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domingo, 26 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 – P24101: (Ex)citações (421): Sim, estou velho! (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Sim, estou velho!

A idade não perdoa. Que tínhamos todos a noção dessa inquestionável realidade. Fui, tal como todos os camaradas de armas, um jovem que conheceu momentos de alegria e também de horrores na guerra da Guiné. Todavia, sim estou velho. Conto, resumidamente, momentos de prazeres e de angústia pelo tempo que já passou.

Deixo os livros que já escrevi, 11, e da árdua labuta como jornalista ao longo de mais de trinta anos. Somos, agora, meros seres humanos que vagueamos pelos pingos da chuva e que paulatinamente nos deparamos com a estonteante viagem que já fizemos ao cimo deste imenso globo terrestre.

Na nossa cédula pessoal ficou registada a nossa presença por terras da Guiné, bem como os nossos tempos de meninos e moços.

********************

Condicionalidades de um tempo sem tempo: Sim, estou velho!

Sim, estou velho! Sim, o tempo, esse vadio, já voou. Dissipou-se. As gotas de orvalho diluem-se a uma velocidade impressionante. O meu rosto determina uma idade já avançada (72 anos). Sim, porque a saudade mata devagarinho os anos já consumidos pela essência das eras passadas. Sim, essa tal melancolia que parece previamente distante, perdeu-se pela fresta de uma porta que se foi definhando com o declinar das épocas. Vagueio pelo trilho “desarmadilhado” de uma vereda que inevitavelmente vai estreitando. Sim, esta é uma das inevitáveis realidades que o ser humano literalmente terá de compreender e sobretudo aceitar.

Curvo-me perante a transformação física do meu corpo. É verdade. Não o escondo. Mas atenção: ainda não me considero um trapo. Talvez um trapo de um fino fio de seda vindo das equidistantes arábias, mas impregnado com uma juventude já perdida. Ficaram os requintados cheiros que dantes me arregalaram as narinas. Ou, o toque em “matéria proibida” onde proliferavam memoráveis mistérios. Sim, esses frenéticos momentos continuam fixamente emoldurados na minha mente, mas com traços de um puro êxtase dantes ocorrido.

Recreio-me, agora, com a saudade. O que fiz e o que deixei de fazer. O meu corpo, outrora atlético, está velho. Cansado. De uma aldeia, a minha sempre querida Aldeia Nova de São Bento onde nasci, a metrópoles de maior dimensão, de tudo conheci. Conheci e fiz amizades. Tudo, porém, foi ontem. E foi ontem que brinquei com os meus amigos no Largo do Ferreira, lá para as bandas do Algés. Do João Luís, ao João Ferro, António, vulgo “Encherto”, António e Bento Charrinho, dois irmãos infelizmente já desaparecidos, Manel “Galha Galha”, Bento “Tomba Lobos”, Chico do Toril e o João Cheta, de entre muitos outros miúdos, foram companheiros no jogo de futebol com uma bola de trapos, ou com uma bexiga de porco regateada no mercado da aldeia. As leis, então impostas pela rapaziada, impunham que o jogo terminava aos 10, a mudança de campo aos 5 e as balizas eram delimitadas com duas pedras, sendo que o retângulo de jogo, desproporcionado, não tinha linhas que limitassem o espaço.

Mas, eis que numa elementar reciclagem feita à razão desta minha existência, revejo, com saudade, a mocidade perdida e uma vida preenchida de aventuras e desventuras. Ninguém é perfeito e eu também o não fui e nem tão-pouco o sou e, logicamente, jamais o serei.

Saí do meu recanto sagrado, ou seja, da minha sempre querida e adorada Aldeia Nova de São Bento, muito novo com destino a Beja, urbe onde concluí a instrução primária e fiz grande parte da minha vida. Todavia, jamais renunciei uma ida ao berço que me viu nascer e me consumirá para a eternidade. É lá, na minha aldeia, que um dia repousarei para a perpetuidade.

Existiu sempre no meu ego o espírito de aventura, ora quando a adrenalina me levava ao êxtase, ora quando o momento implicava uma maior concentração, tendo em conta o passo seguinte que, por força de uma razão maior, teria de ser dado. Mas nem sempre as coisas funcionaram da melhor maneira. É natural e aceito esses ímpetos momentâneos. Errei, tal como todo o ser humano. Ninguém é um exemplo imaculado e nem tão pouco um ser perfeito.

O mundo do futebol traçou-me um outro destino. Do Despertar ao Sporting, com uma passagem pelo Benfica, foi o desenho traçado e fundamentalmente concluído. Depois, veio o Desportivo de Beja, o FC Serpa e o Atlético Aldenovense.

Pelo meio ficou o cumprimento do serviço militar obrigatório. De Tavira aos Rangers, em Lamego, sendo o quartel em Penude, foi um estreitíssimo passo. Seguiu-se a Guiné, onde cruzei a guerra com a paz. Ali conheci uma outra realidade. Uma realidade onde os odores africanos se cruzaram com o “cantar” das armas. Regressei, felizmente, tal como parti. Apenas mais velho de idade. Fica, contudo, nas minhas mágoas de ver partir camaradas para a tal viagem sem regresso.

No retorno de África um emprego em Lisboa assinalou a minha volta à capital do Império. Regressei, depois e mais velho em idade, à velha Pax Júlia em 1978 e onde dei os primeiros passos no maravilhoso universo do jornalismo com o meu saudoso amigo Delmiro Palma, no jornal “O ÁS”, um semanário que adquiri no ano de 2000, sendo, para além de proprietário, o seu Diretor.

Trabalhei, em simultâneo, para vários órgãos de comunicação social desportiva, quer regionais quer nacionais, ficando a certeza que o jornal “A BOLA” terá levado o meu nome e a nossa região baixo alentejana além-fronteiras, para além do JN (Jornal de Notícias). O jornalismo preenchia a minha profícua mente. 12 anos na Rádio Voz da Planície, como coordenador da área desportiva, levou-me a possuir nos três programas na RVP: O “Estádio”, aos sábados; “Planície Desportiva” aos domingos com relatos de futebol incluídos; e diariamente o “Livre Direto”, com dois apontamentos, um logo pela manhã, um outro à tarde. Em 2005 assumi dar a cara pela TV Beja, televisão por Internet.

Um dia, em finais de 1990, lancei o primeiro livro, “Glórias do Passado”, seguindo-se uma segunda obra, ou seja, o II volume sobre a mesma matéria. Em 2006, com 55 anos de idade, fui “contemplado” com um AVC que me deixou entre a vida e morte. Sobrevivi e lutei, incansavelmente, pela minha liberdade. Recuperei o possível.

Limitado a uma cadeira de rodas tracei cenários quiçá inimagináveis. A mente, porém, comandava felizmente o corpo, logo a minha luta titânica passava pelo regresso ao mundo da escrita e ao seio de uma sociedade que me fora sempre cordial. Aliás, a mente, essa fascinante ferramenta de que todos somos possuidores, estava limpa, não obstante a afasia entretanto manifestada. As palavras não saíam com a fluidez que dantes me era comum. Gaguejava e os movimentos físicos estavam ausentes, todavia, esses pequenos/grandes pormenores foram por mim ultrapassado, dado que nunca atirei a toalha ao chão. Segui em frente e de cabeça levantada.

Mas, eis que comecei a vislumbrar a prosperidade do caminho do futuro. Recuperei o que esteve ao meu alcance e regressei ao mundo real e ao computador, principiando-me a elaborar textos para os leitores contemplarem. Em 2008 surgiu o convite do Diário do Alentejo. Aceitei e não mais parei. Paralelamente ressurgiu a veia de escritor e toca a lançar livros, sendo o antepenúltimo, tal como o anterior, com a chancela da Editora Colibri, “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”. Para trás ficaram, para além daquele que atrás citei: Glórias do Passado, volumes I e II; O Trilho; AVC Na Primeira Pessoa; Guiné-Bissau As Minhas Memórias de Gabu; Associação de Futebol de Beja 90 Anos de Memórias e Relatos; AVC O Guerreiro da Liberdade; Aldenovense Foot-Ball Club ao Clube Atlético Aldenovense; Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/1974 e Bola de Trapos - Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022.

Este apurado texto, sendo na minha opinião bastante exígua, reconheço, no entanto, que reproduz retalhos de uma vida de um ser humano nascido numa aldeia que vive de paredes-meias com a vizinha Espanha, província de Andaluzia, que leva 72 anos contabilizados e que assumindo um raciocínio lógico me leva a concluir: Estou velho! Sim, estou velho, mas ainda pronto para continuar hirto ao cimo deste globo terrestre, embora reconheça que as minhas limitações físicas já pesam no meu corpo, hospedando a certeza que as curtas viagens aventureiras se vão diluindo com o evoluir dos tempos. Presentemente o meu carro são as minhas pernas e é com ele, o carro, que me desloco para qualquer ponto deste solo lusitano. Mas, estando velho, e residente neste pequeno “invólucro” terreno, sinto-me ainda capaz em continuar a senda da escrita.

Para trás ficam imagens de anteontem, de ontem e de hoje. Somos, afinal, pequenas gotas de orvalho que se diluem em pequeníssimos ciclos de vida. Aqui ficam imagens dos livros por mim já publicados.

Abraços e beijos
Zé Saúde (Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523)
Jornalista/escritor

Observação: Os três últimos livros publicados, Um Ranger na Guerra Colonial – Guiné-Bissau 1973/1974, Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes e Bola de Trapos Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022, foram editados pela Editora Colibri, Lisboa. Deixo, para já a minha obra feita como escritor, onde enalteço o meu ilustre "torrão sagrado".













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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

6 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24042: (Ex)citações (420): As caçadas por meios aéreos só ao alcance de alguns (Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pil)

Guiné 61/74 - P24100: In Memoriam (473): António Cunha (Tony) (c. 1950 - c. 2022), ex-fur mil enf, 38ª CCmds, HM 241, CCS/BCAÇ 4514/72, e CCAÇ 6 (Bissau, Mansoa, Bolama e Bedanda, 1972/74): vivia nos EUA há mais de 40 anos (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Tony Cunha (c. 1950-c. 2022)


1. Mensagem do João Crisóstomo (régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, Nova Iorque):

Data - sexta, 24/02, 18:43

Assunto - Uma triste notícia: a morte do Tony Cunha

Caro Luís Graça,

Sei que os meus e-mails são sempre enormes, mas não sou capaz de fazer por menos. E por isso também mais uma razão para usar antes de tudo o telefone… Depois então uso os e-mails e outras coisas assim que já são “alternativas”. De alguma maneira este tem as suas vantagens pois posso enviar-te algumas fotos que acho interessantes, cujas imagens te tencionava mostrar pelo WhatsApp.

Se vires que estou só a ser chato… eu não fico ofendido se enviares tudo para o respectivo destino ...

Mas primeiro uma notícia triste: Não sei se já sabes do falecimento de mais um nosso "camarada da Guiné", o António Cunha (Tony), membro da nossa Tabanca desde 13 de dezembro de 2018, no lugar de numero 782. (Guiné 61/74- P19287) (*).

Antes da pandemia eu tentei fazer um convívio com ele e outros camaradas em Newark. Mas não consegui despertar interesse suficiente. Com a ajuda do jornalista Fernando Santos, que esteve em Angola, tivemos então um almoço com o Jorge Ventura ( dos comandos , Angola) e Fernando Menezes que esteve em toda a parte, e cujo fim era preparar um convívio mais abrangente, com veteranos não só da Guiné como de Angola, Cabo Verde etc.

Mas entretanto veio o Covid . Não preciso dizer mais. Era por telefone que, na falta de encontros eu usava para manter os contactos e não deixar morrer a iddeia, que eu falava com o Tony : Ele tinha uma empresa de tipografia, sempre com muito trabalho, mas era nossa intenção encontrarmos-nos um dia.

Entretanto ele adoeceu . Na última vez que lhe falei ele sentia-se bastante mal.— pensei que tinha sido há escassos meses, mas agora depreendo que nem dei pelo tempo e já foi há mais de um ano. Agora porque não conseguia contactá-lo há tanto tempo, e nem o telefone da tipografia respondia, eu ontem liguei para o Fernando Santos, talvez ele me soubesse dar notícias (um dos livros dele foi impresso na tipografia do Tony). Foi ele que me disse do seu falecimento, não sei a data, mas creio que já há bastante tempo. Confesso que quase sinto remorsos de nunca o ter encontrado pessoalmente . Mas a vida é assim. Nem sempre nos é possível fazer tudo o que desejaríamos fazer. Paz à sua alma!

João Crisóstomo.

2. Comentário do editor:

João, obrigado. É mais uma triste notícia. Mas quantos antigos camaradas nossos, da Guiné, não têm morrido por esse mundo fora sem a gente sequer ter conhecimento ? Na nossa Tabanca Grande são 131, agora com o Tony Cunha, mas este número deveríamos acrescentar mais algumas dezenas: há amigos e camaradas que há muito não fazem prova de vida...

Por um pesquisa na Net, verifiquei, através do "Big Brother" americano (https://clustrmaps.com/)  que o nosso camarada, Antonio Cunha (Tony), ou melhor Antonio A Cunha, de quem nunca mais tive notícias, vivia num T2 em Arlington, ia fazer 72 anos de idade, em 31 de março (de 202...).  Era provavelmente casado com Denise M Cunha, de 69 anos. A sua pequena empresa, TD Printing Services, foi fundada em 1991.  Arlington fica no estado de New Jersey.

Estimamos que ele tenha nascido em 1950. E, pelo que nos conta o João, dos seus últimos contactos, julgamos que tenha morrido em 2022 ou 21.

À família enlutada apresentamos, mesmo que tardiamente, os votos de pesar dos amigos e camaradas da Guiné que se reunem à sombra do sagrado poilão da Tabanca Grande. (**)

(...) Enfim, já lá vão 44 anos, e não pensei muito naqueles tempos, até começar a ler os teus blogues. Já não me lembro de muita gente com quem convivi, lembro-me do Alferes Dino, do Furriel Fidalgo (que visitei em Setúbal), do Furriel Pires (a quem "salvei" a vida, levando-o aos fuzileiros, debaixo de fogo, quando foi ferido, e depois morreu num acidente de mota no Continente…), do doutor Nuno Ferreira (o meu médico quando cheguei a Bedanda).

Há mais de 40 anos nos Estados Unidos, nunca mais convivi com ninguém daquele tempo. Fui, aqui, reconhecido por um soldado do 4514 [ BCAÇ 4514/72], e é só… e tive um bom amigo ex-comando, chamado Nuno Álvares Pereira. Alguém o conhece?

Por favor não pares com os blogues. Mesmo que sejam acerca de pessoal que não conheço, todos são como família, na confraternização que nos une naquela Província que, embora pobre, nos enriqueceu na apreciação da amizade.

"Manga di abraço pra todo", tugas e não-tugas.

Tony


Contactos nos EUA:

Antonio Cunha (Tony)
President

TD PRINTING SERVICES
92 Park Avenue
North Arlington, NJ 07031 (...)

Guiné 61/74 - P24099: Parabéns a você (2148): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista MMA da Força Aérea Portuguesa - 1979/82

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24090: Parabéns a você (2147): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913 (Fá, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)

Guiné 61/74 - P24098: Tabanca Grande (545): Corrigindo um lamentável lapso nosso, o José António Paradela (1937-2023) fica connosco, no lugar nº 872... pelo seu contributo para a memória da "Faina Maior"... Parafraseando o capitão Valdemar Aveiro, podemos perguntar: "daqui a uma geração, quem se vai lembrar disto, a guerra do ultramar / guerra colonial e a outra guerra, a da pesca do bacalhau"?!

 

Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António Paradela, arquiteto; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde Henriques (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco Henriques Paradela, que na altura andava na "tropa do bacalhau", sob as ordens do capitão Valdemar Aveiro, seu padrinho,  o "último dos lobos do mar", escritor, com dez livros sobre a frota branca e a pesca na Terra Nova. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): arquitecto e escritor

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Fotos do álbum de Ábio de Lápara (José Paradela), página pessoal no Facebook (com a devida vénia...)


Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José António Boia Paradela): Biblioteca de Ílhavo, 26/11/ 2017. O autor a autografar o seu último livro, "Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor, 125 pp. + II inumeradas). Foto de Etelvina Almeida, cortesia da página do Facebook do autor.

1. Por uma razão que não consigo descortinar, mas que só pode ser "por falha técnica ou erro humano" (como se diz quando cai um avião ou descarrila um comboio), o meu querido amigo José António Paradela (1937-2023) não foi formalmente registado como membro da Tabanca Grande, logo em 2007, como devia ter sido.  Sempre o considerei como tal, ao longo dos muitos anos de existência que já leva o nosso blogue, mas a verdade é  que o seu nome não conta(va) na lista alfabética dos membros da nossa tertúlia...   

O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar). 

Não era, em rigor, uma terra de "infantes", mas sim de marinheiros, pescadores e capitães (da frota de pesca e da marinha mercante). Mas há exceções, como o Jorge Picado, que lá foi parar à Guiné, aos 32 anos,  já como capitão miliciano de artilharia (*)... 

Não sabemos quantos mancebos de Ílhavo, aptos para o serviço militar, seguiram a opção da pesca do bacalhau ou se alistaram na marinha de guerra, no período em que decorreu a guerra do ultramar / guerra colonal (1961 / 74)..

O nosso Zé António andou embarcado, como "moço, na "frota branca" (**) e depois cumpriu o serviço militar na Marinha, sem ter passado pelo ultramar. A guerra em Angola começou em 1961 e ele ingressou logo n0 ano letivo de 1960/61, na Escola Superior de Belas Artes onde fez o seu curso de arquitetura (concluído em 1967, com um a bolsa de cinco anos da Fundação Calouste Gulbenkian).

Justifica-se a sua entrada na Tabanca Grande pela sua partilha de memórias da pesca do bacalhau que eu considero o "outro lado da guerra" (**)... Tenho pena de não dado conta do lapso, com ele ainda em vida, faço agora a  necessária correçao, dois dias depois do corpo do eu amigo descer à terra, no cemitério da sua terra natal... A título póstumo, fica na lugar nº 872, à sombra do nosso simbólico, fraterno e sagrado poilão (***).


2. O seu primeiro texto, publicado no nosso blogue, data de 2007 (***). Tratou-se da apresentação, em Aveiro, em setembro de 2007, do livro do capitão Valdemar Aveiro, “Histórias Desconhecidas dos  Grandes Trabalhadores do Mar" (imagem da capa acima,  4ª ed, Âncora Editora, 2016, 228 pp.)


Texto de José António Paradela, arquitecto

“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)

Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.

Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault (À la Porsuite du Soleil), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).

O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.

Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas 
 , para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!

Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.

São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.

Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.

A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.

Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.

E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.

Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:

“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.

Um abraço do teu mano Zé

(Negritos: editor LG)

3. Comentário do editor LG:

Relembro aqui que o capitão Valdemar Aveiro (que eu voltei a abraçar anteontem, no funeral do nosso  "mano" comum) (****),  é um velho lobo do mar, natural de Ílhavo, terra que tem dado, a Portugal, ao longo da sua história, grandes marinheiros, pescadores e capitães... 

Nascido em 1934, passou 35 anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau, a bordo, e capitaneando grandes lugres. Hoje (ainda hoje, vai fazer 90 no próximo ano!), está em terra, com funções de gestão em empresa do sector piscatório ao mesmo tempo que vai passando e repassando para o papel as suas memórias... e divulgando os seus livros, o meso é dizer partilhando memórias que pertencem ao nosso património imaterial.

Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através do Zé António Paradela, ele teve a gentileza de me oferecer um exemplar desse seu primeiro livro, autografado.

Foi uma revelação, para mim, essas histórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no nosso  blogue, do que me penitencio... (mas ainda vamos a tempo).

Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O capitão Aveiro, como é carinhosa e respeitosamente conhecido,  terá recebido - imagino eu -  alguns pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique, admitindo que a pesca  não fosse a sua prineira opção...

Ao repescar esta belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, na altura (2007) em 2.ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar, estou a homenagear duplamente dois homens de eleição, dois "ílhavos" que muito honram a sua terra.

Pegando na inspiradíssima dica do Zé António, também eu direi que - à semelhança dos nossos velhos lobos do mar que hoje morrem em terra! - compete-nos também a nós, que fizemos a guerra colonial, "escovar a história a contra pêlo"... 

Temos tentado fazê-lo, ao longo destes anos t0d0s, fazendo jus ao lema do nosso blogue, "Camarada, não deixes que sejam os outros a contar a tua história!"... O mesmo é dizer:  é importante que se faça a História com H grande da guerra do ultramar / guerra colonial, mas não menos importante é escrever e salguardar as memórias de quem a fez, de um lado e do outro, afinal a história com h pequeno,,,

O capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de histórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele e o Zé António  sejam também  exemplos inspiradores para todos nós, amigos e camaradas da Guiné, os antigos combatentes que, enquanto geração, estão a desaparecer todos os dias...  

(Negritos: editor LG)



Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, é o nosso autor, com 17 anos...

Foto (e legenda): © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


4. Poema "O Verde" (equivalente ao nosso "periquito"):

O Verde (#)

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: Salta, esquece as mágoas…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.

“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.

(#) Pescador bacalhoeiro embarcado pela primeira vez

In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos"  (20127, ed. de autor), pág. 75.  
__________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 24 de novembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2300: Bibliografia (12): Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José António Boia Paradela)

(***) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.

(****) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
É sempre com muito agrado que venho até à rua Alves Redol, n.º 45, em Vila Franca de Xira, não há museu como este, sobe-se e desce-se estas escadarias em estado de deslumbramento, independentemente do recheio sazonal, e com uma imagem que nos acompanha em todas as direções e uma obra belíssima de Júlio Pomar. O que não é sazonal é o que me traz cá hoje, conhecer a nova exposição de longa duração do Museu do Neo-Realismo, o título é fabuloso: "A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto", é um novo olhar interpretativo sobre a coleção de obras em depósito. Não que não permaneça vincada, como escrevem os curadores, a atenção aos mais desfavorecidos, uma forte leitura ao nível da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação. Aqui se desmonta aquele mantra de que se pintava, ou desenhava, ou esculpia, ou moldava de forma uniforme, como se todos os artistas plásticos vestissem a mesma fatiota e tocassem a música pela mesma pauta. Por engano, como aqui se pode ver. Muitas destas mulheres e destes homens enveredaram depois por outros caminhos, onde aqui havia um compromisso entre o figurativo e a dinâmica da modernidade, já se pressente em diferentes obras que se caminha para outros projetos, basta pensar a evolução de um dos pontífices do neorrealismo, Júlio Pomar, que se lançou gradualmente na arte não figurativa, e experimentou diferentes correntes. Em termos museológicos, a exposição é altamente atrativa, nunca perde a dimensão didática, como se uma ideia mestra presida a todo este itinerário: pensar, como contemplar, é divergir.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91):
A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto


Mário Beja Santos

Regresso sempre lesto e contente ao n.º 45 da rua Alves Redol, em Vila Franca de Xira, aqui se pranta o Museu do Neo-Realismo, a minha primeira saudação é sempre para esta obra magna de Alcino Soutinho, o arquiteto desenhou um espaço gerando volatilidade, o sentimento de que se sobe e desce sob o signo da luz graças à solução encontrada da escala destas escadarias correspondentes à ligação dos diferentes pisos, uma geometria de um fôlego quase aéreo, enfim, o prazer de por aqui deambular, sejam quais forem os bens culturais expostos.

O que me traz aqui, hoje? Venho ao encontro da exposição de longa duração que substitui outra que aqui se exibiu de 2007 (ano de inauguração do museu) até 2021, e que se intitulava “Batalha pelo Conteúdo”. E temos a promessa de que no piso abaixo, em 2024, irá continuar a renovação museológica, aqui se exibirá exposição complementar alusiva a um processo de reinterpretação do movimento literário, cívico e cultural do neorrealismo, não faltará uma ampla exposição documental, reza essa a promessa.

Recomenda-se ao visitante que adquira o catálogo, é uma obra de referência, não o fazendo tem mesmo assim ao seu dispor um folheto que ajuda a entender esta nova abordagem museológica. Para os não iniciados, recorda-se que este movimento estético, encetado na década de 1930, tinha berçário no realismo, estes artistas e escritores valorizavam a representação do humilde e do comum, buscavam inspiração no operário ou no camponês, mostravam cenas de família ou exibiam a miséria em que viviam os desabonados. O neorrealismo introduziu uma forte leitura da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação, concentrando no observador da obra de arte uma amplitude social até aí dominada pela expressão artística naturalista, todas as manifestações de arte em pintura, escultura, desenho, fotografia, gravura, ilustração e cerâmica foram base para o trabalho destes artistas. Um dos pontos altos a exposição é o de desmontar o estereótipo de que o neorrealismo era meramente apologético de uma arte ao serviço da luta de classes, uma espécie de Bíblia para fermento revolucionário, no percurso desta exposição de longa duração, o visitante vai ser confrontado com a versatilidade, tanto no conteúdo como na forma.

Aqui estou embasbacado no interior do museu, é sempre novo para mim, ainda por cima a tarde está ensolarada, releva-se este branco de cal como nas casas alentejanas, a luz é esplendente, vou subir, hoje há visita guiada pelos dois curadores da exposição, David Santos e Paula Loura Batista, e bem ilustrativa será nos seus comentários, posso assegurar.
A exposição desdobra-se em secções temáticas, os curadores advertem-nos no início do seu catálogo o que há por detrás deste título escolhido para a exposição: “Inspirados pelo provérbio chinês, podemos dizer que a arte é como uma gota de água que cai no deserto, pois nunca opera revoluções, nem uma ação imediata ou direta sobre a realidade, interpelando-nos, porém, o suficiente para nos fazer refletir, a partir de uma magia que nos espanta e influencia ao longo da vida.” E dizemos que é desejável aqui chegar ou daqui partir com este catálogo possuidor de textos primorosos que nos falam do compromisso dos neorrealistas, do que há de singular neste movimento estético, como ele é substantivo para o conhecimento histórico da oposição ao Estado Novo, como ele igualmente se confrontou, entre modernistas e surrealistas, conciliando o figurativismo e o abstracionismo.

É impossível aqui mostrar o conteúdo das diferentes secções temáticas, mas não resisto a entusiasmar o potencial visitante dizendo-lhe o que vai encontrar. Vai encontrar varinas, ferroviários, marinheiros e pescadores, camponeses, peixeiros, pastores, mulheres de empreita, mondadeiras, rendilheiras, e algo mais, é trabalho, de canastra à cabeça, a tocar o realejo, pescadores arranjando o cordame. E aqui o visitante seguramente terá surpresas neste caleidoscópio laboral, pontificam Júlio Pomar, Lima de Freitas, Alice Jorge, Victor Palla, Nuno San-Payo, é deste que se mostra um dos seus quadros.
Varinas no Cais, por Nuno San-Payo, 1950
Júlio Pomar, Estudos para o Ciclo do Arroz, 1953
A Mulher do Mar, Júlio Pomar, 1956.

Aqui detenho-me um pouco mais, é obra premiada em exposição da Gulbenkian, na temática de gravura, consta um exemplar cá em casa, o meu padrinho era sócio da Gravura, num meu qualquer aniversário mandou-me abrir uma pasta e escolher uma obra à vontade, esta Mulher do Mar tenho-a por companheira, espero por muitos anos e bons, Pomar é um dos meus ícones e o neorrealismo deve-lhe muito, e ele seguramente que ficou devedor a esses tempos de denúncia do Estado Novo.
Isto é o Haiti: escolhendo café, anos de 1940, por Byron Coroneos (?)

A segunda secção é dedicada à paisagem, o visitante será surpreendido por obras inebriantes de um Victor Palla, uma atmosfera de subúrbio de Nuno San-Payo, o porto de Portimão de Querubim Lapa ou uma paisagem descarnada de João Hogan. Daqui se prossegue para outra secção, a família, com obras, entre outros, de José Dias Coelho, Júlio Pomar ou Mário Dionísio. A nova temática é política, como escreve um dos curadores, David Santos: “Inspirada pelas vanguardas político-revolucionárias de meados do século XIX, a arte converter-se-ia num instrumento crítico de incidência direta sob a realidade social, com a intenção deliberada de a transformar.” Esta é a génese do que irá acontecer pelos anos de 1930 e 1940, o profundo compromisso entre a arte e a sociedade, o artista não irá abdicar de falar da guerra, da prisão, da censura, de mostrar de que lado está a operação, etc.
Desenhos originais para o livro Serranos de Mário Braga, por Cipriano Dourado, 1955

Tinha eu 16 anos quando acompanhei a minha mãe numa visita a Coimbra, aqui residia uma das suas maiores amigas, trabalhava igualmente na maternidade, junto à Sé Velha. O chefe dos serviços era o escritor Mário Braga, deve ter percebido que aquele adolescente se maravilhava com a matéria dos livros, e então ofereceu-lhe dois livros, um deles o livro de Contos Serranos onde estão estas ilustrações e outras mais de Cipriano Dourado, foi o princípio de uma grande estima, só morreu quando o grande contista se finou.
Prisioneiros políticos, por José Dias Coelho (1955-1961)
Ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, 1948

Muito impressiva é a secção sobre o retrato, aí o visitante encontrará obras revelando Soeiro Pereira Gomes, Orlando da Costa ou Alves Redol, entre outros. E chegamos ao lazer, com os seus saltimbancos, danças da roda, até um carrossel prodigioso, talvez um remate felicíssimo para esta exposição, aparece uma ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, de Manuel Ribeiro de Pavia.

Que belíssima exposição! Espero ter seduzido o leitor, pode muito bem acontecer que nos encontremos nos tempos mais próximos neste magnífico edifício concedido por Alcino Soutinho.
Saltimbancos, por Nuno San-Payo, 1951
Carrossel, por Rui Filipe, 1960-61
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24096: Convívios (952): Encontro do pessoal do BCAV 3846, no 50.º aniversário do seu regresso, dia 26 de Março de 2023, no Cartaxo (Delfim Rodrigues)


ALMOÇO/CONVÍVIO DO BCAV 3846
DIA 26 DE MARÇO DE 2023
CARTAXO

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24087: Convívios (951): 35.º Encontro do pessoal da 35.ª CComandos, dia 30 de Abril de 2023, no Luso - Mealhada (Ramiro Jesus)

Guiné 61/74 - P24095: Blogues da nossa blogosfera (179): "Reserva Naval", criado e mantido pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, chega ao fim... por razões pessoais e familiares do autor (mas também, em parte, pelo cansaço bloguístico e pela ingratidão das nossas instituições e associações)



"Espaço aberto a antigos Oficiais da Reserva Naval na publicação de documentos, relatos, imagens e comentários. Um meio de comunicação e participação na divulgação do legado histórico da Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa."


1. Chega ao fim um dos mais notáveis blogues da nossa blogosfera. A notícia foi-me dada no passado dia 23, em Ílhavo...

E foi-me dada justamente pelo primeiro vice-almirante que eu conheci, pessoalmente, na vida, o Tito Peixe Cerqueira, filho da terra. (E que, por acaso, é o primeiro almirante de Ílhavo, o que não deixa de ser irónico, quando falamos de uma terra que tem no corpo e na alma o ADN do mar.) Não o conhecia pessoalmente antes, mas éramos, afinal, amigos do arquiteto José António Paradela que, nesse dia, partia, aos 85 anos, para a sua derradeira viagem, aquela que não tem regresso.

E, em conversa com o vice-almirante, agora na reforma, Tito Cerqueira, falámos inevitavelmente do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (de que ele era leitor), da Marinha, da Reserva Naval, da Escola Naval, etc., e de alguns amigos e conhecidos comuns. E veio então à baila o nome do Manuel Lema Santos, cujo blogue "Reserva Nacional", criado por ele (a sua origem rem0nta a 2006, embora com outros nomes) e mantido até há pouco tempo (desde 2016) com grande paixão, competência e dedicação.

Confesso que fiquei triste pela notícia, para mais naquela hora e lugar. Mas não quis começar a fazer o luto por mais uma perda de vulto (a seguir à perda de um grande amigo e um grande ser amigo, que era o  José António Paradela), sem antes confirmar, na Net, o que se estava a passar. De facto, ao chegar a casa, à noite, e ao clicar no link:


verifiquei só havia dois postes, um de 2021 e outro de 2023 (este datado de 16 de janeiro, que começava justamente com uma "nota do autor do blogue". 

Já aqui escrevemos em tempos: "Sem desprimor para outras páginas sobre a nossa Marinha, esta é uma verdadeira enciclopédia, de consulta obrigatória, sobre a nossa armada, nomeadamente do tempo da guerra do ultramar / guerra colonial."

E tínhamos orgulho nesse blogue da nossa blogosfera, para mais criado por um histórico do nosso blogue onde tem nada menos do que 6 dezenas de referências. A história da Reserva Naval da nossa Marinha (1958-1992) é também também parte da nossa história

Na realidade, essa "enciclopédia viva" está para todos os efeitos,  fechada, ou sem acesso... Mas eu ainda esperava, ontem,  que fosse só para "obras de remodelação", como a gente faz com as nossas casas, pelo menos ao fim de 30 ou 40 anos: fecha a casa, por uns meses, para obras...

Ontem à tarde, quis tirar a limpo as minhas dúvidas e telefonei ao Manuel Lema Santos, coisa que não é muito habitual em mim, não gosto de usar e abusar do telefone dos amigos e camaradas da Guiné. Afinal tivemos uma longa conversa, de 54 minutos e 40 segundos em que ele me explicou as razões por que "descontinuou" o seu precioso e insubstituível blogue.

Não estou autorizado (ou melhor: não vou cometer a indelicadeza de reproduzir aqui a nossa conversa, franca e desinibida, como é habitual entre nós, que não temos de afinar o nosso pensamento pelo mesmo diapasão mas respeitamos-nos mutuamente, começando por reconhecer a nossa comum condição de antigos combatentes na Guiné, que já se conhecem pessoalmente desde 2006, e, em segundo lugar, o de criadores e editores de blogues que, quer se goste ou não, são uma referência para muita gente que se interessa pela história da guerra do ultramar / guerra colonial, tendo consumido num caso e no outro muitos milhares de horas trabalho...

O que eu posso adiantar, muito resumidamente,  é que: 

(i) o Manuel Lema Santos acabou de fazer oitenta aninhos, em dezembro passado;

(ii) sente-se no direito de fazer uma "sabática", embora se sinta ainda em boa forma, física e intelectualmente;

(iii) há cansaço bloguístico, o blogue deixou de estar "on line" (todavia os seus ficheiros estão salvaguardados e pode ser reativado em qualquer momento);

(iv) com tempo e vagar, e sem prejuizo da sua vida pessoal e familiar (que ele agora põe em primeiro lugar), tem outros projetos: por exemplo, uma eventual publicação (e ele está à vontade neste domínio porque conhece bem o setor editorial e indústria gráfica),  para o material imenso (fotografia, infografia, texto...) que foi recolhendo, dos arquivos e dos seus camaradas da marinha que com ele têm colaborado; 

e , por fim e não menos importante (v) deixou-me transparecer alguma mágoa pela indiferença e  ingratidão que, concordamos os dois, é uma pecha nacional, é uma das "nódoas negras" que mancham a "farda branca" dos portugueses (sejam eles militares ou civis)...

De facto, nenhum de nós está à espera de uma comenda mas quando se faz oitenta aninhos  depois de muito trabalho "pro bono", a favor dos outros (através das associações, organizações, blogues, etc.) sabe bem o reconhecimento e o apreço de quem direito, e sobretudo dos nossos pares...

De qualquer modo, o blogue está também, em grande parte,  salvaguardado com as capturas feitas pelo robô do Arquivo.pt. a última das quais em 19 de março de 2021, às 6h30. Dei a notícia  ao autor, que desconhecia a existência do Arquivo.pt,  da FCT - Fundação para a Ciência  e Tecnologia. 

Eis o (novo) endereço da "Reserva Naval" (agora em arquivo morto):

https://arquivo.pt/wayback/20210310063043/https://reservanaval.blogspot.com/



Leiria > Monte Real > Palace Hotel > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de Abril de 2012 > Manuel Lema Santos e Maria João (Massamá / Sintra)... O Manuel Lema Santos fez, antes do início do almoço, uma breve alocução, em nome da direção da AORNA - Associação dos Oficiais da Reserva Naval.  

O Manuel Lema Santos (ex-1º ten da Reserva Naval da Marinha de Guerra, imediato da LFG Orion, Guiné, 1966-1972), e que foi um dos nossos camaradas que esteve no nosso 1º Encontro Nacional, na Ameira, em 2006, ofereceu ao blogue, na pessoa do Luís Graça, um exemplar do "Anuário da Reserva Naval, 1958-1975", da autoria de A.B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado (Lisboa, 1992), um exemplar autografado do "Anuário da Reserva Naval, 1976-1992", de Manuel Lema Santos (Lisboa: AORN, 2011), bem como vários exemplares da última edição da publicação periódica da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval (AORN, nº 19, outubro de 2011), e ainda uma medalha comemorativa da fundação da AORN, em 1995.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados  


2. Nada melhor do que reproduzir aqui, com a devida vénia, a "nota explicativa" que o aut0r do blogue quis deixar para os seus leitores, na hora da despedida.  

Aqui fala-se, polidamente, em "suspensão", e não em "fecho definitivo"... E deixam-se agradecimentos a quem ajudou o autor. E, por fim, ficam também sentidas palavras de apreço e gratidão para com  a Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa que "encarnou, para todos os Oficiais que por lá desfilaram, muito mais do que uma forma, dita civilizada, de cumprimento do serviço militar obrigatório".

Nota do autor do blogue:

Desde 2006 que entendi publicar regularmente alguns retalhos da História da Marinha Reserva Naval, em que aquela classe de Oficiais teve primordial importância na segunda metade do século XX, muito por virtude da Guerra do Ultramar.

Ao longo dos anos a Marinha acabou por formar quase 4.000 oficiais da Reserva Naval. Mais exactamente 1712 entre 1958-1975, conforme Anuário da Reserva Naval da autoria dos Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado e outros 1886 entre 1976-1992, conforme Anuário da Reserva Naval referente àquele período e da autoria de Manuel Lema Santos, antigo oficial da Reserva Naval, licenciado no posto de 1TEN RN em 1972, regressando nesse ano à vida civil.

Expresso aqui o meu profundo agradecimento à Instituição Marinha, nomeadamente ao Arquivo de Marinha, Biblioteca da Marinha, Revista da Armada e Museu de Marinha que me permitiram consultar, compilar e coligir muita da documentação que estruturou um blogue simples, ainda que pretendendo exibi-lo publicamente com um mínimo de qualidade histórica.

Não posso deixar de acrescentar um agradecimento aos inúmeros apoios que tive de Camaradas com documentação e imagens cedidas, sem os quais não me teria sido possível alcançar este objectivo, modesto mas determinado por forma a manter algum rigor histórico. 

Um último obrigado a todos os que, com comentários ou pessoalmente, me incentivaram por qualquer forma à continuação ao longo do tempo.

No outro lado da margem os que gostam de brilhar plagiando o trabalho de outrém, sem sequer se preocuparem com a qualidade da cópia ou as referências de origem. Felizmente foram muito poucos e sem expressão.

Por cansaço natural e um olhar familiar que me permita ainda tentar zelar pelo futuro de filhos e netas com natural apreensão, entendi suspender a publicação do blogue pessoal www.reservanaval.blogspot.com,  com um natural e sentido pedido de desculpas àqueles que me seguiram ao longo dos anos, para os quais manterei sempre a minha disponibilidade.

A Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa encarnou, para todos os Oficiais que por lá desfilaram, muito mais do que uma forma, dita civilizada, de cumprimento do serviço militar obrigatório. Ao tempo, uma opção pessoal possível num percurso universitário completo ou em vias de o ser, passagem obrigatória no rumo de vida traçado, ao serviço da cidadania e do país onde nasceram.

Diria melhor e mais correctamente, da Pátria. A evasão temporária ao amplexo paternalista, algum inconformismo e a necessidade inadiável de transpor aquela linha no horizonte terão sido algumas das motivações.

Outras tantas, eventualmente condicionadas por aspectos pessoais, profissionais, familiares e também económicos. De um lado, incertezas, anseios, dúvidas tumultuosas, sentimentos contraditórios e algumas perspectivas goradas, mas também natural confiança e esperança.
Do outro, o salto no desconhecido, arrojado mas sonhador, a aventura e o desejo de bem cumprir.

Se para muitos configurou uma escolha alternativa enquanto no desempenho de um dever cívico, para outros terá representado uma ponte provisória para a vida profissional. Ainda para alguns, em menor número mas mais tarde, a própria carreira profissional.

Escola Naval, viagem de instrução e juramento de bandeira marcaram, em sucessão, formação académica e humana, camaradagem e também crescimento. Em cenários de guerra como Moçambique, Angola e Guiné, mas igualmente em S. Tomé, Cabo Verde e no Continente, quase quatro mil Oficiais da Reserva Naval desempenharam funções ao serviço da Marinha de Guerra Portuguesa.

A navegar ou em terra, como oficiais de guarnição ou nos fuzileiros, todos fazendo parte do transbordante testemunho de solidariedade, generosidade e convívio partilhado com as Unidades e Serviços onde permaneceram. Ombreando com militares e camaradas de outros ramos das Forças Armadas. Ganhando acrescido sentido de responsabilidade e maturidade. Grangeando pelo cumprimento, pelo exemplo e pela dedicação, a amizade, admiração, respeito e camaradagem de superiores, subordinados e também das populações com que contactaram.

Na memória que o tempo não apaga, esfumam-se relatos, acontecimentos, documentos, registos, afinal História. História da Reserva Naval e da Marinha de Guerra que lhe deu origem. No espírito Reserva Naval, um passado comum a preservar.

Uma palavra para todos aqueles que nos deixaram prematuramente, chamados para a última viagem. Estarão sempre connosco!

Manuel Lema Santos
1TEN RN 1965/1972
Guiné, LFG "Orion" 1966/1968;
Comando Naval do Continente, 1968/1970;
Estado-Maior da Armada, 1970/1972

[Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição dese poste: LG]
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Nota do editor:

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Foi uma belíssima escritora, de um ecletismo com forte propensão para a literatura juvenil e uma vertente memorial de grande rigor e sobriedade. Nunca se deixou condicionar pelo facto de ser casada com António Ferro, o responsável pela propaganda do Estado Novo. O que aqui se refere é a sua vivência em Bolama, o pai era o responsável da capitania do Porto, chegou aqui pela primeira vez com 13 anos, foi uma estadia traumática, a mãe faleceu provavelmente de febre-amarela, foi recambiada com o irmão pequeno para Portugal, voltará mais tarde, entretanto o pai voltou a casar, há mais irmãos, mandou a roda da fortuna uma nova colocação em Bolama, ela praticamente omite a segunda estadia, mas que aquela Guiné a subjugou é bem patente nesta "África Raiz" publicada em 1966, é uma elegia onde se misturam a ode triunfal com atmosferas misteriosas, onde pesa muitíssimo o exotismo, a floresta densa, os intermináveis fios de água. Lê-se com imenso agrado esta poetisa marcada pelo modernismo, cantando a África mãe, empolgada, chamando-lhe mater e matriz: "tu, África és raiz, és raiz".

Um abraço do
Mário


Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense

Mário Beja Santos

A escritora Fernanda de Castro (1900-1994) viveu na infância em Bolama, e "África Raiz", poema publicado em 1966 é uma obra modernista eivada de recordações desse tempo juvenil em que o pai dirigia a capitania de Bolama, não faltam no livro as referências que a memória reteve, as florestas, rios de água, aromas, o sortilégio das noites africanas, batuques, a flor do cajueiro, as danças. 

À data da edição, Fernanda de Castro era já uma autora prolífica, detentora de uma obra volumosa que se estendia pela poesia, pelo romance, teatro, literatura infantil e romance. Mariazinha em África foi o seu maior sucesso, remexeu neste romance as vezes que foram necessárias, de acordo com a necessidade de mudar o olhar colonial, evolutivo, de acordo com o ideário do Estado Novo. O poema "África Raiz" é dedicado à terra de Bolama, onde a sua mãe faleceu e está sepultada.

O tom exaltativo e exultativo arranca logo nos primeiros versos:

“África,/ no teu corpo rugem feras,/ uivam fomes e medos ancestrais,/ no teu sangue há marés,/ na tua pele há dardos e punhais./ Ventre de Continente,/ és mater e matriz./ Ásia é semente, Europa é flor,/ outros serão essência ou tronco,/ tu, África, és raiz”

Fala-nos de florestas venenosas de gigantes, de ciclopes vegetais, de pirogas e crocodilos, do rastejar das cobras, do esvoaçar dos jagudis, é uma permanente apoteose de musicalidade, entremeando-se do cheiro do almíscar, dos corpos em convulsão, não faltam tapetes vegetais, florestas fechadas, contas e missangas, o inevitável poilão, e lança-se, empolgada, como que desafiando tudo quanto a memória reteve:

“Ó África, raiz de quantas Áfricas/ pelo mundo espalhadas lhe consentes./ África mítica dos mitos/ de cinco Continentes./ África negra em cujas veias corre/ um sangue denso e grosso./ África impenetrável, obstinada, desbravada a machado, troço a troço”

Atenta aos costumes do quotidiano, deixa-nos um outro apontamento da memória: 

“Mulheres e bajudas/ lavam roupa no rio./ Veias de sangue branco, os rios,/ quilómetros de veias que percorrem/ a terra calcinada,/ que alimentam/ o arroz e dessedentam/ os pés de milho e de mancarra./ Escondida no mangue,/ uma piroga, sem remos, sem amarra,/ parece um velho tronco,/ um crocodilo à tona de água”.

A elegia é permanente, marcou-lhe a juventude aquela Bolama, como veremos mais adiante no seu texto "Ao Fim da Memória I, 1906-1939", deixemo-nos por enquanto com a sua ode triunfal:

“África das manhãs de Paraíso, com pombas e gazelas e açucenas/, com doces frutos nunca proibidos,/ e cantos de marimbas e de avenas”

Há o sino da igreja, e logo me ocorreu que a Igreja de Bolama que ela frequentou foi devorada pelo incêndio, aquela em cuja missa participei oficiada em crioulo é outra, crianças e adultos cantando, talvez os convertidos Mancanha e Manjaco, Balanta e Baiote, Papel e Bijagó que ela também conheceu. Fernanda de Castro é uma sexagenária avançada quando produziu "África Raiz", brotou-lhe espontânea aquela África voluptuosa e seguramente as lembranças da jovem adolescente que ouviu trovões e se impressionou com o desabamento das águas, como escreveu:

“E de repente/ uma nuvem de chumbo tapa o Sol,/ como asa de agoiro,/ e um vento negro escarva, muge, arranca,/ com a fúria de um toiro./ O céu ruge trovões, estoira lumes/ nas copas incendiadas, as rajadas/ retalham como gumes/ de aceradas espadas,/ arrancam arrozais, abrem crateras,/ uivando como lobos,/ como esfaimadas feras./ Tudo é calor,/ suor,/ tudo é cinzento,/ o céu e o vento”.

Nas suas memórias, inevitavelmente que tudo começa pela apresentação de Bolama, onde chega com a mãe e o irmão, receção apoteótica do pai, lembra-se que ao longo do cais havia muita gente, “Deram-me na vista, acima de todos, os Bijagós com os seus saiotes de palha, os Mancanhas embrulhados em grandes panos azuis e os Mandingas com as suas cabaias de um branco imaculado”. Sobressaía o Palácio do Governo, o edifício mais imponente, mas sem rasto de beleza e ali perto o edifício da capitania, logo se agradou de um jardim em que havia bananeiras e papaeiras e uma grande quantidade de hibiscos de grandes flores encarnadas.

“A cidade de Bolama era na realidade uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, por exemplo, se não fossem os trajes garridos, os planos coloridos das mulheres, os balaios que traziam à cabeça, e se não fossem também os capacetes coloniais, que os brancos eram obrigados a usar se queriam cometer a imprudência de sair à hora do calor”.

 Criou amizades, a sua vida era simples e agradável, faziam a sesta sobre a proteção de grandes mosquiteiros de tule, à noite havia sempre visitas, ela tem 13 anos, não se apercebe das dores de cabeça da mãe que irá inopinadamente morrer de febre amarela. E é o regresso dramático a Lisboa com o irmãozinho, uma viagem que se arrasta com uma estadia inesperada em Cabo Verde. Manda a roda da fortuna que se diga que o pai irá de novo casar e anos depois será de novo colocado na Capitania de Bolama, viagem de navio, não se recorda exatamente se foi no Bolama se no Guiné, de novo uma avaria em Cabo Verde, ficaram um mês retidos em S. Vicente, onde um jovem se mostrou galante, ela totalmente indiferente e um belo dia chegaram a Bolama, não nos ficará registo do que aqui se passou.

O seu legado principal, insiste-se, é o romance "Mariazinha em África", um sucesso de décadas. Leopoldo Amado no seu trabalho sobre a literatura colonial guineense dar-lhe-á um grande apreço. Uma outra nota singular é referir que outra escritora passou por Bolama, e deixou-nos páginas tumultuosas da época das chuvas, foi Maria Archer.

Lê-se o testemunho de Fernanda de Castro e o que mais pesa é a morte da sua mãe, aquela noite em que ela e o irmão foram tirados do sono e rapidamente recambiados para Bissau:

“Eu estava exausta, sacudida por maus pressentimentos, mas apesar disso adormeci. Quando o meu pai chegou, desfeito, com ar alucinado e as lágrimas a correrem-lhe em fio, esqueceu as palavras que por certo preparara e disse-me apenas, apertando-me convulsivamente:
- Morreu! A tua mãe morreu há duas horas. E agora, agora, o que vai ser de nós. E eu não conseguia dizer nada, chorava também convulsivamente, misturando as minhas lágrimas com as dele.”


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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)