sábado, 17 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21458: Os nossos seres, saberes e lazeres (416): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Despeço-me de Viana com nostalgia, foi erro palmar vir por tão pouco tempo, não acontecerá na próxima, impunha-se percorrer todas estas freguesias que conheci durante 14 anos a ler com a maior regularidade o Aurora do Lima, às vezes tropeçava no nome de Lanheses, o meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo corrigia prontamente. Visita de médico, como soe dizer-se, mas que deu para cirandar pela cidade e contemplar alguns dos seus pontos altos como Santa Luzia, a Praça da República, a Praça da Liberdade, calcorrear o beira-rio, confirmar que a Igreja Matriz e a Igreja da Misericórdia têm méritos absolutos para a classificação de monumentos nacionais, as imagens falam por si. Não houve circunstância para ver onde estão pendurados os desenhos de Couto Viana que ofereci à cidade, ficará para a próxima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11)

Mário Beja Santos

Foi boa a escolha, ainda me ocorreu passarinhar ao acaso pela Viana moderna, mas a Igreja da Santa Casa da Misericórdia é um tesouro inesgotável. Leio no folheto, oferecido com o pagamento da entrada, que em 1526, por deliberação municipal, foi decidido edificar a casa e a Capela da Misericórdia na grande praça que se abria junto às muralhas da vila, então chamada Campo do Forno e hoje Praça da República, face ao novo edifício do Senado, construído cerca de 1505. O caráter de centro cívico desta praça acentuou-se com a construção do chafariz monumental, em 1554. Rapidamente as principais famílias nobres e burguesas começaram também a construir as suas casas nesta praça. Mais se diz que em 1714 a capela original estava num adiantado estado de ruína, foi decidida a sua demolição e a construção desta, o risco foi encomendado ao engenheiro-militar Manuel Pinto de Vila Lobos. A fachada da Misericórdia é extremamente original, mas o exterior da igreja é muito simples, em flagrante contraste com a exuberância do interior. Avança-se e é este espetáculo de riqueza e prodígio barroco.
O retábulo do altar-mor é assim, em talha dourada, classifica-se como Barroco pré-joanino, trabalho situado em 1710, tudo é simetria num belo encaixe de azulejaria.
As paredes desta igreja estão totalmente revestidas de painéis de azulejos, o seu autor foi Policarpo de Oliveira Bernardes, um dos principais nomes do ciclo dos mestres azulejistas barrocos. Representam as catorze Obras da Misericórdia ilustradas por passagens bíblicas (as espirituais do lado do Evangelho e as corporais do lado da Epístola) e, no painel do arco central, apresenta uma magnífica imagem da Senhora da Misericórdia que, com o seu manto aberto, protege a humanidade. O programa barroco desta igreja tem a ver com as talhas, os azulejos e o teto, bem como a fabulosa imaginária. O teto, como se vê na imagem da abóbada, tem medalhões que apresentam a Santíssima Trindade, a Assunção de Nossa Senhora e a Fuga para o Egito. As imagens são notáveis: Sant’Ana e S. Joaquim; A Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel; a Senhora da Boa Morte; S. João Baptista, … Nos nichos laterais sobressai a imagem do Senhor da Cana Verde. Infelizmente, só depois de sair é que atinei na importância do órgão, obra de 1721, em duas caixas, foi tudo fruto da pressa, ainda quero cirandar pelo casco histórico, ver a Praça da Liberdade com obras arquitetónicas de gabarito e despedir-me nessa estação ferroviária que data de 1882, Viana já era então uma grande cidade.
Era inevitável contemplar a Igreja Matriz, outro monumento nacional. Importa dar a palavra a José Hermano Saraiva, na sua obra O Tempo e a Alma: “Podiam pôr lá um letreiro: aqui nasceu Viana. Havia lá um vasto rochedo sobre o qual D. Afonso III mandou colocar a primeira torre; junto dela nasceu a primeira igreja. O que hoje se vê é o templo já grandioso, mandado erigir no século XV quando Viana já era vila notável. O pórtico gótico tem três arquitraves, e os colunelos abrangem seis belas estátuas de apóstolos. O conjunto tem uma riqueza escultórica excecional. Duas espessas torres reforçam o volume monumental do templo”. E o investigador mais à frente fala-nos da comunidade judaica aqui residente, fugitiva da Catalunha, foi próspera e altamente dinâmica, andou pela Terra Nova, negociava entre os portos da Galiza e da Irlanda. Depois, foi aquele desastre que nós conhecemos, a sua expulsão, a irreparável perda no nosso sentimento de tolerância e de ecumenismo, só muito mais tarde reabilitado.
Já se falou no Alto Minho de Carlos Ferreira de Almeida, a descrição do passeio que ele faz dentro de Viana é empolgante. Depois de nos dizer que a cidade é um paradigma no desenvolvimento das nossas póvoas marítimas, medievais e modernas, que aqui se mercadejou vinho e sal, panos e bacalhau, que a cidade está marcada por séculos de História, diz mesmo: “O tecido urbanístico do espaço medieval de Viana, razoavelmente quadriculado em talhões retangulares, mostra uma ordenação que lhe adveio e foi possível pelo facto de ter sido uma fundação nova, projetada para a vida urbana, e que as ampliações do século XIV não descuidaram. Dois grandes eixos a entrecruzam. Um, na direção norte-sul, unindo as respetivas portas, é hoje a Rua Sacadura Cabral, e o outro, entre as saídas da Ribeira e de S. Pedro, é um arruamento dito, à maneira galega ou castelhana, Rua Grande, continuado na de S. Pedro”. O estudioso vai por aí fora empolgado, fala-nos de casas nobres, de igrejas, devoções e depois lança-se sobre os formosos arrabaldes da Ribeira Lima, ao tempo em que publicou o seu trabalho, em 1987, referindo-se à Viana moderna exaltou os estaleiros navais, hoje mundo passado.
Houve tempo de folhear a Rota das Camélias do Alto Minho e ganhar a perceção que há uma Viana florida, os ajardinamentos falam por si. Aqui fica uma imagem da natureza em glória.
Estamos a findar, avança-se para a Praça da Liberdade e toma-se nota do que vem escrito numa publicação autárquica “Viana fica no coração”, referindo que a revista londrina Wallpapper considerou Viana uma Meca da arquitetura, clara alusão à Praça da Liberdade de Fernando Távora, à Biblioteca de Siza Vieira, não descurando o Centro Cultural de Souto Moura. É a Viana com as trombetas apontadas para o futuro, a escultura harmonicamente assente para projetar os edifícios, é o diálogo perfeito entre a Viana do passado e os preparativos do amanhã. Como não se pode ficar insensível ao equipamento de Souto Moura caraterizado pela transparência entre a cidade, o rio e o interior do edifício. Que beleza, percorre-se este chão de futuro e até nos esquecemos de que ainda há um pesadelo chamado Prédio Coutinho, uma aberração que parece não ter fim, elemento mais perturbador não pode haver na panorâmica da cidade.
Praça da Liberdade, Avenida dos Arquitetos

E até à próxima, Viana, diante desta escultura que simboliza o arraial minhoto e o seu pujante folclore, tendo como pano de fundo a estação ferroviária que certifica a prosperidade da cidade no fim do século XIX, regressamos a Ponte de Lima, o termo da viagem está próximo.
Estação ferroviária de Viana do Castelo

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21438: Os nossos seres, saberes e lazeres (415): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21457: (Ex)citações (377): As visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)


Nhala, 10 de Março de 1974 - D. Cecília Supico Pinto

© Foto: António Murta - Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 15 de Outubro de 2020 a propósito das visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné:

Camaradas e amigos da maior tabanca do País,

Queiram receber um grande abraço de amizade castrense, e não só, neste meu retorno ao vosso convívio.

Li com atenção o Poste 21442 (*) em que se fala das visitas da D. Cecília de Supico Pinto à Guiné, o qual me suscita algumas achegas, reportando-me ao tempo da minha comissão de serviço militar na Guiné Portuguesa, entre 30 de Julho de 1967 e 06 de Junho de 1969, período em que a minha CART 1742 esteve colocada no sector de Nova Lamego, calcorreando toda a zona Leste.

Diz-se no texto que a senhora foi várias vezes (4) a Madina do Boé,  Buruntuma e Nova Lamego, palavras dela, mas no período de 1967 a Maio de 1968 a senhora não passou por Madina, até porque para lá chegar era só por picadas e fazendo a travessia do rio Corubal no Cheche na célebre jangada de má recordação. 

A aviação (DO) não voava para lá, só voavam para Madina ou Béli os T-6 e os Fiat G-9 para segurança das colunas auto, aquando dos reabastecimentos às companhias lá colocadas, ou quando era pedido apoio para bombardear as zonas circundantes ao aquartelamento.

Em relação a Nova Lamego, no período em que lá estive até 13 de Abril de 1968, nunca vi a senhora por lá, já em Buruntuma esteve presente, e eu constatei isso mesmo, foi a 04 de Maio de 1969, dia de má memória para a CART 1742 pelo falecimento do camarada Caridade. Nesse dia, quando regressava ao quartel com um carregamento de 13 bidões de água para abastecimento da companhia, caiu abaixo da viatura que transportava os bidões, ficando muito maltratado.

De referir que o Caridade foi evacuado para o HM 241, onde infelizmente chegou já cadáver, no DO-27 que levou para Bissau a D. Cecília Supico Pinto.

Um abraço para todos, e até nova oportunidade. (**)
Abel Santos.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 11 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21442: Fotos à procura de... uma legenda (128): Em maio de 1969, ao tempo do BCAÇ 2852, a Cilinha terá pernoitado em Bambadinca?

(**) Último poste da série de 16 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21454: (Ex)citações (376): As nossas comuns raízes telúricas, do Nordeste Transmontano à Estremadura e ao Alentejo (Francisco Baptista / Fernando Gouveia / José Belo / José Colaço / Luís Graça)

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21456: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (15): Obrigado a todos pelos parabéns que me deram no meu aniversário... Estou cá pelo "Puto", na minha "ponta" nas margens do Vouga, em Águeda, em "teletrabalho"


Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > Hospital > 25 de abril de 2020 > 
 o Patrício Ribeiro, de máscara, num sessão de formação:... 
É que a pandemia de  Covid-19 também já lá chegara...

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2020) Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Desde finais de abril de 2020, que não temos sabido notícias do Patrício Ribeiro. Há dias fez anos e demos-lhe os parabéns (*). Agradeceu-nos e aproveitou para fazer a "prova de vida" (**).

É de recordar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros está a dar  apoio aos viajantes  portugueses através do Gabinete de Emergência Consular (GEC) em funcionamento 24 horas por dia (+ 351 217 929 714 | + 351 961 706 472 | gec@mne.pt). Para saber mais, clicar em
Covid-19: viagens para Portugal - Atualização.


Obrigado a todos! Sim, ainda por cá andamos.

Luís, há uns meses o nosso cônsul em Bissau, telefonou a informar que tinha que me retirar da Guiné, porque ia um avião a Bissau apanhar os que estavam em risco, que eu era velho, que bebia muitas cervejas e que as tinha que deixar para os mais novos.

Deixo lá terminado a instalação de água e energia em 9 Hospitais Regionais, por todo o país. Lá vim, no "quarto" transporte que o Estado Português meteu à minha disposição, para me retirar de África...

Como não devia estar junto da família em Lisboa, peguei no carro às duas da manhã e já era proibido viajar... Confinei-me nas margens do Vouga, fiz a minha horta, as vindimas, apanhei as castanhas e nozes.

Tenho estado a passar uns bons tempos, na minha "Ponta". Como na Guine este ano ainda está a chover muito, continuo em teletrabalho, a fugir da coisa...

Patrício Ribeiro

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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P21455: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (23): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux continua a revelar-se de uma curiosidade insaciável, deu agora em querer saber onde o seu amoroso viveu a infância, e esse amoroso falou-lhe do Bairro de Alvalade e do Campo Grande. Ela abriu muito os olhos quando ele lhe disse que a rua onde habitava tinha de um lado prédios, atravessava-se o alcatrão e podia-se passear na Quinta do Visconde de Alvalade, a petizada ali fazia baloiços e correrias. Um dia de 1953 chegaram as máquinas que fizeram a terraplanagem da Avenida dos Estados Unidos da América , período febril e uma estranha convivência entre o século XIX e o século XX, ainda havia carroças e equídeos a ferrar, mercearias à moda antiga, os pregões das peixeiras, o gado a correr pelo Campo Grande, muitos dos meninos da escola, de pé descalço e roupa remendada, vinham das alfurjas de Telheiras, adoravam comer na cantina, o banco alimentar da época, uma sopa bem adubada, torresmos com um quarto de pão escuro e uma peça de fruta, e quando findavam as aulas havia mais pão com marmelada e um quartilho de leite, corriam pelo Campo Grande fora em festa, se o jantar fosse muito pobre, não morreriam à fome. E enquanto se conta esta história, hoje inverosímil para os nossos netos, há mais episódios de guerra, assoma o grotesco de um encontro com um comandante-chefe que repontava com aquela mistura existente em Missirá entre moranças, abrigos e casernas, era assim que vinha desde o princípio da guerra e até o improvável aconteceu, puniram e louvaram o alferes de Missirá e Finete quase no mesmo dia, a bizarria ficou como exemplo do dito alferes sobre o estranho conceito de justiça com que os homens do mando se enganam ou encadeiam.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (23): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse,
Sinto-me frustrado com o cancelamento da reunião de Bruxelas, postergada para meados de janeiro, pode até dar-se o caso de regressarmos os dois juntos de Lisboa para aí. Entretanto, sem qualquer aviso prévio, a Confederação Europeia de Sindicatos organiza um colóquio europeu daqui a dois fins-de-semana em Veneza, pedem-me uma comunicação sobre o futuro da cidadania do consumo, já sonho com a possibilidade de tu apareceres por ali como intérprete… Não te rias, a roda do fortuna anda e desanda, prega-nos surpresas. Fiquei admiradíssimo com o teu pedido de te dar informações sobre a região em que vivi na minha infância, o Campo Grande.
Tens aqui para te deliciares o livro que Manuela Rêgo escreveu sobre o afamado jardim onde figuras da realeza passeavam a cavalo, perto do Jockey Club, um hipódromo que ainda funciona, o jardim foi muito belo e muito bem tratado, eu vivia numa rua do Bairro de Alvalade, popularmente conhecido por o Bairro das Caixas (de Previdência, vigorava uma política corporativa do Estado Novo), atravessava o Campo Grande em direção ao colégio na Rua de Malpique, iremos depois passear os dois, mostrar-te-ei o que era esta região de Lisboa em 1950, quando cheguei ao Bairro de Alvalade, ainda havia palacetes e casas apalaçadas, mais tarde construiu-se a cidade universitária, havia um velho retiro, género de casa de pasto onde se podia cantar o fado, o Campo Grande começava junto da estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, tinha muito mais de um quilómetro, atravessava a Avenida Alferes Malheiro e chegava até a um campo de futebol de terra batida onde jogava o Sporting Clube de Portugal, um dos mais importantes do país. A habitação à volta sofreu grandes alterações. Desapareceu completamente o mercado geral de gados junto de Entrecampos, que faz ligação ao Campo Grande, transferiu-se para ali uma feira, na minha adolescência apareceu um teatro com o nome de um artista muito popular, Vasco Santana, e havia fábricas de massas alimentícias e de cosméticos, pátios, restaurantes, um museu dedicado a um génio da caricatura, iremos lá, Rafael Bordalo Pinheiro. Ainda sou do tempo de ver manadas de bois a caminho do mercado geral de gados, no fim do Campo Grande funcionava o Asilo de D. Pedro V, se estiver bom tempo, quando tu vieres passar as férias de Natal comigo, vamos andar de barco no lago, tomaremos uma bebida quente numa cafetaria onde vais ver uma peça de cerâmica lindíssima, feita por um dos maiores artistas plásticos portugueses, Júlio Pomar. Vivi no Campo Grande e Alvalade entre 1952 e 1967, ano em que fui para a tropa, só voltei em 1970, a minha mãe por ali ficou, aí irá falecer em 1982, adquiri a casa, houvera entretanto grandes mudanças, o jardim do Campo Grande mingou, mudou a configuração da habitação, há grande desleixo no ajardinamento, é pena. E estou seguro que vais adorar o texto da Manuela Rêgo e as imagens que ela escolheu do século XIX até 1995 são bem esclarecedoras da evolução deste jardim histórico que agora coabita com a área universitária que, curiosamente, no caso da Faculdade de Ciências, está bem juntinha do lago dos barcos, há ali perto um centro comercial e um restaurante panorâmico, eu vou mostrar-te.
Lago do Campo Grande, antigamente
Imagem do Bairro de Alvalade
A Lisboa dos anos 1950 expandiu-se pelo bairro de Alvalade, arquitetura arrojada de Jorge Segurado

Vamos então continuar com aqueles dois primeiros meses de 1969. Recordas patrulhamento na zona de Gambiel, houve para ali trocas de morteiradas e bazucadas, a semana seguinte, com a maior discrição, reuni-me na minha morança com Quebá Soncó, o meu guia, olhámos para a carta e perguntei-lhe se o terreno entre Sancorlã e Quebá Jilã era firme, muito arborizado, se tinha savana, se podíamos progredir dentro da mata. Para minha surpresa, Quebá não parecia temeroso, era a favor de andar dentro de uma mata que ele conhecia bem, não podíamos atravessar o rio Passa, devíamos aproximar-nos de Salá, ladear o rio de Quebá Jilã e visitar o local onde houvera uma tabanca. E assim foi, saímos de madrugada, sempre dentro da floresta cerrada, é um espetáculo de beleza inexcedível, a natureza entregue a si própria, árvores mortas cheias de musgo, o sol a filtrar-se por aquela ramagem densa, os javalis, os macacos, as aves em movimento e depois um silêncio espetral como se deambulássemos no princípio do universo, dentro daquela verdura genesíaca. Quebá Soncó mostrou-me o rio Passa e como ele era profundo, se acaso pudéssemos atravessar sem perigo umas horas depois estaríamos perto de um santuário do PAIGC conhecido por Sara-Sarauol. Então infletimos para Quebá Jilã, sempre muito protegidos pelo denso arvoredo, mas havia savana e subitamente vejo correr Mamadu Camará em direção a uma palmeira, dela saltou um jovem, aí de uns 17/18 anos, com o terror estampado no rosto, procurámos serená-lo, conformou-se, na falta de algemas foi preso a uma corda que se enrolou igualmente no tronco do soldado Dauda Seidi, decidi rapidamente regressarmos a Missirá e depois uma coluna levou o jovem prisioneiro a Bambadinca. Nessa noite, ouvimos fogo de reconhecimento na região de Belel, terão percebido que o jovem fora capturado e pensavam que estávamos por aí emboscados.

Dias depois, também inopinadamente, recebemos a visita do Governador e Comandante-Chefe, confesso-te que fiquei plenamente desapontado do princípio ao fim pelo tom que ele usou comigo, os ralhetes e admoestações, a insinuação de punições, só via abrigos velhos, seguramente inseguros, era inconcebível ver aquela mistura entre tropa e população, como é que eu consentia que os soldados andassem vestidos à civil ou em tronco nu, parece que ele não via as palmeiras cortadas que tínhamos trazido da região de Cancumba, puxadas com corrente, vieram rebocadas por Unimog, cheirava mesmo a palmeiras cortadas, tinham sido serradas uma hora antes, havia dois abrigos a céu aberto. Implicou com as cascas de batata bem expostas à porta da cozinha, expliquei-lhe que o cozinheiro andara a trabalhar no corte das palmeiras e que estava à lufa-lufa a preparar um atum com batatas, eu sairia mais ou menos dentro de uma hora para Mato de Cão, era essa a razão para que o senhor brigadeiro me encontrasse em Missirá a acompanhar obras. E se dúvidas subsistissem, bastaria que o senhor brigadeiro contatasse o comandante de Bambadinca a quem eu escrevia regularmente pedindo mais materiais de construção, ele próprio já visitara o quartel e conhecia perfeitamente as deficiências existentes, Missirá existia assim desde 1964. O comandante de Bafatá também estava a praguejar, dizia-me ao ouvido que tinha trazido dali o Comandante-Chefe que pensava que eu era um militar brioso, um bom operacional, eu podia ser um bom operacional mas vivia no meio de uma estrumeira, uma pouca vergonha de coabitação, nunca se vira aqueles abrigos e casernas rodeados de moranças, havia que distinguir claramente espaços ocupados, se eu não agisse rapidamente seria punido. Eu ia ouvindo com bastante desinteresse aquelas perlengadas, tinha estado no Enxalé, como tu te recordas, e senti-me revoltado pela chamada zona militar estar rodeada como de um escudo se tratasse de moranças da população civil, como se a tropa tivesse um cordão humano protetor nas flagelações. Ademais, eu encontrara Missirá com esta disposição, que meios teria eu para separar a população civil da militar, ninguém me fizera qualquer reparo e agora aqueles senhores oficiais pareciam agonizados com aquela atmosfera de espelunca, o Comandante-Chefe até soltara um riso escarninho junto do morteiro 81, perguntou-me porque é que a alça do morteiro não estava regulada, respondi-lhe sem hesitar que era eu que manipulava o morteiro a olho, procurava a proveniência do fogo inimigo, ninguém me ensinara a regular o morteiro e os meus soldados, que eram experimentados e de grande bravura, reconheciam que eu sabia dar conta do recado.

Bem amargado fiquei pelo que ouvi, achei uma grande injustiça ninguém ter perguntado o que eu encontrara em Missirá seis meses antes, o que andara a fazer para além do tal lado operacional que eles reconheciam estar bem encaminhado, o tal comandante de Bafatá disse mesmo que havia muito bom oficial que vivia acachapado dentro do quartel, mandando os sargentos patrulhar ou fazer abastecimentos, ele sabia de ciência certa que não era esse o meu caso, mas gaita!, ou eu mudava aquela espelunca ou tínhamos punição para breve.

E, Annette, o incrível aconteceu, fui punido com dois dias de prisão por não dar o máximo da minha competência na segurança do aquartelamento de Missirá, em concomitância o mesmo comandante de Bafatá que me punia louvava-me por eu ter um comportamento exemplar e instalado uma mentalidade ofensiva na minha tropa, e o comandante de Bissau, também se mostrara enxofrado com a tal insegurança de civis misturados com militares, considerava como dado por si o louvor do comandante de Bafatá. Momentos há, mon amoureuse, quando me sinto confrontado com qualquer despautério ou comportamento absurdo que abro a pasta onde guardo a punição e os louvores para meditar ou talvez zombar nos caprichos da justiça.

Há muito mais a dizer mas fica para depois. Estou a limpar a casa para receber a minha castelã, para que tu te sintas aqui com a mesma intimidade com que vives na Rua do Eclipse, farei como tu, cozinharei só para ti, irás conhecer os meus filhos, tens aí em teu poder propostas de passeios, participarás na ceia de Natal em família, serão momentos de grande felicidade, e satisfarei a tua curiosidade mostrando-te Alvalade e Campo Grande, certamente com o mesmo regozijo com que tu me mostras o património de Bruxelas, os jardins, os monumentos, os museus, as ruas cheias de vida. Estou ansioso pela tua companhia. E só espero que tu encontres aqui, e nos meus braços, a felicidade que dizes sentir na Rua do Eclipse.

(continua)
Berliet destruída por mina, Manuel Botelho, 2009
Um povo admirado pela sua dedicação ao trabalho, a etnia Balanta
O Cabo Costa, em Bambadinca, polivalente maqueiro, barbeiro, sacristão e preparador de defuntos
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21434: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (22): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21454: (Ex)citações (376): As nossas comuns raízes telúricas, do Nordeste Transmontano à Estremadura e ao Alentejo (Francisco Baptista / Fernando Gouveia / José Belo / José Colaço / Luís Graça)


Lourinhã > Ribamar > Valmitão > 18 de Julho de 2009 > Dia de acender o forno a lenha, amassar a farinha, enfornar e cozer o pão de trigo feito da farinha do moleiro... o delicioso pão de trigo da nossa infância.

Ainda hoje há famílias que cozem o seu próprio pão, no concelho da Lourinhã, Estremadura, como esta, a família do Ramiro Caruço e a Rosa, meus primos da grande família Maçarico... Voz off de Luís Graça, Alice Carneiro, Ramiro Carruço e a neta do casal.

Vídeo (2' 51''): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados


Capa do livro do Francisco Baptista, natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano,  "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor,  2019, 388 pp.)

1. Seleção de comentários ao poste P21429 (*):, da autoria do nosso camarada Francisco Baptista [ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72) (**):


(i) Luís Graça:

Francisco, ainda não tive acesso ao teu livro... Gostava de ter as tuas crónicas de Brunhoso em letra de forma... Mas continuo a adorar os teus textos, aqui publicados, ricos, socioantropologicamente falando... (Só sobre Brunhoso temos quase três dezenas de referências, puseste a tua terra no mapa.)

Só conheci Trás-os-Montes depois do 25 de Abril. Antes, os portugueses não viajavam "cá dentro" , era escassa a mobilidade, a não ser para para as elites, que no Verão faziam as termas ou iam para os Algarves e demais praias do litoral...

Como casei com uma "moçoila" do Norte, tive acesso a algum dos "saberes" (e "sabores") que referes no teu texto (*): em Candoz, na fronteira do concelho de Marco de Canaveses com Baião, Resende e Cinfães, a despensa chamava-se "loja", a parte térrea, mais baixa da casa, muitas vezes escavada na rocha de granito, e com chão de "saibro", sempre fresca no verão...

Era lá que se fazia o vinho tinto verde, no lagar, se pendurava e desmanchava o porco, se guardava o presunto e as demais partes do porco, que era morto em geral no Natal / Ano Novo... (Morto atado no carro de bois, uma espetáculo cruel para os putos!)

O frigorífico chamava-se "salgadeira", uma enorme arca, de madeira de pinho bravo, cheia de sal, responsável por muitas mortes por AVC e cancro no estômago ao longo de gerações... Era lá que se guardava o "governinho" da dona de casa: por exemplo, o "presunto verde", o que não ia ao fumeiro... Era lá que o vinho verde tinto "fervia" nos pipos de carvalho: de baixo teor alcoólico, aguentava-se até maio...O branco, feito em bica aberta, esse, engarrafava-se, era para os "fidalgos" e para os dias de festa...

Fazia-se também o "bagaço", que se guardava em garrafões de 10 e 20 litros, empalhados... Houve uma época em que se produzia e vendia livremente para as tascas do Porto...que o batizavam com água do rio...

Mas no Douro Litoral, o "frigorífico" também eram as "minas", onde durante a II Guerra Mundial se escondia o milho, para evitar as "requisições" do Goveno, na época do racionamento...

Não, não havia o fabuloso pão de centeio e trigo da tua terra, apenas a enome "broa" de milho que se cozia todas as semanas... Também nas "minas" se guardava o sável e a lampreia, na sua época.. (Na minha, zona, Lourinhã, província da Estermadura, cozia-se o pão de trigo, feito da farinha do moleiro; e o melhor era o do trigo barbela.)

Eu vivi a minha infância  na "vila", sede de concelho, mas com contacto regular com a aldeia da minha mãe, que era o Nadrupe, a escassos três quilómetros: os meus tios era pequenos lavradores dores, matavam o porco, fazia vinho, tinham frutas e legumes, criação doméstica, patos, coelhos, galinhas, perús...Um tio, da Quinta do Bolardo, caçava: não nos faltavam coelhos, perdizes e até lebres. Mas também tinham acesso, os da aldeia, aos recuros do mar, ali a escassos quilómetros: a sardinha, o chicharro, o carapau, a "arraia"... E toda a gente era recoletora de moluscos  e mariscos: a lapa, o mexilhão, o ouriço do mar, o polvo, a navalheira, a sapateira...

Não, na minha terram à beira mar, não se fazia presunto, nen salpicões, como em Candoz ou em Brunhoso, porque o clima marítimo era inimigo do fumeiro... Fazia-se, isso, sim os "chouriços de carne", os "chouriços de sangue"...Tal como em Leiria, também se fazia a "morcela de arroz", se bem me lembro... Com sangue de porco...

Todas as casas da aldeia tinham, além da residência da família, uma adega, um logradouro ou quintal com "estrumeira", e anexos agrícolas (com lugar  para a carroça, e os animais de tração: o burro, o macho, o cavalo), barraco para a lenha, etc.... E, claro, dentro ou fora da cozinha, o grelhador e o  forno de cozer pão... (e nos dias de festa, assar o borrego, o cabrito, o perú, o galo...). No inverno, comia-se a batatada com peixe seco, uma tradição mais ribeirinha e piscatória... Mas nas aldeias também se deixava o caparau, o chicharro e a raia a secar, no telhado, ou no estendal da roupa...

Mas cedo, nos anos 60, começou a generalizar-se a mecanização da lavoura: veio a motocultivadora, o trator,a motorizada,  e depois a eletricidade, o frigorífico, a casa de banho, etc. Cozia-se o pão de trigo, todas as semanas, ainda não havia o "pão de plástico",o horrível papo-seco ou o "pão de carcaça" que só tinha alguma graça quando se comprava, quentinho, na padeira da vila... Em todas as aldeias, havia dois, três ou quatro ou até mais moinhos de vento..As "panificadoras" industriais (reunindos os pequenos padeiros artesais) só começam a aparecer em meados dos anos 60..

Depois as grandes vinhas e as grandes searas de trigo desapareceram... E a nossa paisagem rural modificou-se profundamente. A partir dos anos 60, quando fomos para a tropa e para a guerra, nada seria mais como dantes...

Resumindo: temos, Francisco, uma grande dívida para contigo por seres o grande cicerone de Brunhoso do teu tempo de menino e moço, e nos ajudares a redescobrir as nossas raízes telúricas... Muitos de nós, ex-combatentes, nascemos e crescemos em aldeias ou pequenas vilas e cidades, onde a ruralidade ainda estava muito presente... Já lá estive perto de Brunhoso, mas ainda não se proporcionou conhecer a tua linda terra natal... Temos que combinar um encontro...

Saúde e longa vida. Mantenhas. Luís Graça

8 de outubro de 2020 às 22:07

(ii) Francisco Baptista:
 
Luís, o mestre és tu, que fazes uma bela descrição da economia familiar de duas regiões distintas e da forma como conservavam os alimentos.

Na despensa da minha casa, que ainda existe, um pouco alterada, e como menos objectos de museu do que a do meu amigo Zé (*), não se fazia o vinho. O meu pai não herdou nem plantou vinha, bebia pouco mas comprava todos os anos uma pipa em terras de Miranda para dar de beber aos trabalhadores.

Todos os anos se matavam dois porcos, eramos muitos em casa, que eram curados na despensa. Os presuntos estavam algum tempo cobertos com sal grosso e penso que depois com cinza. Quando começavam a ficar rijos eram pendurados do tecto. Nunca se punham no fumeiro como no Minho e Douro Litoral por serem zonas com muita humidade. O frio seco do Inverno e as condições de temperatura permanente da adega "curavam" os presuntos. O tempo de despensa ou adega, o sitio era o mesmo dava qualidade aos alimentos. Recordo -os a todos com gulodice e saudade e quando entro numa ainda guarnecida com alguns desses produtos, como a do meu amigo, parece-me que estou a entrar num lugar sagrado.

Em Trás-os-Montes o clima e a comida dos animais, erva e plantas da horta, davam qualidade aos alimentos, a cozinha transmontana era simples, a posta da vaca. tal como a marrã do porco só precisavam de algum sal quando a assar em boas brasas, as batatas, as cebolas. as vagens e outras hortaliças eram boas e saudáveis. O presunto e o toucinho depois do tratamento inicial ia-se fazendo e melhorando na despensa.

Os grandes pães de trigo e centeio tinham um gosto que já não há, por lá ainda há padarias que fazem grandes pães de trigo, de centeio é raro, com um gosto que se aproxima. O Douro Litoral e Minho têm uma cozinha trabalhada que faz as delícias de qualquer comilão, sei-o bem. a minha mulher é de Viana

A escrita já vai longa, caro Luís, convidava-te para o almoço que talvez te agradasse. Não é trabalhado como gosta a minha cozinheira minhota preferida, é simples à maneira da minha terra. Batatas cozidas com nabiças acompanhadas de alheiras grelhadas. O pão trigo é de Mogadouro. É bom.

Abraço Francisco Baptista

(iii) José Belo:

Caro Amigo e Camarada. (E, ão menos, companheiro na colónia de “férias” que foi a nossa Buba!)

Com os teus textos consegues criar insinuante nostalgia. Não feita das amarguras tão frequentes nos menos jovens como nós, mas antes como calor envolvente surgido de cinzas ainda ardendo.

Sente-se a aceitação, orgulho e interiorização de uma forma de vida que,durante infindáveis gerações acabou por formar mais um dos muito especiais “povos” que constituem a nossa tão diversificada “gente”.

Lisboeta, chico esperto de Estoris e Cascais, vivendo há muitas décadas entre as verdadeiras esquizofrenias que são as abissais diferenças entre as minhas raízes Lusitanas, as tradições e família escandinavas, e a muito especial maneira de olhar (todo o resto!) do mundo desde os Estados Unidos, para mim os teus textos são ...viagens de reencontro.

E,se só por isso,fico-te grato.

Um grande abraço do J .Belo

8 de outubro de 2020 às 07:57

(iv) José Botelho Colaço:

Olá, amigo Francisco Baptista, os hábitos dos nossos antepapassados em parte eram comuns em quase todo o nosso país com pequenas alternativas. DSou um exemplo nas linguíças: a minha mãe era normal não utilizar o azeite, utilizava sim a "manteiga", ou seja, a gordura dos fritos da carne do porco principalmente do lombo e das costelas que,  devido ao colorau ou pimentão,  ficava com um tom rosado a que nós dávamos o nome de "manteiga encarnadinha"... Nessa manteiga metia as linguiças numa panela de esmalte e aí se conservava todo ano sem perder qualidade e até aumentava o paladar. 

Um abraço amigo.

8 de outubro de 2020 às 16:02

(v) Francisco Baptista:

Amigo e Camarada José Colaço: (...) No Nordeste Transmontano, em tempos dei-me conta que nalgumas aldeias davam o tratamento de conservação, que referes aos salpicões e linguiças, penso que nessas terras não se colhia azeite, não sei se seria o caso da tua. 

Tu e grande parte dos que já leram os meus textos sabem que as tradições, os hábitos de vida, a moral e os costumes, os trabalhos duros e a miséria da vida , eram comuns a todas as aldeias por esse Portugal fora. 

Quando falo e valorizo os homens da minha terra, do tempo dos meus pais, será talvez porque cresci num tempo em que Brunhoso teve homens grandes, mas a minha homenagem vai para todos esses homens e mulheres que se sacrificaram tanto para criar a geração de cinquenta, sessenta, setenta
Muito obrigado meu amigo do coração, como dizem os tripeiros.

Francisco Baptista

8 de outubro de 2020 às 19:02

(vi) Fernando Gouveia:

Mais um belo texto,  Francisco. Como deves imaginar, na minha aldeia,  não longe da tua, também tenho uma "adega" semelhante à que tu mostras como a adega do Zé. Muito poderia dizer sobre a minha mas agora foi a tua vez… Só quero referir o que me aconteceu comprovando o que tu contaste em relação ao vinho que,  por não levar conservantes,  se vai estragando e o dono não se vai apercebendo. 

Há uns anos quem me tratava, lá na aldeia, da feitura do vinho, como era normal, parte do vinho era para ele e uma menor quantidade para mim. Nesse ano fui a casa dele, o Sr. Miguel, buscar os garrafões a que tinha direito. Em casa, na primeira refeição, vai de provar o vinho. Era intragável. Peguei nos garrafões e fui devolvê-los ao Sr. Miguel,  adiantando-lhe que o vinho não prestava. Resposta dele: eu ando a bebe-lo e sabe-me bem…

Um grande abraço e continua a escrever.
Fernando

9 de outubro de 2020 às 23:38


(**) 16 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21453: (Ex)citações (375): recordando mais trágicos acidentes com minas e armadilhas (Joaquim Sabido, advogado, Évora; ex-alf mil art, 3.ª CART / BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974)

Guiné 61/74 - P21453: (Ex)citações (375): recordando mais trágicos acidentes com minas e armadilhas (Joaquim Sabido, advogado, Évora; ex-alf mil art, 3.ª CART / BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974)

1. Comentário (*) de  Joaquim Sabido [, ex-alf mil art, 3.ª CART / BART 6520/73 e CCaç 4641/73, JemberémMansoa e Bissau, 1974); hoje, advogado, a viver em Évora; é nosso grã-tabanqueiro desde 24/8/2010; tem 13 referências no nosso blogue; foto à direita]


Ao ler sobre esta temática das M/A [Minas e Armadilhas] (*), veio-me a memória a recordação de um Amigo que, sendo ele já Alferes Miliciano no Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz (cidade onde passei a minha infância e adolescência), não seria já mobilizado.
 
Foi em Estremoz, como digo, que tive a honra de o ter conhecido e o gosto por termos sido Amigos. Talvez pelo ano de 1967 ou 1968, o Morgado, era o instrutor do Regimento em M/A. Dando instrução nesta matéria aos pelotões que compunham os Batalhões e as Companhias que por ali Iam sendo mobilizamos para as várias colónias ou PU, como queiram.

Junto à ribeira de Tera, perto da cidade, instrução de M/A a um ou dois pelotões, o pessoal disposto em círculo e um dos cabos miliciamos de M/A, inadvertidamente ou por inexperiência, espoletou a mina A/C que servia de modelo, segundo o relatado posteriormente por quem lá estava,

Quando aquele meu Amigo se apercebeu do erro do instrutor, atirou-se para cima da mina e, com esta sua acção minimizou os danos abafando o engenho com o seu corpo, e houve feridos, não me recordando já se mais alguém morreu, para além dele, que ficou em pedacinhos.

Para mim foi e sempre será um verdadeiro e saudoso Herói. Creio que, com toda a justiça, o nome dele figura no memorial existente na parada principal do RC3. Mas irei confirmar um destes dias. Será que algum Camarada se recorda deste episódio? Seria aquela instrução dirigida a pessoal a caminho do CTIG?

Já quando eu estava na EPA em 1973, salvo erro, aqui em Évora, no RAL 3, ocorreu um erro idêntico que teve um desfecho bem mais fatídico: 7 ou 8 mortos e uns quantos feridos. Instrução de M/A no interior de uma sala. Pasme-se.

Com amizade e camaradagem. Joaquim Sabido, Évora (**)

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21452: (Ex)citações (374): Colunas militares e populações civis como escudo contra minas e emboscadas, na zona leste, no "chão fula" (Cherno Baldé / Manuel Oliveira Pereira / Carlos Vinhal)



Ponte de Lima > 2019 > 50º aniversário da missa nova de José António Correia Pereira, aqui sentado, na primeira fila [nº 4], ex-alf mil capelão, BCAÇ 3884 (Bafatá,  1972/74): é o terceiro a contar da esquerda para a direita.

O primeiro da ponta é o nosso camarada Manuel Oliveira Pereira [nº 3]. Os restantes são amigos, ex-colegas e ex-camaradas do homenageado. 

O Cherno Baldé, que é um arguto observação e tem uma memória de elefante,  identificou o Manuel Mendes Sampedro [, nº 1], ex-capitão, e o Deus [nº 2], ex-furriel mil, ambos da CCAÇ 3547 , "Os Repteis de Contuboel, tal como o ex-fur mil Manuel Oliveira Pereira [nº 3]. E mais: em comentário da este poste, já acrescentou mais um elemento, do BCAÇ 3884, o Altamiro Claro, ex-alf mil. CCAÇ 3548, que estava em Geba. (Era um craque da bola; foi presidente da CM de Chaves e é o atual provedor da Misericórdia de Valpaços).

Foto (e legenda): © Manuel Oliveira Pereira (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P21433 (*)

(i) Cherno Baldé

Caros amigos,

O Capelão do BCAÇ 3884 [, José António Correia Pereira,]ia com frequência ao aquartelamento de Fajonquito, depois de Contuboel, e a nossa curiosidade de crianças não deixava nada escapar no quartel e arredores. A pequena Capela situava-se fora do arame farpado, pelo que as missas decorriam sob os nossos olhares atentos de crianças.

Um facto curioso que nos saltava à vista, era o número muito reduzido de participantes nessas missas dominicais, comparado com o numero de soldados presentes no quartel e/ou ao reboliço que provocavam as festas de Natal e do Ano Novo.

Na imagem vé-se o [Manuel Mendes Sampedro, que vivia em Fajonquito com a esposa e um filho pequeno] (Capitão da companhia 3549 que substituiu o Patrocinio],  na segunda fila ao meio [, nº 1] e o ex-Furriel Deus (o mais alto da segunda fila de óculos) [nº 2], que entre a população nativa era uma espécie de desmancha-prazeres quando chefiava as colunas para Bafatá, pois não raras vezes, talvez por razões de segurança, era obrigado a reduzir a lotação dos carros e os visados (sempre civis) viam-se assim privados de viajar até Contuboel ou Bafatá. 

Note-se que, na altura, a coluna era um dos poucos, senão o único meio, de as pessoas se deslocarem a uma distância de mais de 30 km nas zonas de guerra.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

9 de outubro de 2020 às 13:07  (**)



Emblema da CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, "DExós Poisar" (Fajonquito, 1972/74)

(ii) Carlos Vinhal

Caro Cherno, de Mansabá para Mansoa, o único transporte que havia para os civis eram as colunas, não me lembro se de Mansoa para Bissau havia alternativa, mas pelo menos havia coluna diária.

Algumas vezes, principalmente quando vínhamos de Mansoa para Mansabá, o pessoal civil, vindo talvez já de Bissau, aproveitava o trajecto para comer alguma coisa. Eles descontraídos a merendar e nós, tensos, principalmente na zona do corredor da morte, que, vindo de leste, atravessava Mamboncó em direcçção ao Morés. Ali perdemos o Manuel Vieira e o José Espírito Santo Barbosa.

Passa bem
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

(iii) Manuel Oliveira Pereira

Meu caro Cherno Baldé, meu amigo, mais uma vez, estou a contradizer as tuas "verdadeiras" observações,e porquê? Porque eu, quando possível, e enquanto comandante de Destacamento ou de "coluna", "apostava" nas viagens acompanhado pelo maior número de "civis", fazendo-os, por razões tácticas e operacionais, "inscrever-se de véspera".

Assim, excluia (uma certeza?) a probalidade de uma emboscada ou mina na picada. Usei esta metodologia, em Galomaro, Dulombi, Sonaco para Gabú, Bafatá ou Massajá. Nesta última, recordo uma "reunião de Homens Grandes" para, presumo, escolher aqueles que iriam em peregrinação a Meca. 




Guiné > Região de Bafatá > Mapa de Sonaco (1957) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sonaco e Mansajã, na estrada para Pirada (fronteira com o Senegal). Distância entre Sonaco e Mansajã: cerca de 10 km. Pirada ficava a nordeste (c. 50 km) e Nova Lamego a sudeste, mais ou menos à mesma distância.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


Em Sonaco fui contactado pelo Farim (capitão de milicia) no sentido de transportar estas figuras importantes a Mansajã [vd. mapa de Sonaco]. Disse ao Farim serem muitos e eu não dispor de uma segunda viatura para fazer a escolta. Respondeu-me que não seria necessário, bastava o "condutor". Perante o desafio, disse-lhe "então serei o condutor!" . Estupefacto, abre ao máximo os olhos e diz-me: "seria uma honra".

"Pois então eu levo-os", disse eu! Acrescentei: "Se me acontecer coisa, ficam instruções para arrasar as vossas tabancas".

Com um sorriso, diz-me: "Muito obrigado, Alá será a sua proteccão!..". 

Fui e regressei sozinho. Não consigo, ainda hoje, por palavras, dizer o que senti naquela " longa" viagem de retorno a Sonaco.

Abraço.





(iv) Cherno Baldé

Caro amigo Manuel Pereira:

Ao tempo da CCAC 3549 ["Deixós Poisar"], eu teria 13/14 anos e estava permanentemente no quartel [de Fajonquito]. Do que disse sobre as colunas a Bafatá não inventei nada, os acontecimentos aparecem na minha memória como fotografias guardadas num arquivo. O Furriel Deus, na altura, era um jovem de uma enorme cabeleira que ele gostava de exibir e que raramente cortava.

Não posso contradizer aquilo que tu dizes, todavia a observação que posso fazer é para dizer o quanto vocês estavam mal informados sobre a população fula de Leste.

A realidade da guerra no Sul, onde os guerrilheiros eram familiares da população civil e existiam laços fortes de entreajuda entre os dois lados não era a mesma na zona Leste onde, sem excluir a possibilidade de informadores secretos, não existiam laços de parentesco com os homens do mato, quase todos pertencentes a outros grupos étnicos e quase sempre as aldeias fulas eram o alvo privilégiado dos guerrilheiros e sempre com muitas vítimas.

Não havendo ligações e cumplicidades entre os dois lados (população e guerrilha), não vejo qual seria a vantagem de levar civis para se protegerem de eventuais ataques e/ou colocação de minas. No contexto da guerra as populações do Leste, maioritariamente de etnia fula, eram consideradas como colaboradores dos "Tugas" porque eram contra a guerra movida pelo PAIGC.

Abraços,

Cherno AB.11 de outubro de 2020 às 19:51

____________

Notas do editor:


(**)  Último poste da série > 5 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 – P21417: (Ex)citações (373): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné. Abutres.(José Saúde)

Guiné 61/74 - P21451: Da Suécia com Saudade (82): A Reforma Agrária no Reino da Suécia... e Palácios e Casas Senhoriais (José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)


José Belo 

1. Mensagem de  
José Belo [ ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); cap inf ref;  jurista;  autor da série "Da Suécia com Saudade";  vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da  Tabanca da Lapónia; tem 175 referências no nosso blogue]

Enviado: 14 de outubro de 2020 11:10
 Assunto: Palácios e Casas Senhoriais suecas

Caro Luís

Tenho exagerado nos "protagonismos" quanto aos últimos comentários (*) porque, em verdade, são estes que nos permitem comunicar... à distância.

Infelizmente para alguns funciona como capa de toureiro frente à cabeça da alimária.

Nas crónicas desde a Suécia mais não tenho que procurado esclarecer certas ideias espalhadas pela Europa do Sul.

É sempre interessante verificar que as opiniões sobre este país são sempre extremadas. Os que odeiam e criticam, ao mesmo tempo que outros olham o tal paraíso mitológico feito de socialismos permeantes.

Os progressos sociais, económicos, falta de corrupcão (não menos política!), e principalmente educacionais, não necessitam de mitos cor-de-rosa para efectivamente terem significado real.

A Suécia vive no seu dia a dia uma situação que em outras sociedades ainda se não antevê em... futuros distantes.

Os exemplos citados no texto sobre "A Reforma Agrária e as Famílias Senhoriais Suecas" que enviei, vêm mostrar claramente que a tal governação socialista permeante (de quase um século) tem sabido muito pragmaticamente se adaptar às realidades sociais.

Não menos, às realidades "histórico-sociais".

Aqui, neste extremo do extremo Norte Europeu, já existe muita neve no solo, é noite escura às duas da tarde, e as temperaturas noturnas são bem negativas.

Altura de mais uma estadia no outro lado do pequeno charco que é o Atlântico, na solarenga Key West, [Flórida, EUA].

Agora já com o Sloppy Joe's Bar reaberto, com as novas regras locais da pseudo pós-pandemia.

(Há semanas, quando lá estava, recebi na caixa do correio da minha casa um papel de propaganda política relativo às eleições próximas que dizia mais ou menos isto: "Quem vota num palhaco... gosta de Circo".

Um grande abraço, J. Belo.


2. Mensagem do José Belo, enviada a 6/10/2020 à(s) 19:09:


Data -  
terça, 6/10/2020, 17:15 

Assunto - A Reforma Agrária no reino da Suécia (**)


Meu Caro:

Não sei se terá qualquer interesse para os seguidores dos blogues de ex-combatentes mas de qualquer modo mostra outras facetas da tão mitológica Suécia, talvez inesperadas para muitos.

Consultando-se as estatísticas oficiais, registos prediais e arquivos agrários actuais, verifica-se que um grande número de proprietários agrícolas de origem aristocrática vivem ainda em palácios e administram as vastas propriedades dos seus antepassados, a maioria das quais adquiridas nos séculos XVII e XVIII.

Propriedades então adquiridas livres de impostos ou resultantes de convenientes casamentos entre ricas famílias nobres.

Ao contrário das ideias hoje existentes de que as grandes propriedades agrícolas não são rentáveis ou se encontram em inexorável decadência, verifica-se que, na Suécia, formam um importante grupo, resistente, activo, inteligente tanto administrativamente como na área jurídica.

Estes aristocratas da lavoura constituem um fortíssimo grupo de influência junto dos centros políticos de decisão.

Nas áreas geográficas com melhores condições agrícolas, centro e sul, estão bem no topo das listas quanto às extensões das suas propriedades. Na zona centro-norte possuem mais de 400.000 hectares, e no total estão registados mais de 750.000 hectares.

Estes números são ainda mais significativos se tivermos em conta que a classe nobre não representa hoje mais que 2,5 (não por cento mas por mil !) da população sueca.

Equivalente às antigas leis do “Morgadio” em Portugal, tem na Suécia o nome de “Fideicomisso”. 
Segundo a qual, e de acordo com tradição importada das tradições germânicas por altura da guerra dos trinta anos, as propriedades deverão ser unicamente herdadas pelo filho varão mais velho.

Estas leis terminaram em França aquando da Revolução em 1792. Um século depois a Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal terminaram também com as mesmas (1830-1840).

Em 1810 legislou-se na Suécia o fim dos “Morgadios"... mas mantiveram-se (!) todos os até então existentes.

Depois de inúmeras voltas e reviravoltas parlamentares sem resultados radicais chega-se a 1930 e à política social-democrata quanto às modernas formas agrícolas.
Mas em 1959 continuam a existir cento e onze famílias nobres abrangidas pelas leis dos “Morgadios”.

No início dos anos sessenta volta ao Parlamento uma moção segundo a qual estas leis deveriam deixar de existir, por privilegiarem uma classe social em contradição com os direitos de todos os cidadãos de igualdade perante a lei.

Em 1964 (!) foi decidido no Parlamento que estes direitos dos morgados terminarão quando do falecimento dos actuais detentores.

O morgado passa a ter direito a metade da herança total, enquanto a outra metade fica sujeita às regras relativas às heranças.

No entanto, o morgado além do direito à metade tem também direito à sua parte quanto à divisão da outra metade.

A lei é específica nestas regras.
Diz textualmente que deverá ser levado em conta o facto de o “morgado” ter sido até então "preparado"  para uma vida tradicional como herdeiro único. (Quase incrível!)

Em 1994 surge nova oportunidade para os “Morgados” circundarem as novas leis.
Surgem as directivas sobre as garantias de preservação da Herança Cultural ligada aos palácios de famílias nobres, obras de arte e propriedades familiares históricas.

Baseando-se na SOU-1995:128, comissões culturais a nível estatal passam a analisar os requisitos necessários para que estas famílias continuem a dispor dos privilégios anteriormente estabelecidos.

Surge então, não uma nova legislação, mas antes uma nova... interpretação da mesma! O resultado é uma nova legitimação que vai inteiramente ao encontro dos interesses deste grupo.

Nos tempos de hoje, esta continuada procura de afastamento dos herdeiros “femininos” destas muito consideráveis fortunas mais não é que uma reminiscência feudal que, mais de 40 anos depois das moções dos anos sessenta, continua a existir ao longo de sucessivos governos social-democratas. 
Pragmatismos.

Os mesmos pragmatismos que levam a que os mesmos sucessivos (!) governos não cumpram o estabelecido no seu programa partidário, onde está escrito como objetivo a eliminação da monarquia.

Inquéritos à opinião pública em anos sucessivos mostram claramente que a percentagem de cidadãos que desejam manter a Casa Real é sempre superior a 80%.

Comparada com as percentagens de votos partidários de cerca de 30% no máximo, compreendem-se os... pragmatismos !

Um abraço do J.Belo

PS - Boas e interessantes fotos de palácios suecos em:

(i) Svenska Slott. (Boa variedade)

(ii) Svenska Hergard och Slott



3. Comentário do editor LG:

Meu caro José, vem mesmo a propósito... Afinal, estamos a comemorar os 200 anos da revolução liberal que pôs fim, progressivamente,  ao "Antigo Regime" ou "sociedade senhorial"...

Uma história muito mal conhecida dos portugueses, até porque em 1828-1834 tivemos umas das mais sangrentas guerras civis... (Deve ser lembrada para descontruir o mito do "povo de brandos costumes"...). 

Vou arranjar maneira de referir e comemorar essa efeméride, até porque em 1821 a "joia da Coroa", o Brasil tornou-se independente.

Um "abracelo" (abraço com cotovelo)...

PS - Tens de explicitar melhor o que entendes por "socialismo permeante"... Do verbo "permear" ?
________

permear | v. tr. | v. intr.

per·me·ar 
(latim permeo, -are, atravessar, penetrar)

verbo transitivo

1. Fazer passar pelo meio. = ATRAVESSAR

verbo intransitivo

2. Estar ou meter-se de permeio. = INTERPOR-SE, INTERVIR, MEDIAR

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21450: (In)citações (170): Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso nos farrapos da farda do fur mil MA Ferreira, da CCAÇ 2616, dependurados nas árvores, no local da explosão da mina A/C armadilhada, na estrada Aldeia Formosa-Buba (Juvenal Danado, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71; vive em Setúbal)


Foto nº 1 > Rio Grande de Buba. o cais e a maré a encher (*)


Foto nº 2 > Rio Grande de Buba, Buba, 1974, a partida da LDG 105 Bombarda (que também navegava no Rio Geba)




Foto nº 3 > Rio Grande Buba, Buba, 1974 > A ingrata missão do meu Grupo: carregar do chão os víveres a granel para as viaturas. (**)


Algumas das melhores fotos do Rio Grande de Buba... Álbum do António Murta, ex-alf mil inf, Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Buba > Rio Grande de Buba > 1974



1. Comentário do nosso camarada Juvenal Danado, professor (que julgamos aposentado), a viver em Setúbal, onde colabora com alguma regularidade no jornal da região, "O Setubalense".

Tem escritos comentários no nosso blogue. O último foi a propósito de minas e armadilhas, no poste P21435 (***)



(... ) Fui furriel miliciano sapador de infantaria ( Pelotão de Sapadores / CCS/ BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71), especialidade tirada no CISMI de Tavira.

A abordagem do furriel à desmontagem da mina (***) também não parece nada correta, pelos motivos apontados: as mangas em baixo, o empecilho do cinturão com as cartucheiras, a posição do corpo, a pá (?!!!).

Desmontar uma mina (ainda por cima as anti-carro, frequentemente armadilhadas) nestes descuidos, era meio caminho andado para se ficar reduzido a picadinho.

Como ficou o desditoso furriel Ferreira, da companhia 2616 do meu batalhão (sediada em Buba), que ignorou os avisos, lá de longe, do alferes do pelotão: «Tem cuidado, Ferreira, que essa merda pode estar armadilhada!», quando, em dia de coluna, procurava desimpedir a estrada Aldeia-Buba de um destes engenhos.

Ao que contavam os assistentes à tragédia, o Ferreira (atirador com curso de minas e armadilhas tirado em Bragança) escavou à volta da mina com a faca de mato, como se deve fazer, enfiou a mão por baixo para ver se detetava algum fio, e hesitou. A coluna vinha a caminho e ele sentia-se pressionado, tinha de limpar o caminho.

Agarrou na mina uma primeira vez e fez menção de a levantar; fê-lo uma segunda vez e continuou a hesitar. O alferes voltou a avisá-lo. À terceira, contavam, terá gritado: «Foda-se, ou ela ou eu!». E puxou a mina para si.

A mina estava armadilhada. Diziam alguns que tiveram a sensação de vê-lo subir no ar e depois desfazer-se. O bocado maior que encontraram dele (um mocetão que pesaria à volta de 80kg) foi um pedaço da coluna vertebral, transportada para Buba dentro de uma caixa de ração de combate, e o que os pais receberiam dentro da urna que lhes enviaram.

Aquela mina e as outras anti-pessoal que o Ferreira desmontou naquele fatídico dia, eram para mim (era a minha vez), que estava em Bissau de regresso da licença na Metrópole, quando recebi a notícia.

Daí a uns dias, fui mandado a Buba, como comandante da coluna de reabastecimento. A certa altura dos 30 km que mediavam de Aldeia a Buba, a coluna parou. Preparei-me para a batalha, uma vez que não estávamos muito longe do carreiro de Uane, onde um ou dois bigrupos do PAIGC passavam constantemente. Não era isso. Era o pessoal a homenagear o Ferreira. Nas árvores por cima do local onde se dera a explosão, farrapos da farda do Ferreira, pendurados nos ramos, pareciam acenar-nos.

Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso/falo nisto. Descansa em paz, Ferreira.

Juvenal José Cordeiro Danado (****)

2. Comentário do Juvenal Danado ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande (***)

Eu acho que faço parte da Tabanca Grande, desde que a descobri, caro Luís. Peço desculpa pelo atrevimento, mas não sabia que era necessário ser convidado.

Não sei se já o disse no pouco que por aqui comentei, mas este blogue presta um serviço inestimável a todos quantos passaram alguns dos melhores anos da sua mocidade na Guiné-Bissau, numa guerra que poderia ter sido evitada, evitando tanto sofrimento.

A Tabanca Grande é um cantinho onde nos podemos encontrar como num recanto confortável de um café, entre amigos, e partilhar as nossas experiências e mágoas. Grande trabalho, Luís. As minhas felicitações e os meus agradecimentos.

Um grande abraço, alargado a todos os companheiros, os que aqui escrevem e todos quantos passaram pela Guiné.

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, em nome da Tabanca Grande, pelos teus dois comentários que nos enriquecem (***)... O teu testemunho sobre a morte do furriel mil Ferreira, da CCAÇ 2616, e  a tua ida, a a seguir,  a Buba, numa coluna logística, é muito forte, Também ainda guardo imagens dessas, ao fim destes anos todos... Eu próprio caiu numa A/C com uma GMC carregada de pessoal...

De facto, tu de há muito que deverias estar sentado, à sombra do nosso poilão... Afinal, faltam apenas aquelas pequenas formalidades: um pedido explicito para integrar a Tabanca Grande, um endereço de email válido, duas fotos (uma atual e outra do antigamente) e uma curta apresentação do teu curriculo militar...

Pedi ao Hélder Sousa, teu vizinho, para te contactar e "apadrinhar" a tua entrada na Tabanca Grande, Tens o nº 820, à tua espera, se te despachares ainda hoje... 

Um alfabravo (ou um abracelo, abraço com cotovelo,  neste raio de tempo de calamidade).

Luís Graça

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de de 22 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14916: Memória dos lugares (309): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (2) (António Murta)

(**) Vd. poste de 20 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14903: Memória dos lugares (307): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (1) (António Murta)

(***)Vd. poste de 9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21435: Fotos à procura de... uma legenda (126): O sapador só se engana três vezes: a primeira, a única e a última (António J. Pereira da Costa)

(****) Último poste da série > 21 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21380: (In)citações (169): Onde esteve a Cruz Vermelha Portuguesa durante a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África ?

Guiné 61/74 - P21449: Historiografia da presença portuguesa em África (235): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Francisco Travassos Valdez é um viajante bem equipado, tem estrutura cultural, sabe observar, seguramente que procurou os dados mais fiáveis e usa-os de forma comedida, ajustando-os aos seus comentário. É viajante cedendo ao deslumbramento, parece ter a técnica de um repórter, disseca o comércio, a composição social da entidade colonizadora, manda recados sobre o grande abandono a que a colónia tem sido devotada, e quanto à ação missionária é minucioso na descrição do seu desastre, mostra as igrejas arruinadas e as comunidades de fiéis entregues a si próprias. É um documento imprescindível para conhecer a Senegâmbia Portuguesa em 1860, é uma narrativa lúcida com variados alertas para a classe política em Lisboa.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (2)

Beja Santos

O livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título "Six years of a traveller’s in western Africa, 1861". Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-Árbitro das Comissões Mistas Luso-Britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente o que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. A importância que confiro a este relato pessoalíssimo, passa pela capacidade de observar: a aproximação do território e o desfrute que lhe dá; os contactos no Ilhéu do Rei e a chegada a Bissau; o quadro socioeconómico da colónia e as suas potencialidades; e fica-se com uma estampa do que era o conhecimento da Senegâmbia, aproximadamente 20 anos antes da criação da Guiné Portuguesa. É severo com o estado da Fortaleza de S. José, as deploráveis condições higio-sanitárias do hospital; adianta alguns elementos sobre o estado da Igreja em Bissau, não se repete aqui o que ele aduz na medida em que já se fez uma extensa recensão da obra mais importante sobre a história das Missões Católicas na Guiné, de um competentíssimo autor, Padre Henrique Pinto Rema.

Travassos Valdez enuncia as freguesias existentes na colónia: Nossa Senhora da Candelária (Bissau), Nossa Senhora da Natividade (Cacheu), Nossa Senhora da Luz (Ziguinchor), Nossa Senhora da Graça (Farim) e Nossa Senhora da Garça (Geba). Fala a seguir dos aspetos judiciais, dá-nos informações curiosas: “No estabelecimento de Bissau, ainda que importantíssimo ao comércio, são raros os pleitos comerciais, pois que poucos são os moradores portugueses e com os gentios tornam-se quase impossíveis as demandas”. Faz um resumo da organização administrativa, militar e da Fazenda da Guiné. Espraia-se sobre importações e exportações e receitas fiscais, nas vantagens em alterar as pautas, que são muito elevadas e que levam a que os habitantes da colónia procurem abastecer-se fora do país.
E aduz um comentário muito curioso:
“Na Praça de Bissau não há comércio propriamente português. Os negociantes portugueses que existem nas Praças de Bissau e Cacheu não são mais do que comissários dos estrangeiros. São quase todos indivíduos naturais do arquipélago de Cabo Verde que se estabelecem na Guiné, e a quem os negociantes da Gâmbia fiam fazendas por um ano, para serem pagas por géneros de produção em África. Os negociantes estrangeiros na Gâmbia e Gorée também não são outra coisa mais do que as gentes das poucas e grandes casas comerciais francesas, inglesas, americanas e algumas belgas, que monopolizam todo o comércio da costa, desde o Senegal até à Serra Leoa. A importância de produtos de Portugal, quer seja da nossa indústria, ou de reexportação das nossas alfândegas, é coisa que ali não há, e mesmo a única casa comercial estabelecida em Portugal que algumas especulações tem começado a fazer em Bissau (a casa Burnay) é belga, e posto que importa os objectos em navios portugueses falo directamente da América, motivo porque dizemos que o comércio português é coisa que lá não há”.

E não é menos importante o que vai comentar a propósito dos negociantes de Bissau e Cacheu:
“Qualquer daqueles negociantes, saindo do arquipélago de Cabo Verde, sem possuir nem um real seu, dirigindo-se para a Guiné, começa por se hospedar em casa dos seus parentes já estabelecidos; depois, se quer tornar-se negociante recebe dos estrangeiros que comerceiam com os seus parentes os géneros que pretende para no ano seguinte pagar em produções do país. Embarca depois para o rio Geba ou para o rio Grande, onde em uma feitoria que estabelece trata de permutar o que pode e fia o resto ao gentio, para no ano seguinte lhe pagarem em produções.
No ano seguinte, não tendo recebido tudo o que lhe devem os gentios, havendo despendido consigo alguns valores, tendo-se-lhe avariado alguns géneros, ou havendo deixado de os vender, e portanto não tendo com que pagar os seus débitos, fica alcançado o chamado negociante.
Nestes termos, para cobrar suas dívidas vê-se obrigado a continuar as suas transacções, mas para se poderem fazer é necessário um sortimento mais amplo e variado de modo que o agente de Gorée ou Gâmbia, que todos os anos vai a Bissau, no tempo próprio, lhe fia maior porção de fazenda, com obrigação de ser embolsado nos seguintes anos. Tem então aquele novo e pretendido negociante português de comprar escravos, fazer uma casa em Bissau ou Cacheu, estabelecer uma ou mais feitorias com as competentes moradas, fazer presentes aos régulos do chão em que negoceia, mandar construir ou comprar lanchões para transporte de géneros pelos rios, sustentar o luxo de mesa dos negociantes de África, pagar pesados direitos e finalmente ter de confiar as fazendas a caixeiros de má nota. Todas estas abundantes considerações vão culminar numa espiral infernal de endividamentos”
.

Travassos Valdez descreve com clareza o conjunto de circunstâncias que concorrem para que os compradores prefiram as feitorias estrangeiras às nossas, e tece considerações detalhadas do que deveriam ser as pautas comerciais, vê-se que está bem informado e tem ideias próprias.

Importante é também o que nos diz sobre a composição social, antes de passar para as descrições de usos e costumes e das povoações do território. Diz ele: “Os habitantes da Guiné Portuguesa, sujeitos ao nosso domínio, andarão por 4 mil almas (sem falar nos Grumetes de Bissau estabelecidos no chão de Bandim), divididos em três classes distintas: a comercial, composta de brancos, mulatos e pretos, que trajam à europeia, muitos dos seus negócios são dirigidos por intervenção de agentes do sexo feminino; soldados e degradados, mandados de ordinário estes de Portugal e aqueles de Cabo Verde; Grumetes ou cristãos do país”.

E lança seguidamente numa ampla descrição sobre o que se sabe do território e da presença portuguesa, começa por descrever as povoações à volta de Bissau e a sua organização socioeconómica e depois os locais de Geba preponderantes: logo S. Belchior (perto de Enxalé, continuando hoje a existir), Xime e margens do Corubal (espraia-se sobre o fenómeno do macaréu, e a seguir entramos no Geba estreito).

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21427: Historiografia da presença portuguesa em África (234): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (1) (Mário Beja Santos)