, e as suas gentes... E que sabe fazer a ponte entre a natureza e a cultura, a geografia e a história, o real e o imaginário, os bichos e os homens...

"Vi, por certo, algum filme dele, projetado na parede das instalações do comando ou no refeitório das praças, em Bambadinca e, antes, em Contuboel, entre junho de 1969 e março de 1971...

"Que belo texto, Lucinda!... Fico com ganas de ler o livro (...).

"Lucinda, mesmo não sendo tu filha de um combatente (em termos técnicos), és filha de alguém, que amou muito aquela terra, bem como Cabo Verde, e que foi uma testemunha privilegiada de uma época privilegiada... Até pelas figuras que conheceu!... És bem vinda à nossa Tabanca Grande, onde nos tratamos por tu, os camaradas... Mão me levas a mal que o faça, contigo, amiga, isso ajuda a encurtar distâncias... e a seguir a picada a direito... Bom sucesso para o livro!".

Por sua vez, o nosso camarada e escritor Alberto Branquinho também se apressou a saudar a Lucinda e o seu projeto literário. Ele tem memórias vivas dessas sessões de cinema ambulante que chegavam ao mato:

"Olá, Lucinda: Como agora se usa dizer, principalmente entre mulheres (com pedido de desculpas...), é um texto muito 'giro'. Se alguém disser isto do seu texto, considere um insulto. É mais!


"Pois aqui estou para lhe dizer, enquanto este post está 'vivo', que tive oportunidade de conhecer o seu pai em Bambadinca. Só podia ser ele, pois não havia outro, concerteza, calcorreando a Guiné naqueles tempos arriscados, deslocando-se de barco ou nas colunas militares. A Bambadinca chegou de barco (vindo de Bissau?). Montou a tenda de lona e esteve dois ou três dias. Num extremo o projector e no outro extremo a tela/écrã. Os espectadores acomodados sobre a direita e a esquerda da projecção. Havia uns quantos bancos no espaço central, onde ele acomodava oficiais e sargentos.
O problema não era cobrar os bilhetes na porta/abertura que a lona tinha para esse efeito, era controlar/impedir as 'entradas' da garotada entre a lona e o chão, a toda a volta. Ele tinha um ou dois ajudantes, se bem me lembro para esse efeito (e, concerteza, para a montagem da estrutura).
"Lembro-me de estar a projectar um filme francês ( que não era muito antigo e a cópia tinha uma boa imagem) e de repente: pló!,  ficámos às escuras. O seu pai, que estava mesmo por baixo do projector, desatou aos berros contra a garotada, que ria às gargalhadas e fugia. Retirou a manga (extremamente madura) da lente, fez uma limpeza sumária, enquanto emitia uns desabafos, e a projecção continuou até final.

"Gostei que tivesse feito recordar o que atrás escrevo, desejo-lhe felicidades e sucesso para o livro."


3. Vejo, com agrado, que a autora soube  tomar boa nota destas e doutras observações e memórias  (e integrá-las no seu livro), destes e doutros dos nossos leitores, que ainda conheceram o personagem, "Manel Djoquim". Foi o caso, pro exemplo,  dos "djubis" guineenses, Cherno Baldé (Fajonquito) e Vital Sauane (Gabu) (***). 

Tanto um como o outro, não só o conheceram como têm para com ele uma "dívida de gratidão" e guardam  memórias muito impressivas de alguns dos filmes que ele projetou quer em Fajonquito (no norte da Guiné, setor de Contuboel), quer no leste, na antiga Nova Lamego (hoje, Gabu).

Quero aqui voltar a destacar dois desses comentários desses "miúdos", fascinados pelo cinema ambulante do "Manel Djoquim". 

O Vital Suane está grato ao "Manel Djoquim" porque foi ele uma das pessoas que lhe mostrou, indiretamente, a importância que tinha a escola, para um jovem guineense.  Foi o cinema que, de certo modo.  lhe abriu as portas da escola ou o levou até aos bancos da escola:

(...) "Cara Lucinda Aranha: (...) Venho por este meio agradecer ao seu pai, porque eu adorava cinema, era muito novo, estava perto de completar os 5 anos aproximadamente, lembro-me sempre de pedir dinheiro a minha mãe para ir ver os filmes, na maioria das vezes não pagava porque os guardas da Casa Gouveia conheciam-me porque levava leite de vaca para os donos da Casa Gouveia [, em NovaLamego].

"Os filmes eram projectados no quintal da Casa Gouveia, eu não queria ir à escola porque não era tradição na minha família alguém ir para escola, mas estava sempre a perguntar o que se passava nos filmes e, como as pessoas estavam muito concentrados para ler a legenda,  não dava para me explicarem sempre o que se passava. Uum dia disse para a minha mãe que gostaria de perceber o que se passava nos filmes porque ninguém me explicava nada, ela disse me: 'Então chegou altura de pensares seriamente em ir para a escola'... Aceitei de imediato porque percebi de que sem a escola não poderia interpretar os filmes."

"Comecei a ter explicação numa senhora portuguesa que era professora primária, morava ao pé da minha casa, nunca mais abandonei a escola, não sou ninguém,  mas pelo menos sou aquilo que sou graças ao seu pai, talvez se o senhor Manel Djoquim nunca tivesse chegado a Nova Lamego eu seria uma outra pessoa, até poderia ido à escola mas não seria da forma que aceitei e gostei da escola.

"Hoje passado todo este tempo recordo-me dos bons tempos da minha cidade, e como o seu pai nos ajudou a ver o mundo, nem rádio tínhamos em casa, de repente a começar a ver filmes, Tarzan, Sandokan, o Tigre da Malásia, Pierre Brice & Les Barker, como nos ensinou a ver outro lado do mundo através dos filmes... O seu pai era um homem bom, nunca ralhava com as crianças, sempre que notava que as crianças estava a furar a barreira,  fazia de conta que não estava a ver, ele amava a sua profissão, gostava do povo, sentia o povo, com os seus calções que ficaram eternizados mesmo depois da sua partida, calções de Manel Djoquim." (...)

Outro testemunho emocionado é o do Cherno Baldé (***):

(...) Eu conheci o Sr. Manuel Joaquim desde os meus 8/9 anos de idade em Fajonquito. Ele vinha à nossa aldeia, pelo menos, uma vez, em cada 2/3 meses, no seu velho camião carregado da sua máquina de sonhos para nos alegrar, e foi graças a ele que fomos descobrindo grande parte da cultura ocidental estilizada em gestos ousados, olhares atrevidos, carícias públicas e mil pedacos de um universo que entrava pouco a pouco dentro da nossa forma de ser e estar na vida.

"Pessoalmente, para o resto da minha vida estaria marcado pela postura e coragem dos actores (Cowboys e Índios indomáveis), o que, no fundo, era muito parecido com aquilo que nos tentavam inculcar nas nossas cerimónias iniciáticas designadas de Fanado tradicional.

"Dele ainda recordo-me dos seus enormes calções, meias esticadas até aos tornozelos e chapéu de abas largas, tipo Cipaio. A certa altura, um dos seus ajudantes era o Camões (zarolho) e por isso acreditavámos que com esta limitação visual podiamos sempre aproveitar para entrarmos sem que ele nos visse. Normalmente eramos apanhados e soltos de seguida dentro do recinto fechado para a projeção do filme.

"Naquela idade não precisávamos de cadeiras, e quando a projeção se iniciava, pouco a pouco, enchíamos o recinto, acabando por nos sentarmos mesmo por baixo do pano das imagens, importante mesmo era entrar e assim poder participar, no dia seguinte, de mais um episódio marcante, uma história de vida que só voltaria a acontecer passados 2 ou 3 meses.

"Quem não ficava contente com a chegada do Manel Djoquim eram as nossas pobres mães, pois sabiam que ele vinha, por certo, roubar, através dos seus filhos as pequenas economias conseguidas durante semanas ou meses com muito suor e canseira. (...)


4. Está visto que a história do nhô Manel Djoquim, caçador, fotógrafo, homem dos sete ofícios, empresário de cinema ambulante em Cabo Verde (1929/1943) e depois na Guiné (1943/73), finalmente posta em biografia (ficcionada) pela sua filha Lucinda Aranha Antunes (que só tem vivências indiretas de Cabo Verde e da Guiné), dava um belo filme como o inesquecível "Cinema Paraíso" (1988), escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore, com música de Ennio Morricone, filme que já vi e revi três vezes.

De resto, como já aqui sublinhámos diversas vezes, tanto Cabo Verde como a Guiné desses tempos têm "matéria-prima" para grandes filmes... Oxalá os nossos realizadores (portugueses, guineenses, cabo-verdianos...) tivessem condições para pegar em histórias, algo riocambolescas mas ternurentas como esta... Estamos a falar do tempo colonial e da guerra colonial, tempos que pura e sinplesmente não podem ser "diabolizados", fazendo tábua da "petite histoire" dos homens...

Manuel Luís Lomba também se recorda do "Manel Djoquim" e faz-nos esta confidência, algo insólita, em comentário, de 18/12/2018 ao poste P19302 (***):

(...) "No meu tempo [, 1964/66,]  dizia-se que o PAIGC concedia a livre circulação a duas individualidades da Guiné, no entanto não alinhadas: ao Dr. Maurício, pela sua missão de erradicar a lepra,  e ao Manuel Joaquim, no seu negócio de projecção de filmes, que também serviam para 'animar' a malta do PAIGC. 

"Não só não os atacavam como não raro lhe apareciam a desviá-los das minas A/C [, anti-carro]. Nem a carrinha Peugeot do Dr. Maurício nem o Ford 'machimbonbo'  do Manuel Joaquim alguma vez foram molestados. Lembro-me do Manuel Joaquim circular sem escolta entre Bafatá, Nova Lamego e terá ido a Bajocunda e Canquelifá. Conheci a Dr.ª Lucínda num encontro da Tabanca Grande em Monte Real e aproveito para a felicitar pelo seu livro e desejar-lhe Boas Festas" (...).



"Manel Djoquim"... Cortesia
de Lucinda Aranha Antunes (2018)
5. Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977) é a figura central deste livro, de difícil classificação quanto ao género: Romance ? Sim, mas também biografia, historiografia, memórias de família...

A autora. filha do "Nequinhas" (nominho do empresário e homem do cinema, homem dos sete ofícios) disse-nos que se tratava de uma "biografia ficcionada". Mas há muitos factos e personagens que aqui se evocam e descrevem, que estão suficientemente documentados pelo álbum fotográfico do arquivo da família, pela pesquisa documental e pela memória oral.

Não é apenas a biografia, mais ou menos romanceada, de um pequeno empresário, "self made man", africanista, o último dos africanistas, que leva o cinema a todos os recantos da Guiné entre 1946 e 1971, depois de ter vivido e trabalhado duas décadas em Cabo Verde, é também a saga de sua família (ou famílias), narrada, com muita ternura, imaginação  e humor,  pela filha mais nova do 2º casamento (com a Julinha), a Lucinda.

A Lucinda,  no livro, e se não erro na minha leitura, aparece como um "alter ego", a Maria do Carmo, a "rádio Andorra" (p. 14), "sempre sintonizada nas últimas notícias,  difundindo dramas que chegavam invariavelmente aos ouvidos do pai [, de sete filhos, 1 rapaz e 6 raparigas, de dois casamentos,]  e resultavam em novos dramas,  novos sermões, novos castigos"... Um pai ausente e presente, à distância, que regressava todos os anos, a Lisboa, na época das chuvas, deixando em Bissau, em repouso, por escassos meses,  a sua velha Ford e a tralha toda do cinema ambulante. Aproveitava a estadia em Lisboa não só para compensar a família das longas ausências no mato como para escolher e alugar. às distribuidoras, os filmes da próxima temporada.


Guiné 61/74 - P20557: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXXIII: Joaquim Pereira da Silva, maj art (Galegos, Penafiel, 1931 - Pelundo / Jolmete, Guiné, 1970)




1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à esquerda], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]




Penafiel > Galegos > Novembro de 2006 > Jazigo da família Pereira da Silva > A urna, coberta com a bandeira nacional, contendo os restos mortais de Joaquim Pereira da Silva, um dos três majores que morreram em 20 de Abril de 1970, na sequência da Operação Chão Manjaco. [Vd. poste P1500, de 6 de fevereiro de 2007 (**)].

Foto (e legenda): © Afonso M. F. Sousa (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Sobre a tragédia do Chão Manjaco (em que foram barbaramente assassinados pelo PAIGC, em Jolmete, em 20 de abril de 1970, três oficiais superiores, um alferes miliciano, dois condutores de jipe e um tradutor, nativos, todos desarmados), temos dezenas de referências no nosso blogue. Ver em especial:

Três majores
Major Magalhães Osório
Major Passos Ramos
Major Pereira da Silva

(**) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1500: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (5): Homenagem ao Ten-Cor J. Pereira da Silva (Galegos, Penafiel)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 – P20556: Memórias de Gabú (José Saúde) (90): Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal. (José Saúde)


Guiné > Região de Gabu > Carta de Nova Lamego (Escala 1/50 mil) (1961) > Posição relativa de Nova Lamego (hoje, Gabu), e as saídas para Bafatá (a sudoeste), Pirada (a nordeste) e Piche (a leste)...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal


O vigiar noturno de secções de camaradas que garantiam a segurança 


As entradas, ou saídas, das estradas que ligavam Nova Lamego a Bafatá, a Pirada e a Piche, eram diariamente vigiadas por secções de camaradas que ao longo da noite asseguravam a segurança dos companheiros que no seu santo leito descansavam as suas almas, não obstante a certeza de que ao longo da noitada estes serem de quando em vez acordados pelos estridentes sons que a velha Daimler lançava para o infinito.

Esta missão diária, obviamente estendível à competência taciturna de um breu que escondia quase sempre incertezas, competia ao sargento-dia que utilizava amiúde essa tal obsoleta Daimler para se deslocar às frentes operacionais que entretanto haviam sido destinadas para o cumprimento do dever militar.

E se a entrada de Pirada era da competência de uma secção de milícias guineenses, o mesmo não sucedia com as vigílias das estradas de Bafatá e Piche. Estas eram da competência de uma secção de camaradas pertencentes ao grupo que normalmente eu e o Rui, ambos rangers, comandávamos.

Certo, porém, é que a maior parte da noite a vigia concentrava-se maioritariamente na estrada que tinha como rumo Bafatá. No lado oposto, ou seja, na saída para Piche, precisamente onde se localizava a Fonte da Várzea do Cabo, local de abastecimento de água ao nosso quartel, as vigilâncias eram mais espaçadas.

Mas as prevenções noturnas do sargento-dia estendiam-se, também, pelos limites da povoação. Ora era para precaver alguma incursão à pista velha de aviação por parte de um qualquer endiabrado prevaricador, local onde o pessoal das antiaéreas se instalavam, ora com uma visita surpresa ao âmago do burgo civil tendo em vista o assegurar uma maior segurança à população, .

A vigilância da estrada que se dirigia a Pirada era da competência dos milícias. Aliás, a este corpo militar pertencia o Jaló, o tal soldado dúbio, pachorrento e pedinchão de que em tempos vos falei e que após a tomada do poder territorial pelo PAIGC logo gritou bem alto “aqui d’el rei” e lá se safou a uma presumível chacina de que foram vítimas muitos dos seus anteriores camaradas.

Aconteceu que uma bela noite pedi ao condutor da Damler que deixasse a antiquada máquina de guerra longe do lugar onde a secção de milícias estava de vigia, e lá fomos a pé ao encontro dos soldados guineenses que, em princípio, estariam alerta para um qualquer movimento estranho que porventura ocorresse.

Alertei para a delicada aventura, pois o breu da madrugada escondia eventuais percalços, logo impunha-se uma aproximação cuidadosa. Passos e mais passos em frente e de reação dos milícias nada. A imprevisibilidade do silêncio dava obviamente um rol de cuidados redobrados.

O certo é que chegámos ao local e qual não foi o nosso espanto quando todo o pessoal ressonava, sonhando quiçá com a paz dos anjos e nada se apercebendo da nossa aproximação. De facto tinham as armas ao seu lado, é certo, mas estas, tal como os seus “patronos”, descansavam mas ao abandono. Tive para sacar uma e pirar-me de imediato, todavia receei que o atrevimento desse presumível disparate resvalasse para o torto. Receei e “travei” a intenção que entretanto me ia na alma.

Falando baixinho com o camarada que me acompanhou eis que num repente o Jaló acordou mas assustando-se com a nossa inesperada presença logo disse: “furrié mi disculpe”! Entretanto os outros camaradas deram uma volta ao corpo e continuaram a navegar no mundo da utopia.

Claro que não houve estrilhos, apenas alertei que a situação por mim observada jamais voltaria a acontecer, pois aquela entrada da estrada que vinha de Pirada apresentava-se perigosa. Com a voz embargada o Jaló penitenciou-se e o perdão foi aceite.

Neste contexto, o assunto "morreu" ali, mas a camarata onde o pessoal da milícia dormitava apresentava-se, naquela noite, como um sublime palco onde os “anjinhos descansavam numa profunda paz”.

O Jaló atrapalhado, acordou os camaradas e botando palavra em fula, lá fez a sua palestra aos camaradas que entrementes abriram as pestanas e depararam-se com a inesperada visita do furriel numa noite em que o luar iluminava e o imprevisto merecia um cuidado literalmente redobrado.

Coisas da guerra numa Guiné onde a imprevisibilidade do instante seguinte se apresentava sempre como uma incógnita!... 

 

Um abraço, camaradas

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. também os postes: 

30 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 – P20293: Memórias de Gabú (José Saúde) (89): Recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. A sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra. (José Saúde) 

Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,

Aqui se continua a recensão do Sargento Lobato, prisioneiro em Kindia, Guiné Conacri, focada na edição de 1995. Ele é o prisioneiro de guerra que está na cela n.º 7, tem um longo ano de isolamento, descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier: 

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: 
Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2)

Beja Santos

Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

“A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”.

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

“Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”.

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

“Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”.

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

“Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”.


Major António Lobato no programa Prós e Contras, em 2007, com a devida vénia

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente. Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

“A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:
- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.”

No último texto iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.



A última edição que conheço desta obra data de 2014, DG Edições, Linda-a-Velha.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 6 de janeiro de 2020> Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20554: Questões politicamente (in)correctas (50): as grandes desmatações à volta de aquartelamentos construídos de raiz como Mansambo, e ao longo da rede viária, com o apoio das populações às NT (Torcato Mendonça, ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada > Concentração de pessoal e viaturas no quartel de Mansambo. Não sabemos que são os tipos de chapéu colonial, assinalados com um círculo a vermelho: os da direita, junto a militar de Mansambo em tronco nu, podem ser ser cipaios, da polícia administrativa ou até adjuntos do régulo de Badora... Junto à viatura, de calção, pode ser o condutor... Foto do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada >  Tropas, a montar segurança,  e civis, capinadores, na estrada Mansambo - Bambadinc. À esquerda, um homem, ocm cabeça colonal, que pode estar a enquadrar os civis e que poderia ser um "cipaio" (polícia administrativa).

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Zona Leste >  Região de Bafatá Sector L1 (Bmabadinca) > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento, que foi construído de raíz pela CART 2339 (Mansambo, 1968/69).  À volta foi tudo desmatado. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole. Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita. Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. 

"Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339. Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água" ( Carlos Marques dos Santos, 1943-2019)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]© 



1. Excerto do poste P9541 (*), da autoria do nosso colaborador permanente Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), que participou tanto na Op Lança Afiada como na Cabeça Rapada. e que infelizmente por razões de saúde tem estado afastado do nosso blogue e do nosso convívio:


Não é de assuntos de barbearia que venho falar. Não. Vou tentar contar-vos, sem grandes pormenores, a maior operação de Acção Psico Social – chamemos-lhe assim – a que assisti. Bem planeada e meticulosamente preparada por quem sabia.

Tudo com o aval do Comandante-chefe e teve o nome de “Operação Cabeça Rapada”. Desenrolou-se de finais de Março a meados de Maio de 69, talvez por seis fases ou seis operações [, na realidade, quatro.]

O objectivo era capinar – cortar e desmatar – toda a vegetação numa faixa de trinta ou quarenta metros, talvez mais, para lá do arame que delimitava o perímetro de Mansambo e igualmente, em largura, uma faixa similar para lá das bermas das estradas (picadas) de Mansambo a Bambadinca e daqui até ao Xime. Só nas zonas mais propícias a emboscadas.

Outras desmatações menores,  à volta de algumas Tabancas, por exemplo Amedalai e outros locais, sofreram igual corte.

Estas Operações queriam vincar três pontos:

(i) dizer que o IN tinha sido derrotado na Operação Lança Afiada [, 8.19 de março de 1969];

(ii) mostrar que as populações estavam com as NT;

(iii) fortalecer o slogan “Por uma Guiné Melhor”.

Análise despretensiosa e sem petulância minha. É uma não análise… talvez.

As populações envolveram-se fortemente depois do excelente planeamento. Muitas centenas, talvez um ou dois milhares de civis, muitos militares  [na realidade, 7 mil, na Op Cabeça Rapada I], e uma logística enorme: viaturas civis e militares, alimentação e uma bem montada segurança, próxima e afastada, para dissuadir ou minimizar o efeito de qualquer ataque e, também, colaborar activamente com apoio rápido à resolução de algum acidente e incidente.

Não seria difícil ao IN disparar umas morteiradas e provocar o pânico. Uma ou duas granadas eram suficientes. Não o fez e nós não sabíamos, quantos daqueles homens eram simpatizantes deles e trabalhavam naquela desmatação para obterem informações. Havia certamente.

Lembro-me da enorme confusão da manhã do primeiro dia. Eram muitas centenas e centenas de homens e suas catanas a chegarem a Mansambo. Organizar tudo seria tarefa difícil mas foi conseguido.

A nossa missão, a do meu Grupo, era outra e rapidamente saímos do aquartelamento para a segurança. No fim de toda esta Operação, faseada e por tanto tempo, quando acabou uma dúvida, em mim, se levantou: 
- Aquela desmatação não iria abrir o campo de tiro ao IN?

Caí, em meados de Maio, numa forte emboscada no Pontão do Almami e, em inicio de Abril, já tinha havido outra no mesmo local. Felizmente as árvores que ladeavam a estrada foram poupadas.

No dia 28 de Maio de 1969 a sede do Batalhão, em Bambadinca, foi atacada pela primeira vez. As tabancas de Taibatá, Moricanhe e Amedalai, sofreram igualmente ataques.

Era a represália do IN. Teve auxílio vindo do Sul e do Norte? Certamente. Mas provava que estava vivo e não fora aniquilado na Lança Afiada e esta não respeitara certas regras básicas de contra guerrilha. O IN não foi aniquilado. Tanto assim que começou a bater forte, a tentar infiltrar-se e a exigir um esforço maior de contenção das NT. 

Só em meados de Agosto. o IN veio a sofrer um forte revés e ficou decapitado - como sinónimo de sem comando [, o comandante Mamadu Indjai, gravememte ferido em emboscada montada por forças da CART 2339].

Nada de relevante ou muito grave aconteceu até ao fim da nossa Comissão, em finais de Novembro de 1969. Emboscadas, ataques a tabancas e aquartelamento, umas baixas sempre lastimáveis e uma ou outra operação igual a tantas outras. A rotina habitual com ou sem desmatações.

Embarcamos em 4 de Dezembro de 1969 [, de regresso a casa].

2. Em comentário ao poste P9541 (*) , o nosso amigo e camarada Henrique Cerqueira [, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe  e Bissorã, 1972/74; vive no Porto] disse o seguinte:

Camarada Torcato:

A simplicidade do tema é na realidade um grande aglutinador das nossas lembranças.

Tambem participei em proteções a grandes grupos de capinadores na região de Bissorã. E apareciam civis aos magotes, pois pudera, o dia era pago pelo Estado Português.embora que em géneros (arroz).

Na realidade a capinagem dava segurança quando estavámos no quartel e quando regressavamos. Mas, quando tínhamos que sair em patrulhamentos,  que era quase sempre ao caír da noite, eu só me achava seguro depois de nos embrenharmos no mato.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9541: Nós da memória (Torcato Mendonça) (12): Cabeça Rapada - Fotos falantes IV

(**)  Último poste da série > 12 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20551: Questões politicamente (in)corretas (49): no 1º ano do consulado de Spínola, ainda havia ou não indícios da prática de trabalho forçado (, extinto por decreto, em 1961), por parte da administração e até do exército ?