Queridos amigos,
Despeço-me de Viana com nostalgia, foi erro palmar vir por tão pouco tempo, não acontecerá na próxima, impunha-se percorrer todas estas freguesias que conheci durante 14 anos a ler com a maior regularidade o Aurora do Lima, às vezes tropeçava no nome de Lanheses, o meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo corrigia prontamente. Visita de médico, como soe dizer-se, mas que deu para cirandar pela cidade e contemplar alguns dos seus pontos altos como Santa Luzia, a Praça da República, a Praça da Liberdade, calcorrear o beira-rio, confirmar que a Igreja Matriz e a Igreja da Misericórdia têm méritos absolutos para a classificação de monumentos nacionais, as imagens falam por si. Não houve circunstância para ver onde estão pendurados os desenhos de Couto Viana que ofereci à cidade, ficará para a próxima.
Um abraço do
Mário
No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11)
Mário Beja Santos
Foi boa a escolha, ainda me ocorreu passarinhar ao acaso pela Viana moderna, mas a Igreja da Santa Casa da Misericórdia é um tesouro inesgotável. Leio no folheto, oferecido com o pagamento da entrada, que em 1526, por deliberação municipal, foi decidido edificar a casa e a Capela da Misericórdia na grande praça que se abria junto às muralhas da vila, então chamada Campo do Forno e hoje Praça da República, face ao novo edifício do Senado, construído cerca de 1505. O caráter de centro cívico desta praça acentuou-se com a construção do chafariz monumental, em 1554. Rapidamente as principais famílias nobres e burguesas começaram também a construir as suas casas nesta praça. Mais se diz que em 1714 a capela original estava num adiantado estado de ruína, foi decidida a sua demolição e a construção desta, o risco foi encomendado ao engenheiro-militar Manuel Pinto de Vila Lobos. A fachada da Misericórdia é extremamente original, mas o exterior da igreja é muito simples, em flagrante contraste com a exuberância do interior. Avança-se e é este espetáculo de riqueza e prodígio barroco.
O retábulo do altar-mor é assim, em talha dourada, classifica-se como Barroco pré-joanino, trabalho situado em 1710, tudo é simetria num belo encaixe de azulejaria.
As paredes desta igreja estão totalmente revestidas de painéis de azulejos, o seu autor foi Policarpo de Oliveira Bernardes, um dos principais nomes do ciclo dos mestres azulejistas barrocos. Representam as catorze Obras da Misericórdia ilustradas por passagens bíblicas (as espirituais do lado do Evangelho e as corporais do lado da Epístola) e, no painel do arco central, apresenta uma magnífica imagem da Senhora da Misericórdia que, com o seu manto aberto, protege a humanidade. O programa barroco desta igreja tem a ver com as talhas, os azulejos e o teto, bem como a fabulosa imaginária. O teto, como se vê na imagem da abóbada, tem medalhões que apresentam a Santíssima Trindade, a Assunção de Nossa Senhora e a Fuga para o Egito. As imagens são notáveis: Sant’Ana e S. Joaquim; A Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel; a Senhora da Boa Morte; S. João Baptista, … Nos nichos laterais sobressai a imagem do Senhor da Cana Verde. Infelizmente, só depois de sair é que atinei na importância do órgão, obra de 1721, em duas caixas, foi tudo fruto da pressa, ainda quero cirandar pelo casco histórico, ver a Praça da Liberdade com obras arquitetónicas de gabarito e despedir-me nessa estação ferroviária que data de 1882, Viana já era então uma grande cidade.
Era inevitável contemplar a Igreja Matriz, outro monumento nacional. Importa dar a palavra a José Hermano Saraiva, na sua obra O Tempo e a Alma: “Podiam pôr lá um letreiro: aqui nasceu Viana. Havia lá um vasto rochedo sobre o qual D. Afonso III mandou colocar a primeira torre; junto dela nasceu a primeira igreja. O que hoje se vê é o templo já grandioso, mandado erigir no século XV quando Viana já era vila notável. O pórtico gótico tem três arquitraves, e os colunelos abrangem seis belas estátuas de apóstolos. O conjunto tem uma riqueza escultórica excecional. Duas espessas torres reforçam o volume monumental do templo”. E o investigador mais à frente fala-nos da comunidade judaica aqui residente, fugitiva da Catalunha, foi próspera e altamente dinâmica, andou pela Terra Nova, negociava entre os portos da Galiza e da Irlanda. Depois, foi aquele desastre que nós conhecemos, a sua expulsão, a irreparável perda no nosso sentimento de tolerância e de ecumenismo, só muito mais tarde reabilitado.
Já se falou no Alto Minho de Carlos Ferreira de Almeida, a descrição do passeio que ele faz dentro de Viana é empolgante. Depois de nos dizer que a cidade é um paradigma no desenvolvimento das nossas póvoas marítimas, medievais e modernas, que aqui se mercadejou vinho e sal, panos e bacalhau, que a cidade está marcada por séculos de História, diz mesmo: “O tecido urbanístico do espaço medieval de Viana, razoavelmente quadriculado em talhões retangulares, mostra uma ordenação que lhe adveio e foi possível pelo facto de ter sido uma fundação nova, projetada para a vida urbana, e que as ampliações do século XIV não descuidaram. Dois grandes eixos a entrecruzam. Um, na direção norte-sul, unindo as respetivas portas, é hoje a Rua Sacadura Cabral, e o outro, entre as saídas da Ribeira e de S. Pedro, é um arruamento dito, à maneira galega ou castelhana, Rua Grande, continuado na de S. Pedro”. O estudioso vai por aí fora empolgado, fala-nos de casas nobres, de igrejas, devoções e depois lança-se sobre os formosos arrabaldes da Ribeira Lima, ao tempo em que publicou o seu trabalho, em 1987, referindo-se à Viana moderna exaltou os estaleiros navais, hoje mundo passado.
Houve tempo de folhear a Rota das Camélias do Alto Minho e ganhar a perceção que há uma Viana florida, os ajardinamentos falam por si. Aqui fica uma imagem da natureza em glória.
Estamos a findar, avança-se para a Praça da Liberdade e toma-se nota do que vem escrito numa publicação autárquica “Viana fica no coração”, referindo que a revista londrina Wallpapper considerou Viana uma Meca da arquitetura, clara alusão à Praça da Liberdade de Fernando Távora, à Biblioteca de Siza Vieira, não descurando o Centro Cultural de Souto Moura. É a Viana com as trombetas apontadas para o futuro, a escultura harmonicamente assente para projetar os edifícios, é o diálogo perfeito entre a Viana do passado e os preparativos do amanhã. Como não se pode ficar insensível ao equipamento de Souto Moura caraterizado pela transparência entre a cidade, o rio e o interior do edifício. Que beleza, percorre-se este chão de futuro e até nos esquecemos de que ainda há um pesadelo chamado Prédio Coutinho, uma aberração que parece não ter fim, elemento mais perturbador não pode haver na panorâmica da cidade.
E até à próxima, Viana, diante desta escultura que simboliza o arraial minhoto e o seu pujante folclore, tendo como pano de fundo a estação ferroviária que certifica a prosperidade da cidade no fim do século XIX, regressamos a Ponte de Lima, o termo da viagem está próximo.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21438: Os nossos seres, saberes e lazeres (415): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (10) (Mário Beja Santos)