sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25848: Manuscrito(s) (Luís Graça) (253): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - II (e última) Parte


Lisboa > Hospital Real de Todos os Santos (1492 - 1775)  <c.  1ª metade do séc. XVIII > Por menor de Painel de azulejos de oficina de Lisboa,  existente no Museu da Cidade, Lisboa. (Com a devida vénia...)



I Parte

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

II Parte

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O provedor

4.2. O almoxarife

4.3. O hospitaleiro e o vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar


Artigo originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, 



O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo:

II (e última) Parte (a)


4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor


À frente do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS) (também conhecido na cidade pelo Hospital dos pobres) estava o provedor, o official principal, que deveria ser "pessoa honrada, e de bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" (Regimento...,1984: 35). 

De preferência, a escolha deveria recair num membro do alto clero ou, em último caso, um leigo solteiro, letrado, que fosse da confiança pessoal e política do rei, ou seja, da corte.

De facto, por ser "couza tam grande, e de tão grande maneo" (sic), o hospital deveria ser administrado com "muy grande recado", tanto no que tocava ao "serviço de nosso Senhor", como no que dizia respeito à "conservação da mesma Caza" que - sublinha enfaticamente o outorgante do seu regimento - foi "feita para obras de piedade, e de serviço de Deoz " (Regimento...,1984: 35). Daí o provedor dever "ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos".

A avaliar pelo menos pelo espírito e letra do citado regimento as principais funções do provedor (Quadro 2, em baixo) não seriam então muito diferentes daquelas que hoje em dia são atribuídas à actual figura do presidente do conselho de administração   dos nossos hospitais.

Repare-se que a preocupação em atribuir explicitamente ao provedor a função de zelar pelo cumprimento da missão do HRTS enquanto instituição. Mais concretamente:

  • Assegurar a realização da triagem dos doentes, de modo a que no hospital não fossem admitidos doentes incuráveis ou vítimas da peste (estes últimos serão posteriormente referenciados para a Casa da Saúde, em Alcântara, nos arredores da cidade);
  • Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não pudessem deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios;
  • Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas (um problema que se vai agravar na Lisboa das Descobertas);Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.



A partir de 1564, com a passagem da administração do hospital para a Misericórdia de Lisboa, o título de provedor passa a ser substituído pelo de enfermeiro-mor:

Essa tradição irá manter-se até 1913, ano da criação dos Hospitais Civis de Lisboa e da extinção do cargo de enfermeiro-mor;

Em 1913, a nova primeira figura do hospital passa a chamar-se director.

Em 1927, em plena ditadura militar, o cargo de enfermeiro-mor é restabelecido e manter-se-á durante o Estado Novo (Graça, 1996).

O mesmo Capítulo III do Regimento do HRTS define a área de influência do estabelecimento, o qual devia cobrir a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".

Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.


4.2. O Almoxarife

O almoxarife - que devia ser "homem de bem, e de fiança, e bemcriado" (Capº VIII, pp. 57 e ss.) estava encarregue fundamentalmente dos seguintes funções:

  • Contabilidade e tesouraria (cobrança de receitas, em dinheiro e em géneros, pagamento de despesas, incluindo os vencimentos e salários, ou seja as "tenças, e mantimentos dos Officaes e Capellaes, e mercieiros e todas as outras pessoas q no dito Esprital servirem", p. 58), no que era auxiliado por um escrivão;
  • Aprovisionamento do hospital, ou seja, o "carrego de (...) comprar todas aquelas couzas q se houveremm de comprar por grosso, e em quantidade".


O regulamento vai ao pormenor de estipular que o almoxarife "não faça despesa de nenhuma couza grande nem pequena, salvo por assinados (...) e mandados do Provedor" e na presença do "Escrivãoq temos ordenado da receita e despeza do dito Almoxarife" (p. 58), "sob pena de perdimento do Officio e mais qualquer outra q for nossa merce" (p. 57).

Este escrivão seria já um precursor do moderno contabilista. Competia-lhe fazer a escrituração de três livros diferentes:

  • "Terá livro bem decracrado de todas as rendas, bens propriedades, e fazenda qualquer outra" do hospital bem como o nome daqueles "a quem sam aforadas, e emprazadas", etc. (Capº VIII, p. 61);
  • Terá ainda um livro da despesa diária;
  • Bem como um livro de registo anual de "todolos meninos Engeitados" (p. 62).

Esta figura é distinta do outro escrivão (tabelião ou protonotário) a que se refere o Capº I, "que ha de haver (...) dante o Provedor do dito Esprital". Não era residente no hospital e nem sequer tinha direito a remuneração:

"Este não hade haver mantimento algum pelo Proveito do seu Officio, hade escrever em todolos feitos q se tratarem perante o Provedor, fara as Escrituras demprazamentos das propriedades e todo o mais q a isto pertencer, segundo q agora já o faz" (p. 20).

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

A minúcia do regulamento é de tal ordem nem sequer deixou de fora as funções de categorias de pessoal que corresponderiam hoje ao agrupamento do pessoal operário e auxiliar dos nossos estabelecimentos hospitalares, tais como:

  •  o despenseiro (Capº VI), 
  • a costureira ( ou alfayata ) (Capº XIII) 
  • e a lavadeira (Capº XIV).

Ainda ao nível dos serviços de apoio, havia a figura do vedor (Capº V, p. 51) a quem cabia "a principal parte do Governo do dito Espitral, e da boa Ordem e Conservação das couzas delle". As suas funções seriam, pois, de intendência e supervisão dos serviços hoteleiros (e, em particular, da alimentação dos doentes e do pessoal).

Parte das tradicionais funções da gestão hoteleira também eram da competência do hospitaleiro (ou espritaleiro) (Capº XI) e da hospitaleira (ou espritaleira) (Capº XV).

Essas funções eram basicamente as de administrar o serviço de rouparia e de limpeza, mas também de supervisão e avaliação do serviço de enfermagem:

"O dito Espritaleiro he obrigado a prover muy a meude e ao menos duas vezes no dia se os Enfermeiros cumprem o q por bem de seus Officios devem, e se fazem de dia, e de noute as piedades, e serviço dos doentes, q por bem de seus Regimentos sam obrigados, segundo a necessidade, q a cada hum tever, e na quello q vir, q não cumprem segundo sua obrigaçam os amoestará, q se emmendem, e fará saber ao Provedor o que não fizerem bem feito, ou de todo não cumprirem para nisso prover, e fazer como o cumpram, e fação o q nisso são obrigados" (pp. 78-79).

O hospitaleiro tinha ainda o "carrego da Caza dos pedintes, andantes, q se hamde recolher na Caza q para elles he ordenada no dito Esprital" (p. 80). 

É provável que houvesse conflito de papéis entre o hospitaleiro e o vedor: em todo o caso o primeiro tinha originalmente um estatuto remuneratório superior ao segundo.


4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

Quanto aos praticantes da arte de curar, ou prestdaores de cuidados de saúde (como diríamos hoje), o regulamento do hospital previa originalmente as seguintes categorias:

  • Um físico
  • Dois cirurgiões
  • Dois ajudantes de cirurgião
  • Um boticário
  • Três ajudantes de boticário
  • Doze enfermeiros (dos quais três com a categoria de enfermeiro-mor)
  • Um barbeiro-sangrador
  • Uma cristaleira (mulher encarregue de ministrar clisteres)

Todos eles deveriam residir no Hospital, à exceção de um dos cirurgiões e do barbeiro-sangrador.

Ao físico cabia fazer a "visitaçãode todos os doentes (...), duas vezes no dia (...), pela menhã em sahindo o sol, e à tarde até às duas" (Capº IV, p.47), tanto nas enfermarias como nas "outras casas". 

Nesta visita diária, era acompanhado pelo provedor, além do vedor e do hospitaleiro, pelo enfermeiro-mor da respectiva enfermaria e, ainda, pelo cirurgião e pelo boticário (ou seu ajudante).

Este capítulo é notável pela concepção que já havia na época do que deveria ser a organização do trabalho em equipa no hospital. Na prática, não sabemos como as coisas funcionavam. Em todo o caso, na visita diária aos doentes internados, o enfermeiro-mor (categoria equivalente ao actual enfermeiro-chefe) levava uma "taboa" donde constava o nome e o número da cama dos enfermos:

"Feita a vezitação dos pulsos dos doentes" e vistas "as agoas [ urina ] de cada hum q lhe serão dadas pelos Enfermeiros pequenos" (prática a que se resumia, então, e no essencial, o diagnóstico clínico), o físico "bem considerando (...) sobre o remedio de cada hum paciente, ordenará as mezinhas de cada um, segundo q lhe melhor parecer, e as mandará compoer, e ordenar ao Boticário ".

Este último, por sua vez, "traerá consigo huma imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada" na qual o Físico (ou o boticario, se "for melhor Escrivão, e mais despachado" do que aquele) "assentará as receptas e mezinhas, q ordenar para cada hum doente em titulo apartado", isto é, "purgas apartadas por sy e de todas outras qualidades de mezinhas, debaxo doutro titutlo", por "serem tam desvariadas (umas) das outras". De qualquer modo, o físico devia "assinar (...) na dita imenta as ditas receptas" (p. 48).

O enfermeiro-mor, por sua vez, registava na respectiva "tavoa (...) debaixo do titulo" de cada doente, a dieta prescrita pelo físico, "para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador". Esta prescrição era igualmente assinada pelo físico ou pelo cirurgião.

O físico tinha ainda que fazer o que hoje chamaríamos o serviço de banco de urgência (ou, talvez melhor, de consulta externa), nomeadamente "ver todolos enfermos q á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, q para suas curas lhe parecer compridouro". Devia ainda "vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, q á Fizica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor q poder na casa apartada, q para oz ditos doentez hordenamos no dito Esprital" (p.49).

Notável é também, para a época, a preocupação do legislador com a eficiente utilização dos recursos, e nomeadamente dos medicamentos, obrigando o físico a "sempre prover a imenta das receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, por q ás vezes se manda fazer huma mezinha, e o paciente a não toma". Ou seja, já na época se punha o problema da aderência à terapêutica e da sobremedicação. Ora, para que tal não aconteça, o médico "proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor q se possa fazer e falloha de maneira q se não possa fazer couza indevida e seja tudo aproveitado como devem " (p. 49).

O regimento do físico aplicava-se igualmente ao cirurgião (Capº XII). No hospital estava prevista existência de dois celorgiaes, um dos quais residente e com funções de ensino:

Que "o dito Celorgiam q hade viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mossos q hade ter, e q hamde ser pagos das rendas do Esprital, para aprenderem theorica, e pratica , e poderam ficar ensinados para o serviço do dito Esprital" (p. 83). Esta disposição prefigura já a criação da primeira escola de cirurgia do país e do internato complementar de cirurgia.

Os dois cirurgiões eram, tal como o físico, obrigados a visitar duas vezes ao dia "todos os enfermos (...) q de Cilurgia ouverem de ser curados" (p. 83).

O enfermeiro-mor (Capº X), que chefiava cada uma das enfermarias, tinha "cuidado principal da cura, e da vizitação dos doentes", devendo ser "homem caridoso, e de boa condição, e sem escândalo". Na época, e durante muito tempo, os enfermeiros eram recrutados entre o pessoal religioso, nomeadamente das ordens hospitaleiras.

Os enfermeiros tinham o "carrego de todo o serviço dos doentes" (que deviam servir "com toda caridade , e amor q devem por Deoz, e por os proximos"), incluindo a higiene pessoal do doente, a muda das camas, a limpeza das enfermarias e dos "ourinoes". Esta última (duas vezes por semana no verão e uma por semana, no inverno) era sobretudo uma tarefa dos seus ajudantes (ditos enfermeiros pequenos ), bem como dos escravos (que, trazidos de África, chegaram a constituir 10% da população de Lisboa da época).

Nesta altura, já existia (ou estava previsto) o trabalho nocturno e por turnos em enfermagem, tal como se depreende deste capítulo: "Item sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos (...) de Vellarem todas as noutes agyros todos os Enfermos de suas Enfermarias" (p. 71).

Além disso, retirar, amortalhar e enterrar os mortos com discrição e dignidade era uma responsabilidade da enfermagem. 

Assim, em caso de falecimento de algum doente, os enfermeiros "tiraloham do leito onde gouver pelo corredor q está detraz dos leitos por q os outros doentes os não possam ver, nem recebam com isso torvaçam , e levarão o tal finado á Igreja" e dali para o cemitério, depois de prestado o serviço fúnebre religioso (pp. 72-73).

A administração aos doentes das "purgas, lamedores, unções" e demais mezinhas, prescritas pelo médico (a que se resumia, no essencial, a panóplia terapêutica da época), também era tarefa dos enfermeiros. 

Tinham, além disso, um armário onde guardavam "alguns repairos convem a saber dasucar rosado, e agoas de cheiro, e outros cordiaes, e asy cheiros para os darem aos doentes de noute, e de dia quando lhe parecer necessario".

O fornecimento desses produtos ("couzas do repairo dos doentes") era decidido pelo provedor e pelo físico, de acordo com o que era de "mais proveito para os doentes, segundo as suas paixões, e Enfermidades" (p. 75).

Competia ainda ao enfermeiro estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937. 21-22).

Por fim, era esperado que o enfermeiro cumprisse as suas tarefas, não apenas com "muy grande cuidado", como também "com toda boa vontade, e mansidam, e sem escandalo dos doentes, e com toda a caridade, e consolando-os em suas paixões, e muy ameude lhe lembrando, q se encomendem a Nosso Senhor e a nossa Senhora" (p. 76).

Pelo perfil exigido a alguns dos oficiaes do esprital, presume-se que, pelo menos, o hospitaleiro, a hospitaleira, os enfermeiros e as enfermeiras fossem originariamente recrutados entre o pessoal das ordens religiosas. O restante pessoal seria laico.

Noutros estabelecimentos hospitalares de menor dimensão e importância, o número de oficiais (grandes e pequenos) era mais reduzido (caso de Coimbra, Porto, etc.)

Na cidade de Coimbra, e antes da fundação do primeiro hospital geral, em 22 de Outubro de 1508, na sequência da política de centralização de D. Manuel I, terão existido pelo menos 17 pequenos estabelecimentos assistenciais (na maior parte, hospícios e albergarias), segundo a pesquisa documental feita por Ferrão (199?). Coimbra era então uma cidade que, após a reconquista cristã, em 1064, se irá desenvolver à sombra do Mosteiro de Santa Cruz (fundado em 1130) e, mais tarde, da Universidade (que se instala definitivamente nas margens do Mondego em 1531)

O Hospital da Conceição e da Convalescença, em Coimbra, que resultou da fusão dos demais estabelecimentos assistenciais até então existentes, com excepção do Hospital e da Albergaria de Milreus e da Gafaria de S. Lázaro, situava-se na Praça Velha. Com portal virado para poente, sobrepujando uma varanda de parapeito, possuía três naves. Mais tarde, começou a ser conhecido por Hospital da Praça (Ferrão, 199?, p. 73).

De menor dimensão do que o HRTS, regia-se por um regulamento semelhante, embora as necessárias adaptações. Dirigido por um provedor, de nomeação régia, o hospital de Coimbra tinha também menor número de oficiais do que o de Lisboa (Ferrão, 199?):

  • O hospitaleiro exercia as funções inerentes à enfermagem, além de ter a seu cargo a despensa e a tesouraria;
  • Ao escrivão competia a contabilidade hospitalar e a fiscalização património;
  • Quanto ao capelão, além da assistência religiosa, tinha também a seu cargo o registo dos doentes.

"O tradicional arcão ferrageado, onde se arrecadavam os dinheiros da instituição, possuía três chaves das quais, uma, estava nas mãos do Provedor e as restantes, uma nas mãos do Hospitaleiro e a outra nas do Escrivão" (Ferrão, 199?74).

O hospital tinha, pelo menos, um físico que, durante o dia, devia visitar os doentes, pelo menos duas vezes. O recurso ao barbeiro-sangrador e ao cirurgião era feito de acordo com as necessidades. Também não havia botica própria.

Em 1548, por provisão régia de 24 de Junho, a administração do hospital geral de Coimbra é confiada aos cónegos seculares de S. João Evangelista (ou Lóios, como eram popularmente conhecidos). O seu provedor passou então a ser recrutado entre gente desta congregação. Vinte e cinco anos depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra, o Hospital da Conceição e da Convalescença passa a funcionar como hospital escolar.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ainda em 1830 existia a figura da cristaleira, no Hospital de São José, e durante muito tempo foi um ofício mecânico exercido cumulativamente com o de parteira. No Séc. XVIII uma cristaleira chegava a fazer 400 clisteres por mês!5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar

As diferenças de estatuto do pessoal hospitalar eram já visíveis ao nível remuneratório (vd. Quadro I, em anexo):

  • No ano de abertura do HRTS, em 1504, o leque remuneratório, em dinheiro, seria originalmente de 15 para 1;
  • A remuneração média anual rondaria os de 3$800 réis (Máximo 30 mil, mínimo 2 mil);
  • E o total dos encargos com os seus mais de cinquenta oficiais grandes e pequenos ultrapassava os 250$000 por ano, não contando com outros custos com o pessoal que incluíam formas de pagamento indirecto, em géneros (alojamento, alimentação e até vestuário).

De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal do HRTS deveriam representar cerca de 15 por cento do total.

O orçamento global deste hospital deveria, pois, ser superior a 1600$000 réis; e mais de 60% das receitas seriam muito provavelmente consagradas a custear os encargos com a alimentação tanto dos doentes como do pessoal. Sabemos que, com o tempo, as despesas aumentaram exponencialmente, e o nº oficiais grandes e pequenos terá atingido as 8 dezenas em meados do séc. XVIII (Alberto et al, 2021).

De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:

  • A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
  • A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS;
  • Refira-se ainda a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, que exercia funções de ajudante de lavadeira e que tinham apenas direito a pagamento em géneros (alimentação, alojamento e vestuário).

O provedor (o equivalente hoje ao presidente do conselho de administração do hospital) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito nem a alojamento nem a alimentação, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira, os quais eram pagos à jorna)

O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).

Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).

O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.

No que respeita ao pessoal médico e paramédico, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião, em termos de estatuto remuneratório. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o primeiro capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador. Estranha-se, por outro lado, a não existência de um cristaleiro.

O regimento também é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).

Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.


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Referências Bibliográficas (a rever)

BASTO, A. M. (1934) - História da Misericórdia do Porto, Vol. I. Porto: Santa Casa da Misericórdia do Porto.

CORREIA, F.S. (1981) - Misericórdias. In: Dicionário de História..., op. cit.. 1981. Vol. IV, 1981. 312-316.

CORREIA, F.S. (1984) - Prefácio. In: Regimento..., op. cit. 1984

Dicionário de História de Portugal (Dir. de J. Serrão) (1981). Porto: Figueirinhas.

Dicionário da História de Lisboa (Dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena). Lisboa: 1994.

FERRÃO, A. S. S. (199?) - Os hospitais de Coimbra. Gestão Hospitalar. 199? 73-79.

FERREIRA, M. E. C. (1981) - Capital. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 462-465.

FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).

LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, 2 Volumes. Lisboa: D. Quixote; Ordem dos Médicos (1ª ed., 1899).

NETO, M. L. A. M. C (1981) - Assistência Pública. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 234-236.

PINA, L. (1938) - Aspectos da vida médica portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Casa Holandesa.

Regimento do Hospital de Todos-os-Santos (1984). Lisboa: Hospitais Civis de Lisboa (facsimile da 1ª edição, 1946).

 
(Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia. Estamos ainda a lê-lo.)


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(a) Fonte / Source: Versão adaptada e actualizada de: GRAÇA, L. (1994) - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994) 26-31.

Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

 

Categoria (ou 'título')Remuneração

anual em espécie

Remune-

ração em géneros

Perrfil psicoprofissional (Requisitos)
  UnidadeTotal  
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  

Pessoal    médico e paramédico

     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor  (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor   (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro-sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário

 

Quadro 2 - Funções do provedor do HRTS

Funções

Descrição

Gestão financeira

Gerir as receitas (rendas, doações, exploraçãodirecta) e as despesas (tenças, alimentação, mesinhas)

Gestão patrimonial

Arrendar, aforar e emprazar o património

Reparar e conservar os equipamentos e instalações

Controlo contabilístico

Autorizar, assinar e fiscalizar todos pedidos de despesa, e nomeadamente os do almoxarife

Conferir e assinar semanalmente os respectivos livros

Poder hierárquico e disciplinar

Exercer o poder hierárquico ("ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos")

Admitir, avaliar, suspender e substituir os funcionários

Manter a ordem e a disciplina, bem como controlar a assiduidade do pessoal

Triagem dos doentes

Assegurar que seja feita a triagem dos doentes, de modo a que no hospital não sejam admitidos doentes incuráveis, de acordo com o exame médico

Garantia de acessibilidade

Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não possam deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios

Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas

Qualidade dos cuidados

Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes ("de modo a que sejam muy curados, e providos em suas necessidades, e consolados com boas palavras ")

Participar na visita diária aos doentes

Prevenção dos riscos

Prevenir as infecções hospitalares, através nomeadamente da permanente limpeza e asseio das enfermarias

Eficiência

Assegurar a eficiente utilização dos recursos (incluindo os medicamentos e outros materiais consumíveis)

Fonte: Adapt. de Regimento do HRTS (1984)



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Guiné 61/74 - P25847: Notas de leitura (1718): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Às vezes, dentro do formalismo burocrático do que se escreve no Boletim Official afloram informações que nos esclarecem de que no distrito da Guiné há muito mais informações do que legislação, tarifas aduaneiras, nomeações e até acordos de paz. As informações sanitárias são cada vez mais pertinentes e detalhadas; temos agora o ato da posse de Bolama, a chamada Questão de Bolama chegou ao seu termo; o efeito da guerra europeia em 1870 (guerra franco-prussiana) teve inevitavelmente impact negativo no comércio guineense; sublinha-se que na zona do Churo o respetivo povo não deseja a paz, haverá também consequências com nova sublevação; e há representantes diplomáticos que revelam solidariedade pelas autoridades portuguesas, é o caso do agente consular francês Ovídio Urbain.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, de 1870 a 1872) (16)


Mário Beja Santos

A preocupação dominante das autoridades a partir da cidade da Praia é a fiscalização e o controlo da saúde pública, e assim vamos recebendo informações sobre o estado sanitário da Guiné como ocorre no Boletim Oficial nº42, de 15 de outubro de 1870:
“As moléstias reinantes neste distrito têm sido as endémicas na estação das águas, tanto nas colónias francesas como nas inglesas vizinhas deste distrito, não me consta que reine padecimento algum epidémico contagioso.
Choveu diariamente no mês de agosto findo, mais nas primeiras duas décadas e menos na última: geralmente as chuvas caíram mais de noite do que de dia. O vento não foi constante, soprou de todos os quadrantes, e todos deram chuvas, os dos quadrantes do sueste e sudoeste começavam por aguaceiros pesados precedidos de vento rijo. A atmosfera conservou-se mais húmida; o termómetro centígrado subiu por vezes até 31ºC. As chuvas têm abatido algumas casas a paredes de adobe e de taipa. O tecto do hospital acha-se especado (?) por terem estalado algumas peças do seu madeiramento com o peso da água das chuvas, de igual sorte têm partilhado algumas casas nesta vila. Os pântanos que se formaram no chão do gentio em roda desta vila lá estão; porém, o fosso que circunda a fortaleza já não conserva água estagnada. Febres intermitentes de todos os tipos, reumatismo, sífilis, alguns catarros pulmonares e quatro casos de cólicas secas, foram as doenças de que mais casos se deram.”
Assina o Chefe do Serviço de Saúde, José Fernandes da Silva Leão.

O Boletim Official n.º 43, de 22 de outubro, insere o auto de posse de Bolama na Guiné Portuguesa, procede-se à leitura da sentença arbitral do presidente Ulysses Grant, já aqui se reproduziram elementos essenciais do texto, mas vale a pena adicionar que o árbitro releva que nenhuma das partes deseja reclamar qualquer documento, na posse exclusiva da outra parte e nenhuma delas deseja ter advogado ou agente com relação a qualquer dos assuntos submetidos a arbitragem: “E tendo sido nomeado por árbitro uma pessoa expressamente designada para tal fim nos termos do sobredito protocolo, a qual cuidadosamente examinou cada uma das referidas exposições, manuscritas ou impressas, apresentadas ao árbitro e os documentos aduzidos a favor das mesmas…”

O Boletim Official n.º 44, de 29 de outubro, noticia que é prorrogado até ao fim do ano de 1871 o prazo marcado para serem declarados portos francos para o comércio de todas as nações os portos de Bissau e Cacheu na Guiné Portuguesa. E finda o ano com o Boletim n.º 52, de 24 de dezembro, com notícias da Guiné: “Em 7 de dezembro era pouco lisonjeiro o estado sanitário, e ótimo o alimentício; e o comércio achava-se quase paralisado, não só por causa das circunstâncias da atual quadra do ano mas também em consequência dos acontecimentos bélicos na Europa (presume-se que o autor se refere à guerra franco-prussiana), que bastante têm influído no movimento comercial deste distrito. Conserva-se sem alteração a ordem pública, achando-se ainda, contudo, a praça de Cacheu em estado de assédio, não obstante o gentio haver já pedido a paz que ainda está dependente da ida do Governador da Guiné àquele ponto, o que até então não havia podido realizar-se.”

Importa informar o leitor que há grandes lacunas nos volumes que estou a consultar na Biblioteca da Sociedade de Geografia, é o caso do ano de 1871, praticamente em falta, encontra-se uma referência no Boletim n.º 50, de 16 de dezembro, a nomeação do governador do distrito da Guiné-Portuguesa, trata-se do Capitão do Exército da África Ocidental António José Cabral Vieira, tendo sido exonerado o Capitão Joaquim Alberto Marques, que exercia interinamente a função.

Estamos agora no ano de 1872, no Boletim n.º 3, de 20 de janeiro, consta a portaria n.º 154, que reza o seguinte: “O Governador Geral de Cabo Verde dá conta da pacificação das tribos vizinhas de Cacheu e remete cópia da convenção feita no dia 15 de setembro último com os gentios da Matta, Bucau, Berny, Bassarel, Bianga, Cacanda, Bijapé, Capou e Caboiana, ficando abolidas as baixas contribuições que os navios mercantes pagavam a alguns régulos daquelas tribos e espera-se que brevemente haja inteira harmonia da tribo do Churo.”

No Boletim n.º 6, de 10 de fevereiro, temos um extrato de notícias da Guiné Portuguesa:
“Informa o novo Governador, o Capitão António José Cabral Vieira, que é bom o estado sanitário em todo o distrito, e que é abundante o alimentício em Bissau e Bolama. Que, segundo as últimas notícias, a tribo de Churo ficara de ir à Praça de Cacheu para fazer a paz e que o ex-governador, por ocasião da sua retirada para Bissau, deixara ali uma comissão encarregada de tratar daquele negócio. O rendimento da Alfândega de Cacheu no trimestre findo em dezembro havia sido de réis 622$189; o da de Bissau, nos meses de novembro e dezembro, de réis 5:585$244; e o de Alfândega de Bolama no mês de dezembro de 2:456$086 réis. Neste mesmo número vem inserido o Boletim Sanitário do mês de dezembro de 1871, refere o movimento da população na freguesia de Nossa Senhora da Candelária de Bissau dizendo que houve 12 batismos, quatro masculinos e oito femininos e 12 óbitos, sendo dez de indivíduos do sexo masculino".

No Boletim n.º 7, de 17 de fevereiro, consta a Portaria n.º 35, cujo texto é bem curioso:
“Tendo chegado ao conhecimento deste Governo Geral os valiosos serviços prestados ao Governo da Guiné Portuguesa por Ovídio Urbain, agente consular de França em Bissau, já pondo à disposição daquele Governo, gratuitamente, as suas embarcações para transporte de pessoas e coisas para os diversos pontos do distrito, já oferecendo-se a emprestar quaisquer quantias de que o Governo da Guiné precisasse para as suas despesas extraordinárias: o Governador Geral há por conveniente louvar e agradecer ao referido Ovídio Urbain a continuação dos seus bons serviços prestados ao Governo daquele distrito.”
Acontecimento histórico que se relata neste Boletim Official n.º 43, de 22 de outubro de 1870, a posse de Bolama por Portugal, estão presentes o Governador Geral, Caetano de Almeida e Albuquerque, representante britânico, J. Craig Loggie, secretariou o auto da posse o Segundo-Tenente da Armada Guilherme Augusto de Brito Capelo
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796

(continua)

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Notas do editor

Post anterior de 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25824: Notas de leitura (1716): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1870) (15) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 12 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25834: Notas de leitura (1717): Crioulo guineense, qual a tua origem? (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25846: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (30): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Marvão (nota de leitura de artigo de Jorge de Oliveira, CHAIA / Universidade de Évora)


Fita de apurado (1980).
Fonte: Jorge de Oliveira
(2021)
(com a devida vénia...)

Jorge de Oliveira (CHAIA / Universidade de Évora) "Ir às Sortes" nas freguesias de Santo António das Areias e Beirã.Revista "Ibn Maruan", nº especial de 2021, pp. 447-Câmara Municipal de Marvão / Edições Colibri



1, Jorge de Oliveira, professor  e investigador (Centro de História da Arte e Investigação Artística /Universidade de Évora) publicou na revista "Ibn Maruan", um interessante artigo sobre a ida  às sortes nas freguesias de Santo António das Areias e Beirão, do concelho de Marvão, distrito de Portalegre (tinha 7,5 mil habitantes em 1960, 5, 4 mil em 1970... e hoje, pouco mais de 3 mil).

Segundo ele, "ir às sortes" seria uma expressão relativamente recente, remontando ao período do pós-I Guerra Mundial.  

 "Ir às sortes",  no tempo do Serviço Militar Obrigatório (SMO),  era ser submetido à Inspecção Militar  no ano em que um "mancebo" (ou seja, um "aprendiz de homem"...) completava os 20 anos.

 (...) "Poderemos com alguma certeza afirmar que a expressão 'ir às sortes' teve origem no período de paz, pós primeira Guerra Mundial. A obrigatoriedade de ir à inspecção militar passou por diferentes formatos ao longo do tempo" (...)

É óbvio que, em tempo de paz, o exército não precisava de muitos "magalas", podia dispensar a "carne para canhão"... apenas os mais 'listos' (espertos, vivaços) eram recrutados, depois de "dados como aptos para prestarem serviço militar".

O que é que fazia a "junta" que presidia à inspeção militar ?

(...) "Do grupo dos restantes, o sargento, o médico e o soldado (sic) que faziam a inspecção 'sorteavam', mais dois ou três mancebos, para substituição de algum dos que anteriormente tinham sido dados como aptos,  não comparecesse",  por qualquer razão (...)

Esta seria a explicação para a  expressão "ir às sortes", sinónimo de inspeção militar em tempo de paz... E tinha implicações simbólicas e práticas na vida dos mais jovens, sobretudo entre a população rural:

(...) "Em época de paz, nos contextos mais rurais e economicamente menos favorecidos, onde o analfabetismo atingia grandes proporções, o ser dado como apto e ser chamado para a tropa era uma forma de provável fuga, pelo menos durante algum tempo, ao pesado trabalho do campo e ter garantida uma mesa guarnecida, ainda que muito repetitiva". 

E mais: "Sair do campo e ir parar a um qualquer quartel, que se situava sempre em contexto urbano era, logo à partida, uma nova experiência que lhe ficaria gravada para toda a vida. Fosse a recruta mais ou menos pesada nunca se igualava ao peso da enxada, desde o nascer ao por do sol, dia atrás de dia. Alguns aproveitavam para aprender algumas letras e até a carta de condução conseguiam tirar." (...)


2. E quanto ao significado das cores das fitas que os "mancebos" usavam nesse dia, uma vez finda a inspeção ?

 (..,) "Três diferentes cores podiam ter as fitas que, após 'as sortes',  podiam vir atadas ao braço, ou na lapela do casaco e que assinalavam a situação em que o mancebo tinha sido colocado, ou sorteado, como também se dizia."(...)

 A verde significa  "apto para todo o serviço", a vermelha, "inapto" e "a amarela (muito rara)" era para os que, por qualquer motivo ( saúde, peso,.  etc. ),  "ficavam a aguardar nova chamada." (...)

Ao que parece as cores das fitas e o seu significado não eram uniformes, dependendo da época e da região do país.

(...) "Por exemplo, houve alturas em que as cores se inverteram, fita vermelha que ostentavam na lapela em sinal de terem sido 'apurados para todo o serviço militar' , branca se ficavam livres do cumprimento do serviço militar, e verde, se ficavam em espera,
tendo de repetir a inspeção no ano seguinte" (...)


As cores podiam variar de DRM para DRM 
 (Distrito de Recrutamento Militar), sendo vendidas pelos "prontos" que acompanhavam as juntas...

O processo de "ir às sortes" seguia vários trâmites, que o autor descreve com alguma pormenor:

(i) a lista de mancebos desse ano era exposta no edifício da câmara e nas respectivas juntas de freguesia;

(ii) nela se indicava a data, a horaq e o local da inspeção;

(iii) por norma, a data coincidia com o fim da primavera ou princípios do verão, ppor razóes de conveniência da tropa e dos mancebos.

Uma vez fixada e conhecida a lista de convocatória, com o nome dos mancebos,  começavam, em cada terra, os preparativos para a celebração desse dia que representava um verdadeiro "rito ou ritual de passagem (à vida adulta)"

Elegia-se uma comissão, a nível de concelho ou freguesia, para organizar os festejos. 

 No caso de Marvão (que era um concelho pequeno e raiano) aparecia sempre na lista rapaziada que já ninguém conhecia, por, embora  lá tendo nascidol, haverem saído cedo, em geral com os pais, para outras paragens.


3. Na década de sessenta, com o início da guerra colonial, o "ir às sortes" deixou de ter o significado que tinha em tempo de paz. Quase toda a gente era apurada...

(...) "Os que tinham 'conhecimentos' tentavam, por todos os meios, com a antecedência necessária, meter uma 'cunha' para se conseguir safar" (...). 

E foi nessa época que alguns mitos se difundiram, de resto conhecidos de todos nós... O autor cita alguns;

(i) "uns diziam que, oferecendo-se anteriormente como voluntários, tinham menos probabilidades de ir para à frente de combate", o que não era verdade;

(ii)  "alguns mancebos tentavam esconder as suas qualificações académicas para virem a ser incorporados como soldados", baseados na crença de que entre os graduados (alferes e furriéis) era maior a mortalidade em combate;

(iii)  também se dizia que o exército era homofóbico, pelo que "os homossexuais eram, imediatamente, dispensados".  

E havia outras artimanhas, como acontecia noutros períodos da nossa história, em que o país esteve em guerra;
 
(iv) "Alguns, contava-se, que se deitavam junto à linha de caminho-de-ferro, lá para os lados da Herdade dos Pombais e quando o comboio ia passar metiam o indicador direito sobre a linha para amputar o dedo do gatilho" ( o indicador da mão direita, em geral); 

(v)  "Outros, intencionalmente, com qualquer instrumento cortante amputavam esse dedo"...

 (vi)  Outros, ainda,  que tinham médicos amigos ou conhecidos ou dinheiro para os pagar, arranjavam atestados de doenças falsas ou imaginárias, "que algumas vezes convenciam de imediato o médico de serviço à inspecção  e outras vezes convocava-os para uma Junta Médica Militar, à qual, por norma, não escapavam";

(vii) "Havia também aqueles que invocavam um artigo qualquer da legislação que dispensava da tropa os que, por motivo de serem o único sustento para a família, ficavam livres de prestar serviço militar";

(viii) "Relatos havia de mancebos selecionados que pagavam a outros, já regressados da tropa, para os substituírem no Serviço Militar";

(ix)  "Por fim, para aqueles que tinham condições e apoios para isso, havia sempre a possibilidade de se escaparem para outro País e não comparecerem 'às sortes' ou à 'incorporação' "...

Acrescenta o Jorge de Oliveira:

(...) "Sabemos que um dos trajectos de fuga passava exatamente por caminhos fronteiriços do concelho de Marvão, sendo a passagem pelo Batão, ou pela Fontanheira os locais mais assinalados."

4. Houve, entretanto,  uma altura em que a inspeção dos mancebos de Marvão passou a ser efectuada fora do concelho. Neste caso, "um dos mancebos, por norma aquele que tinha mais habilitações literárias,  era chamado à câmara a quem o secretário entregava os salvo-condutos de todos os mancebos e outra papelada para, de comboio, chegarem ao DRM assinalado" (em geral Abrantes ou Coimbra). 

(...) "Por norma viagem era realizada na véspera e à chegada ao destino cada um desenrascava-se para encontrar local de pernoita e no dia e hora marcada estarem todos à porta do quartel. 

"Mas a partida para a inspecção era antecedida, obrigatoriamente, de um clássico ritual de passagem e purificação. Um banho purificador nas águas do Rio Sever, com todos os mancebos, tal como vieram ao mundo, aquecidos por dentro com o conteúdo do
palhinhas a que se seguia uma forte almoçarada com aquilo que cada um trazia na
mochila. Um tocador de concertina, a quem se pagava, e uma camioneta mais ou
menos alugada e lá ia a rapaziada toda, alegremente, a caminho do Batão, ou da Ti
Maria Jacinta, locais mais apreciados para estas festanças. " (...)

Para alguns mancebos de Marvão era o primeiro banho integral que tomavam na vida!

Mas vamos agora à inspeçáo militar p. d., que se realizava no dia seguinte, num quartel (Coimbra ou Abrantes):

(...) "Primeiro, conferir as identidades, depois a avaliação física. Depois de totalmente desnudados e postos em fila ia-se aguardando a vez de serem inspeccionados pelo médico. De vez em quando, algum da fila empurrava com força o da frente fazendo com que todos batessem com o pénis nas nádegas doque lhe seguia à frente. De imediato se ouvia, o que seria natural ouvir por parte dos soldados que por ali estavam, cada um de uma tropa especial, tentando captar voluntários para alguma das suas especialidades: "cambada de paneleiros!".

"O médico lá perguntava se tinha alguma doença, mandava o mancebo rodar 180º, via-lhe as unhas dos pés e,  se não fosse cocho, e não lhe faltasse nenhum membro, da parte dele estava apto para todo o serviço. 

"Venha o seguinte, e assim por diante.

"Depois seguiam-se os chamados 'testes psicotécnicos', diferentes para cada um dos grupos, separados logo ao início. A primeira pergunta para o grupo maior era, invariavelmente, se sabia ler e escrever e depois seguiam-se umas perguntas retóricas, orais, para avaliar as capacidades cognitivas dos mancebos. Aí é que alguns eram logo mandados afastar da fila. 

"Seguiam-se os testes de destreza manual e capacidade visual. Não convinha esforçar-se muito nestas provas, porque poderia ir parar a atirador especial e em tempo de guerra, não era nada conveniente. 

"Também não resultava de nada a estratégia, que alguns praticavam, de errar tudo e não dizer coisa com coisa, para ver se eram colocados de lado. Os sargentos que acompanhavam os mancebos já conheciam todo o tipo de música e de nada valia fazerem-se de malucos. 

"O resultado das inspecções ainda era noticiado antes do almoço, maioritariamente, no tempo da Guerra Colonial, até os que tinham amputado o indicador direito ficavam apurados para todo o serviço, o outro dedo também servia para puxar o gatilho das G3, ou o das velhinhas Mauser." (...)

A tropa dava o almoço...e no fim o oficial de dia entregava a cada mancebo um papel onde constava o resultad9o da inspeçáo (apto ou não apto)  e ," ao que tinha trazido os documentos entregues pela Câmara, um envelope fechado para devolver ao secretário do município".

Toda a papelada em ordem, um novo salvo-conduto era entregue para  o regresso a Marvão, de comboio... 

 Os pormenores do regresso a casa  têm, inegalvelmente interesse etnográfico ou documental;

(...) "Como combinado, o tocador de concertina, já aguardava a chegada do grupo. Agora era altura de começar a correr todas as tascas por onde se ia passando e, em tempo, quase porta sim, porta não, havia uma taberna no concelho de Marvão. As pandeiretas, nas mãos da rapaziada, tentavam acertar o compasso com o som que da concertina saía e lá se ia provando o tinto ou o branco de cada taberna da Beirã.

"Como o baile estava combinado para a Sociedade de Santo António das Areias, havia que transportar o grupo até à outra aldeia. A camioneta de caixa de carga que os havia levado ao banho purificador no Rio Sever, volta a ser contratada para o trajecto de retorno à aldeia. 

"Contudo, havia que parar em todas as tabernas que pelo caminho existissem. Nos Barretos e na Ranginha a paragem era obrigatória, por aí havia onde molhar a garganta. À entrada de Santo António a rapaziada saltava da camioneta e aí juntavam-se ao grupo os convidados dos mancebos. Com a concertina à frente o grupo fazia o esforço de peregrinar por todas as tascas para provar a especialidade de cada uma. 

"Estranhamente, do grupo, desapareciam os que tinham recebido fita de inapto. Essa fita representava o sinal de incapacidade física ou mental e nenhum dos contemplados com esse 'estigma' queria expor-se à comunidade, embora, no tempo da Guerra do Ultramar, fosse invejada pela maioria" (...)

Conforme o número de mancebos apurados, em cada ano, assim era o local da janta.

(...)  Anos havia em que uma cozinheira era contratada para fazer o jantar e rapidamente se montava na  Sociedade uma sala para aí se apreciar o petisco e continuar a matar a sede. Se o grupo era mais pequeno, então o frango assado previamente acertado com o Ti Saul servia perfeitamente e o vinho que ele produzia combinava porque até não era nada mau!" (...)

5. Seguia-se depois o tão ansiado "Baile das Sortes"...

(...)  A organização desse baile era da total responsabilidade do grupo das Sortes que pagaria ao tocador de concertina, ou nalgumas ocasiões, a um 'conjunto musical', geralmente o que nessa altura estava constituído com gente da aldeia (famílias Lança, Mota e Gavancha e eventualmente mais algum membro).

"Por volta das 10h30m, praticamente toda a aldeia, sobretudo as moças casamenteiras, sempre acompanhadas pelas mães, começavam a encaminhar-se para a Sociedade e a ocupar preventivamente, os lugares mais visíveis. 

"Por norma, à volta do salão de baile, pelo menos duas filas de cadeiras ou bancos eram organizados. Na primeira fila, as moçoilas casamenteiras, respaldadas na retaguarda pelas vigilantes mães, disfarçadamente, tentavam descuidar-se um pouco com a saia que deixava adivinhar qualquer coisa dois dedos acima do joelho. 

"Com os vestidos de cores quentes a condizer com a ocasião, o salão começava a compor-se de cabeleiras acabadas de sair do secador e com os diversos aromas emanados dos perfumes que cada jovem tinha comprado numa das lojas de Valência de Alcântara." (...)

Num ambiente em que o álcool tinha um efeito desinibidor, à rapaziada que exibia a fita de apurado nas sortes tinha, naturalmente, o privilégio de abrir o baile. Os primeriso passos de dança eram dessa rapaziada, embora o baile fosse aberto a toda gente da terra.
 
O "protoloco do baile" não era muito diferente do de outras terras por esse país fora, naquele tempo:

(...) "Alguns, que já tinham namoradas, iam directamente buscá-las, com a devida licença de suas mães. Outros, que par fixo ainda não tinham, lá se iam afoitando às moças mais vistosas da sala, com o já gasto 'a menina dança?', certos de que nessa noite aos rapazes das sortes 'tampa' não se dava. "

Vale a pena continua a citar a descrição bastante colorida e vida do "baile das sortes":

(...) "E o bailarico lá começava. O cheiro a perfume espanhol que as raparigas transportavam, começava a misturar-se com os odores a álcool que cada mancebo consigo trazia, mas que o som da música e a alegria geral tudo abafava. 

"De quando em vez ouviase, o já costumeiro, 'bota cá licença', e trocava-se de par. A sala enchia-se de cores que rodopiavam ao som da música. Menos vezes do que os espectáveis, lá tocavam os tão desejados 'slows'. O rodopio dava lugar a curtos e apertados passos de dança e o salão parecia crescer. O centro do espaço apertava-se e cada um chegava-se ao
máximo ao seu par. 

"Quando algum par aquecia um pouco mais via-se entrar em cena o Ti Garlito, funcionário da Sociedade, com a caninha na mão que com ela tocava no ombro do rapaz e com voz, de quem autoridade para isso tinha, dizia, 'vamos lá a afastar um pouco'. 

"O par, algo atabalhoadamente, afastava-se um pouco. A rapariga espreitava para a cara da mãe que lhe fazia sinal de quem, depois lá em casa, alguma coisa teria para dizer". (...)

Era também uma excelente ocasião para se arranjar madrinhas de guerra e namoradas:

(...)  "Muitas 'Madrinhas de Guerra' se arranjavam nessa noite inesquecível, muitos namoros começavam e promessas de casamento após o regresso da tropa ficavam aprazados.
 

6, Mas tudo tem um fim...  Em 1999, é decretado  o fim do Serviço Militar Obrigatório (com efeito a partir de 2004)... Cria-se, em alternativa às "sortes" o Dia da Defesa Nacional. Desta vez, portugueses e portugueses que em cada ano perfazem 18 anos,  passam um dia num quartel, para terem um "cheirinho" do que é a tropa... 

É também a ocasião para o Exército recrutar voluntários, nomeadamente para as tropas especiais.

E arremata o autor: 

" Diga-se, em abono da verdade, que este aliciamento, até agora, não tem surtido o efeito desejado, porque dizem os que por lá andam que qualquer dia são mais os generais que os soldados."

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25845: Em busca de... (327): Esclarecimentos sobre a morte do meu amigo Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus, Soldado Básico da CCAÇ 2382 (Juvenal José Danado, ex-Fur Mil Sap Inf)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS / BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71) com data de 12 de Agosto de 2024, enviada ao blogue através do Formulário de Contacto do Blogger:

Camarada e amigo Luís Graça:
Sendo possível, gostaria que o texto seguinte fosse publicado no nosso blogue.
Muito obrigado pela atenção e aquele abraço.



CCaç 2382 / Buba

Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus (o Esgota-Pipas), mortalmente atingido no ataque a Buba, em 14/02/1969

Li um texto publicado neste blogue em 28 de maio de 20161, no qual o companheiro e furriel miliciano Manuel Traquina, fala do Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus, soldado ferido durante o ataque a Buba de 14/02/1969, ferimento que lhe provocou a morte.

O texto interessou-me sobremaneira, porque o Ruço (alcunha por que toda a gente na aldeia tratava o Ilídio) era um querido amigo com quem convivi e partilhei muitas brincadeiras na infância e na adolescência. Somos os dois naturais de Aires, aldeia do concelho de Palmela. Jogámos muitas vezes à bola no Largo da Fonte e no olival contíguo à sede do Grupo Desportivo Airense, andámos aos pássaros (ele era exímio com a fisga), estivemos em bailaricos, nadámos no tanque de rega da quinta para onde me mudei aos 13 anos, parodiámos muito, fomos amigos, irmãos de coração.

O Ruço tinha o nome próprio do pai e pertencia a uma irmandade de cinco, contando com ele. O pai era trabalhador rural, como a maior parte dos pais da aldeia, e a família tinha poucos recursos, razão pela qual o Ruço nunca foi à escola, começando a trabalhar muito cedo, a pastar ovelhas.

Fiquei admirado quando li que ele «foi dispensado das saídas para o mato e colocado como ajudante de cozinheiro». Sendo analfabeto (não foi à escola), ele teria de ser básico, «especialidade» que o livraria das saídas para o mato, reservadas a atiradores, pessoal de transmissões, de enfermagem e informações, sapadores. E normalmente, segundo creio, os básicos ajudavam nas cozinhas.

A minha comissão (Batalhão 2892 - 1969/71) foi passada entre Aldeia Formosa, Nhala e Buba. A história que eu apurei, nas indagações que fiz em Buba, foi a seguinte: o meu amigo trabalhava na messe de sargentos, como ajudante de cozinheiro; durante um ataque noturno correu para se abrigar na messe, uma granada explodiu por cima da porta onde ia a entrar, e ele foi atingido por estilhaços que o vitimaram, dias depois, já em Bissau.

Gostaria que o Manuel Traquina ou qualquer outro membro da Companhia 2382 fizesse o favor de me esclarecer, com os pormenores possíveis, deixando desde já os meus agradecimentos.

Um grande abraço aos companheiros da 2382, a todos quantos visitam o nosso blogue e aos que o mantêm atualizado e vivo.

Cumprimentos,
Juvenal José Cordeiro Danado

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Notas do editor

1- Vd. post de 28 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)

Último post da série de 13 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25838: Em busca de... (326): Camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp Dinis César de Castro, da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2885, que morreu em combate, no dia 12 de Outubro de 1970, durante a emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Infandre

Guiné 61/74 - P25844: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (56): Partida do Olossato para Nhacra em 09 de Junho de 1971 e ataque a Nhacra mal chegados



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


PARTIDA DO OLOSSATO E ATAQUE A NHACRA - 09 DE JUNHO DE 1971

1971/JUNHO/09 - ATAQUE A NHACRA

Partida do resto da Companhia do Olossato para Nhacra (2.º grupo de combate, 4.º grupo de combate e resto do comando e dos serviços).

Durante o trajeto entre Bissorã e Mansoa uma viatura da coluna "avariou"? por duas vezes.
Como eu era o graduado mais próximo desta viatura, comuniquei ao capitão que mandou parar a coluna.
Pouco tempo depois a viatura voltou a trabalhar e a coluna prosseguiu.

Perto de Mansoa a mesma viatura voltou a "avariar"?.

Após pedir ao capitão para parar a coluna, dirigi-me ao condutor e disse-lhe que estava quase a escurecer e não podíamos ficar ali parados. Desta forma só tinha duas alternativas:
1) - Ou punha a viatura a trabalhar e seguia com a coluna ou
2) - Ficava lá sozinho, porque a coluna tinha de prosseguir.

Dei sinal ao capitão para a coluna avançar, e passados poucos minutos a tal viatura já seguia na coluna.
Trajecto entre o Olossato e Nhacra com escala em Bissorã e Mansoa
Infografia: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Chegados a Mansoa tomamos a estrada asfaltada que liga Bissau a Mansabá.
Poucos minutos depois a "viatura avariada" ultrapassou a coluna em grande velocidade e nunca mais ninguém a viu.

Deduzo que este condutor tinha "instruções" para retardar a nossa chegada a Nhacra, porque os nossos quartéis entre Mansoa e Nhacra foram todos ou quase todos atacados ao mesmo tempo que Bissau foi atacada com foguetões 122 mm, lançados do Cumeré.

Chegados a Nhacra fomos instalar os soldados no edifício que estava em construção, para instalar o posto emissor da Emissora Oficial da Guiné, que ficava ao lado do nosso quartel.
Depois fomos para o quartel para descarregar a nossa bagagem e instalarmo-nos nos quartos que reservaram para os furriéis.
Com a viatura parada junto aos nossos quartos e alguns furriéis em cima, a tirar a nossa bagagem, e os outros no chão a recebê-la e arrumá-la para depois nos instalarmos.

Nesta altura começaram a passar balas tracejantes, do lado do Cumeré para a estrada Bissau/Mansoa.
Pela trajetória das balas parecia que vinham dum edifício do quartel e nós, os furriéis da CCAV 2721 a pensar que era alguma brincadeira do pessoal que íamos render dizíamos:
- "Ide brincar com o car(v)alho"...
- "dos tiros vimos nós"...
- "Estamos fartos da guerra"...
- Etc...

Passado pouco tempo rebentou uma rocketada numa das árvores que tinha ao lado das instalações militares.
Nessa altura percebemos que não era brincadeira.

Era mesmo um ataque.

Perguntamos aos "velhinhos", que estavam connosco, onde eram as valas ou qualquer local onde nos pudéssemos proteger.
Como responderam que não havia valas nem locais protegidos, meti-me debaixo da viatura, do lado de dentro da roda de trás. Passados alguns segundos, estavam lá todos os furriéis, nossos e da companhia que íamos render.

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Nota do editor

Último post da série de 8 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25820: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (55): 5.º ataque do PAIGC ao Quartel do Olossato ao anoitecer do dia 07 de Abril de 1971

Guiné 61/74 - P25843: Verão 2024: Olá, nós por cá todos bem (4), um bom livro, de sabor camiliano, o último do Joaquim Costa, para se ler na praia, no pinhal ou na esplanada, de trás para a frente e de frente para trás

 

Estremoz > Regimento de Cavalaria, nº 3, "Dragões de Olivença" > 2016 >O Joaquim Costa, voltando ao "local do crime": foi aqui que foi mobilizado para o CTIG, foi que aqui que se  formou a companhia, a  CCAV 8351 ("Os Tigres do Cumbijã"),  juntamente com a CCAV 8350 ("Os Piratas  de Guileje") .... Ele voltaria, em 2016... Masoquismo ? Não, saudade também de algumas coisas boas desse tempo já longínquo... E de Estreemoz, da bela cidade alentejana. "Foram uns belos dias passados na magnífica Pousada da Rainha Santa Isabel", e o um jantar no restaurante "A Cadeia", ali a 10 metros... (*), Ainda a Isabel era viva e acompanhava o marido nestas romagens de saudade...  Isabel Barata Lopes Costa (1953-2024)... Infelizmente, já não está cá para festejar o lançamento deste novo livro, que lhe é carinhosamemnte dedicado.  

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Já houve camaradas que manifestaram interesse em adquirir o novo livro do Joaquim Costa (**). Mesmo sem informação pormenorizado sobre o que traz de novo em relação ao anterior, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74" (Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.); 

 O título do novo livro é chamativo, se bem que do tamanho de um comboio, com o subtítulo: "Crónicas de Paz e de Guerra: Do Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto aqui tão Perto". 

Da leitura dos seus postes no blogue (mas também da sua página no Facebook) o Joaquim ficou com fãs. Pensamos que o livro (que ainda não foi oficialmenmte lançado) poderá ser remetido à cobrança, basta contactá-lo, como no caso anterior, através do  email  

Para abrir o apetite do leitor, que já está (ou vai) de férias, aqui fica o índice da obra... São seis dezenas de crónicas de bela prosa, algumas de com sabor camiliano, outras com cores  mais poéticos, que abrange três grandes períodos da vida do autor, a infância e a adolescência, a tropa e a guerra, e a vida errante de professor do ensino secundário a par das agruras, das alegrias e tristezas,  de director de agrupamento escolar (20 anos, em Gondomar!).

É um bom livro, este, para se ler na praia, no pinhal ou na esplanada, de trás para a frente e de frente para trás.  (***).
 




in: Joaquim Costa, "Crónicas de paz e de amor: do Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto Por perto". Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp, il. (Posfácio de Mário Beja Santos).



quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25842: (In)citações (269): Quantos somos ainda? (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

Galomaro, 1973 > 3.º Natal do BCAÇ 3872 na Guiné

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 10 de Agosto de 2024:


QUANTOS SOMOS AINDA?

Talvez 500.000? Hoje não passamos de um retrato para aí numa gaveta e já nem nós nos reconhecemos.

No ultimo almoço do 3872 dei por mim a perguntar ao Félix do Pel Rec por ele, só depois de ver o olhar dele percebi que tinha metido a pata na poça.
Entre as desculpas por o não reconhecido logo, deitei as culpa para a PDI que resulta sempre.

Falamos mais de doenças do que paródias e aproveitamos para dizer mal dos governos com alguma razão.

Nas redes sociais fala-se das facilidades e dificuldades que temos em beneficiar de alguns créditos onde desaguam promessas do poder político que vão passando de mão em mão.
Não queriam mais nada que fosse reconhecido o serviço que em tempos fomos obrigados a fazer mas nem por isso dignos de recompensa.

Há dias o José Marcelino Martins publicou no facebook uma efeméride relacionada quando se mudou de armas e bagagens para Canjude. Termo que sempre ouvi mas nunca com tamanha objectividade. O José já deve constatar que hoje mandam-no para outras partes.

Quando regressamos, ignoraram-nos, hoje dizem “lá vêm eles falar do mesmo”. Mas será que não se cansam?
Que sabem eles da nossa sede, do nosso calor, das nossas privações de pequenas coisas, das nossas saudades se os que lá estiveram nada fizeram e estes que já são netos dos combatentes nada sabem?

É comum falar-se da gratuitidade dos museus mas ao que parece, nos que estão em mãos privadas não temos esse direito. Que a maior concentração dessas instituições se encontra nas grandes cidades e também que nos falta a vontade para nos deslocar até eles, já que na maioria, hoje somos mais pilotos experimentais de sofá e as pernas também não ajudam. Nas grandes cidades os passes para transportes públicos dizem que funciona bem.

Eu, fico-me pelo os meus afazeres com a família a visitas ao médico que não se pode abusar delas, supermercado, tenho vasto conhecimento de tudo o que é parque infantil da região pelos motivos que nós avós sabemos. Construo baloiços que ele derrete à medida que cresce e mais pesa, vou com ele às terapias e rego as plantas, coisa que ele frequentemente usa como urinol e assim, tento salvá-las de morte certa.

Há dias li que os combatentes iam ter direito a medicamentos grátis mas só em 2026. Acho bem porque assim como assim, ainda morrem muitos e são uns tostões que se poupam, é que por cá ainda se poupa nos alfinetes para se gastar nas lagostas.

Mas também reparei que as esposas e viúvas não serão incluídas nessa benesse independentemente do rendimento familiar. É injusto porquanto nós sabemos que muitas milhares de esposas sofreram com a nossa ausência e tiveram uma vida de sofrimento depois do nosso regresso.
O stress pós traumático e o alcoolismo, atiraram essas mulheres e também os filhos para o inferno individual que cada veterano transportava.

E fala-se, fala-se e fala-se... E eles não ouvem não ouvem…

Já por diversas vezes foi chumbada uma proposta de dar 50 € a cada combatente, o que para a esmagadora maioria seria uma preciosa ajuda nas suas magras reformas. Entretanto os governantes falam em milhões e milhares de milhões para aqui e para ali, a verdade seja dita, parece que muito desse dinheiro (quando as cativações estão na ordem do dia) chegam tarde ou nunca aos organismos beneficiários.

Ficam com a fama e o resto não interessa nada, porque a oposição di que não e eles dizem que sim. Ficam empatados e nós lixados.
Mas fica a intenção que é muito importante.

Só por uma vez que fosse, gostava que o beneficio fosse anunciado e executado automaticamente. Bem sei que o pobre desconfia da fartura mas...

Um abraço e não desanimem porque água mole em pedra dura tanto dá até que encharca tudo.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25799: (In)citações (268): Horizontes da Memória (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705)

Guiné 61/74 - P25841: Historiografia da presença portuguesa em África (436): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Uma verdadeira surpresa, este artigo escrito por um comerciante francês instalado na Guiné, vaticinando, em abril de 1914, que a colónia portuguesa está na rampa de lançamento, tem a prosperidade ao seu alcance; é um artigo de comerciante para investidores, está magnificamente ilustrado, peço a atenção do leitor para um tornado no porto de Bissau, o que era o cais de Bissau, jamais tinha visto uma imagem de Bissau tirada do mar com esta precisão, estima a população guineense em 800 mil habitantes, não descura as referências aos serviços marítimos e outras comunicações, o que se importa e exporta, ficamos a saber que o comércio está praticamente em mãos internacionais, que a única entidade bancária é o Banco Nacional Ultramarino, elogia as tarifas aduaneiras, informa os interessados sobre a evolução comercial e os dados económicos entre 1903 e 1912. Por pura curiosidade, irei adiante referir o que fui apanhando nos relatórios da delegação do BNU em Bolama no período do fim da guerra, as coisas já não se passavam exatamente assim.

Um abraço do
Mário



Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1)

Mário Beja Santos

Mão amiga na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa pôs-me na frente a revista La Dépêche Coloniale, com data de 15 de abril de 1914, a reputada publicação traz um estudo sobre a Guiné Portuguesa. Não escondo a satisfação de ver imagens que desconhecia totalmente e conhecer a opinião de um negociante que conheceu com alguma profundidade a colónia. Vale a pena aqui fazer uma síntese, só lastimo é não se poder tirar partido das esplêndidas imagens que o autor captou, logo na primeira página o cruzador português D. Luís, a imagem de uma família mandinga e caçadores que apanharam duas gazelas.

O autor situa a Guiné, refere os seus rios (dizendo que os principais são o Geba, o Farim e o Grande, e os secundários o Corubal e o Cacine, o que não é verdade); refere que a diocese depende de Cabo Verde, tal como a Justiça é exercida por um tribunal dependente de Lisboa; falando do Exército, o contingente militar era constituído por quatro companhias de infantaria indígena e duas secções de artilharia. Os produtos de exportação eram a borracha, a cera, o coconote, o amendoim, a cola e os couros; falando da geografia, alude à parte continental e a parte insular; as povoações principais ao tempo eram Bolama, Bissau, Cacheu, Farim, Buba, Geba e Bafatá, e estima a população em 800 mil habitantes.

Depois de nos dar um quadro das etnias existentes apresenta-nos o contexto religioso, dominado pelo animismo e o islamismo, mas não esquece os Grumetes e a sua ligação à religião católica; observa que a agricultura não conhece o desenvolvimento, limitando-se às culturas indígenas, onde preponderam o arroz, o milho, o algodão e o amendoim, a indústria era praticamente inexistente; apresenta-nos Bolama, Bissau e Cacheu. Ficamos a saber quais eram os serviços marítimos da época: o serviço regular era garantido pela Empresa Nacional de Navegação, uma vez por mês, e dá conta como o correio também podia ser expedido através de Dacar, menciona os vapores alemães da companhia Woermann que tocam Dacar e podem receber o correio vindo de Bissau; havia o cabo-submarino da companhia inglesa West-Telegraph Company, e uma linha telegráfica terrestre que ligava a capital ao interior (Farim, Bafatá, Bambadinca, Xitole, Buba e Bolama); na medida em que este estudo saiu do punho de um comerciante, é compreensível que ele enfatize os principais lugares de embarque e desembarque, a natureza das comunicações internas, os principais produtos exportados, chama a atenção quanto ao valor de certos produtos como o coconote, com grande procura no mercado alemão. Dá-nos a lista das casas comerciais e companhias instaladas na Guiné: C. F. A. O., Marselha; a Companhia Franco-Escocesa, Paris e Londres; C. F. C. A., Paris e Antuérpia; N. S. C. A., Bordéus e Nantes; R. T. e Companhia, Hamburgo; R. P., Hamburgo; A. S. G., Lisboa; S. C. C., Paris e G. C., Bordéus-Lisboa. Ficamos igualmente a saber quais as principais mercadorias importadas: os tabacos e os petróleos vinham da América mas com trânsito por Hamburgo; os tecidos eram provenientes de Inglaterra e da Bélgica; as bebidas alcoólicas e a quinquilharia vinham de Hamburgo. Os principais artigos ditos de frete, tinham o seu embarque quase exclusivo em Hamburgo. Refere as épocas das operações comerciais, a venda feita pelos indígenas aos comerciantes, todas as operações comerciais são feitas diretamente com os indígenas, através do escritório principal ou das suas sucursais.

Peço a atenção do leitor para as imagens que o autor nos dá do cais de Bissau ao tempo e a imagem fotográfica de um tornado tirada no porto de Bissau. Refere detalhadamente como se fazem as operações comerciais, lembra os interessados que as operações bancárias são feitas através do Banco Nacional Ultramarino, talvez para surpresa de muitos dos leitores dirá que as tarifas aduaneiras da Guiné eram muito moderadas, comparadas com as das colónias francesas, com baixos direitos de importação, dá-nos quadros das receitas alfandegárias, dos principais produtos exportados entre 1903 e 1912 e também o movimento comercial relativo a esse período.

Atenda-se a um aspeto curioso por ele referido. Durante muitos anos, os números da importação eram muito superiores ao da exportação, as casas comerciais faziam as suas transferências através do Banco Nacional Ultramarino; hoje é totalmente diferente. Os números da exportação equivalem-se ao da importação, isto devido ao facto de o comércio ter aumentado exponencialmente. Para o autor, a Guiné estava em plena evolução, mesmo modesta, a sua tarifa aduaneira tinha-se saldado em boas receitas. Segundo este comerciante francês, o futuro da colónia apresentava-se seguramente sob os mais brilhantes auspícios.

Nunca esquecendo que o seu estudo se destina a informar potenciais investidores, dá-nos os regulamentos e as tarifas aduaneiras, os principais artigos do novo regime aduaneiro e os direitos específicos.

Não deixa de ser curioso o mapa que ele insere no seu artigo, uma leitura atenta permite-nos ficar a saber que a Norte, indo do Cabo Roxo até à região do Gabu, os pontos mais importantes além de Varela eram Cacheu, Barro, Farim, Geba, Dandum, Coiada, Canquelifá, descendo, destacam-se Fá e Bambadinca, Gole (Porto Gole), temos depois por grau de importância as ilhas de Jata, Pecixe e Bissau; e falando da região Sul, independentemente da pontuação que ele faz sobre o Bijagós, as povoações que ele destaca são Grampará, Buba, Bolola, Contabane, Cumbijã, Cacine, há imagens surpreendentes da vida de Bissau, das tabancas e, por último, ficamos com duas imagens, uma seguramente inédita da aldeia indígena de Bambadinca e a fotografia do senhor Georges Courrent, com o seu casaco bem assertoado, gravata à maneira, o bigode aparado e o cabelo parece ter sido alisado por um profissional.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25817: Historiografia da presença portuguesa em África (435): Quando o Governo de Cabo Verde só noticiava as receitas alfandegárias da Guiné (Mário Beja Santos)