terça-feira, 13 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6727: Bibliografia de uma guerra (57): Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, a publicar em Setembro de 2010 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Foi no nosso blogue que teci uma boa parte dos elogios que agora ganharam forma no prefácio do livro que será publicado em Setembro.

Terei muito orgulho se dele quiserem fazer a competente publicitação.

Um abraço do
Mário



As armas e os barões assinalados da ignota Parada do Junco:
Reflexões à volta de uma obra-prima (até agora) envolta em mistério


por Beja Santos

Os melhores livros de guerra perfilham uma atitude comum: a de designarem permanentemente o outro e o outro lado da sua guerra; de irem ao encontro da dignidade desse outro, dos seus enigmas, do seu mistério e da sua identidade. A principal lição moral podia mesmo sintetizar-se nestes termos: quem combate quem? como? porquê?

João de Melo em “Os Anos da Guerra"



Prefácio do livro "Estranha Noiva de Guerra", de Armor Pires Mota, a publicar pela Âncora Editores**

Como é possível que uma obra-prima da literatura da guerra da Guiné, publicada em 1995 (embora numa edição discreta, de difusão restrita) tenha ficado completamente no olvido da crítica, nem mesmo muitos antigos combatentes, sempre ciosos por descobrirem testemunhos quem lhes permitam verem-se ao espelho, deram pelo relevante acontecimento literário? É hoje sabido que a literatura da guerra produziu um conjunto de obras que são objecto de estudo, obtiveram reconhecimento do público, inclusivamente foram, nalguns casos, rampas de lançamento de escritores que, a seguir, com maior ou menor intensidade, acabaram por cortar relações com esse veio literário: basta pensar em Manuel Alegre, Álvaro Guerra, José Craveirinha, José Martins Garcia, Lobo Antunes, Lídia Jorge, Pepetela e João de Melo.

Houve na verdade uma geração literária da guerra colonial, como questionou João de Melo em Os Anos da Guerra. Ao sabor das diferentes escalas da qualidade literária, este protagonistas deram forma às suas experiências, vazaram no papel as transformações sentidas, protestaram, plasmaram o sofrimento visto, testemunharam a reviravolta interior, de si e de quem comungou ou partilhou a camaradagem, no romance, no conto, na poesia, em memórias, em diários, até recordações esfarrapadas em depoimentos da mais variada índole. Foram, sobretudo, oficiais milicianos, mas também oficiais do quadro, sargentos, dos três ramos das Forças Armadas (incluindo as forças especiais), mulheres desses milicianos, em muito menor número praças, nas três frentes dos teatros de operações os obreiros desta literatura.

Impõe-se reflectir no porquê da incomodidade e da (ainda hoje) subalternidade desta escrita e até das razões dos sucessivos estados emocionais que têm presidido à sua elaboração.

Falando especificamente da Guiné, o primeiríssimo escritor foi Armor Pires Mota com o seu Tarrafo, inicialmente publicado no Jornal da Bairrada, sob a forma de crónicas, entre 1964 e 1965, e impresso em livro em 1965, rapidamente retirado do mercado pela polícia política de Salazar. Tanto quanto sei, foi o único caso de um escritor que publicou praticamente ao quente dos factos bélicos um punhado de crónicas, um verdadeiro diário público do combatente. Outros nomes salientes desta década foram os de Álvaro Guerra, Manuel Barão da Cunha e Amândio César. O primeiro escreveu romances onde episodicamente falou da frente da Guiné (onde combateu de 1963 a 1965). Álvaro Guerra vai depois para Paris e os seus livros espelham preocupações abrangendo o mundo da infância, o choque com o cosmopolitismo parisiense, onde se amalgamam episódios guineenses. Barão da Cunha exalta o soldado anónimo sob a forma de crónicas, Amândio César fez reportagens na Guiné, pôs-se inequivocamente ao lado das teses do regime. Em síntese, os anos 60, na perspectiva literária, aparecem codificados ou moralizantes, ficaram algumas páginas muito belas de Álvaro Guerra e a incursão de autenticidade num jornalismo de combate que foi Tarrafo.

Álvaro Guerra continuará a fazer um grande investimento nas suas memórias da guerra da Guiné. Edita em 1973 O Capitão Nemo e Eu onde nos deixa um dos mais espantosos parágrafos desta literatura de memórias de quem vestiu o camuflado, não resisto a transcrever: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injectou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”. Por este tempo, é inegável uma literatura que não esconde o desencanto com a evolução da guerra, como será o caso de A Flor e a Guerra, de Manuel Barão da Cunha.

Com o 25 de Abril, finda o tempo da literatura cabalística ou até da defesa do Império, surge a liberdade, a irreverência, até a hipercrítica à nossa participação na guerra colonial. José Martins Garcia e o seu Lugar de Massacre ocupam um lugar de relevo neste período. Mas aqui volta-se à questão: porquê a menoridade desta literatura de guerra, a sua apagada tristeza? A descolonização, a emancipação dos países como a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, levam a que durante décadas se imponha a literatura do outro, quase se apagando a memória do combatente português, perplexo quanto à oportunidade e utilidade do seu testemunho. Acresce que estamos num período em que esta geração está a refazer a sua vida, para além dos constrangimentos do que representava falar das suas memórias, equivocamente tratadas como de um saudosismo palustre, sabe-se lá até se considerados como gente com tentações neocolonialistas ou com nostalgias do Império...

Os anos 80 mantêm testemunhos libertários, caso de Até Hoje, de Álamo Oliveira, aparece depois Cristóvão de Aguiar cujo Braço Tatuado permanece uma obsessão de um escritor que conserva um expressivo manancial de memórias da sua comissão e que tem vindo a aumentar a consistência dos seus relatos. Por esse tempo, Armor Pires Mota escreve uma colectânea de contos Cabo Donato Pastor de Raparigas que instala um novo olhar do autor do Tarrafo sobre as realidades da guerra, torna perceptível que a linha épica se está a deslocar para aspectos brejeiros do quotidiano militar. Os anos 90 em nada modificaram o registo que se preludiava nos anos 80. É uma época em que se publicam memórias de unidades militares, ganha forma uma certa literatura confessional, e chega-se mesmo ao dobrar do século com muitos testemunhos como os de Vasco Lourenço e Salgueiro Maia, os do político António Loja (que nos deixou páginas extraordinárias em As Ausências de Deus) ou do escritor Luís Rosa em Memórias dos Dias sem Fim (também cabe registar aqui algumas páginas de elevado recorte literário).

Estamos chegados ao ponto culminante que foi a descoberta (para mim) de Estranha Noiva de Guerra, o romance que Armor Pires Mota publica em 1995, e do qual não dispunha de qualquer informação. Li e reli, tudo me parecia inacreditável, já não bastava o facto de ele ser o mais persistente escritor da guerra colonial, vinha no contingente dos primeiros, continuava a não arredar pé. A sua escrita crescia em dimensão, amplificara-se a influência dos grandes mestres literários, sobretudo os do castiço e os da ruralidade: Aquilino Ribeiro, Tomaz de Figueiredo, Raul Brandão, Araújo Correia. Estes mestres faziam-se sentir na riqueza vocabular, no recurso à mais genuína imagem telúrica e, curiosamente, sentia-se a intercepção pelas simpatias com o neo-realismo e naturalismo e, por importação, as cadências de Hemingway ou Norman Mailer.

Eufórico pela descoberta, logo escrevi no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné onde tenho publicado as recensões sobre a literatura da guerra da Guiné: “A metáfora é da via-sacra, isto é, o herói, no cumprimento do seu dever, arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações: o confronto com o inimigo, explícito e brutal; os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se torna delirante e dilacerante, dando azo a que o herói dê rédea solta a recordações de toda a ordem. A estrutura é a da narrativa na primeira pessoa, aliás é deste modo que abro o romance: “Eu, Bravo Elias – de nome completo José Joaquim Bravo Elias -, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo mas generoso das suas velhas recitando o seu hamedulilai, a heróica rapariga, ah a rapariga, e, como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo, da esquerda para a direita, todo o campo de tiro, aliás, como costumava fazer”. Bravo Elias é um furriel que combate na região do Morés. Com ele segue Júlio Perdiz, um morto em combate que não será abandonado em campo de batalha. É um relato extenuante, primorosamente estruturado. Trata-se de uma operação ao Morés, o que inicialmente parece um sucesso (um ronco) converte-se numa reacção poderosa por parte das forças do PAIGC. O contingente militar estaciona um pouco à deriva, a memória do Bravo Elias recorda nomes, situações cómicas ou destemperadas, há mesmo conversas trocadas na esplanada do Tropical ou no café Bento, ambos em Bissau. É nisto que o herói descobre que ali ao pé, enquanto a sua memória divaga, jaz Júlio Perdiz agonizante: “Tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”. Perdiz distinguira-se um dia por se ter lançado, montado num burro contra uma força do PAIGC emboscada na mata densa. Os helicópteros sobem e descem, largam munições e água, transportam os feridos para Bissau. Bravo Elias sente-se sozinho, toma decisões, arremessa para os ombros o corpo do camarada. Iniciara-se a via-sacra. As sugestões literárias misturam-se, desde o neo-realismo até ao surrealismo. Logo no início da espinhosa jornada, quando ele convoca toda a sua identidade: “o meu avô, António Francisco Elias, que era um poço de bravura, em terra e no mar; o meu pai que com o seu arado acordava a terra para a festa das sementes, ainda o sol vinha longe; a minha mãe que pusera na cómoda a minha fotografia sobre a protecção de um quadro do Arcanjo S. Gabriel; a minha namorada, que não sabia que eu tinha uma história com uma negra, de belos traços; também a padroeira do lugar de Parada de Junco, Nossa Senhora do Livramento, e o próprio Deus”.

É nisto que surge nessa terra de ninguém uma rapariga dizendo: “Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco”. Chama-se Mariama e promete levá-los até Mansabá. Este Bravo Elias já leva dezoito meses de guerra quando recebe auxílio desta rapariga bonita que sabe manejar as armas e é guerrilheira. É aqui que se começa a desenvolver uma das tónicas dominantes deste notabilíssimo romance: a convulsão da guerra que atrai os opostos, levando-os da confrontação à reconciliação. É a metáfora da paz, o mistério do amor cristão, a bonança a seguir à tempestade. Aqueles dois seres humanos levam a padiola do Perdiz, seguem esgotados, correndo todos os riscos, atravessando bolanhas fétidas, sujeitos a todas as inclemências da natureza. É irresistível não citar Armor Pires Mota e a sua prosa irrepetível: “Os incertos, àquela hora, estendiam pela mata a sua zanguizarra solene e impetuosa como um rio de vozes frescas rebentadas do chão. Mais longe, alguns macacos pincharolavam de festa, numa grulharia irritante e sádica, pois pareciam que estavam a troçar de mim e do Perdiz. Com gestos obscenos. Pelo alto, sarabandeavam muitos pássaros. Tantos que era difícil chamá-los pelo nome. Mesmo assim, reconheci, com a ajuda da rapariga, o barbilhão amarelo, o pássaro martelo, o jabiru, a pomba verde, o beija-flor”. Na romagem infernal integram-se um cão e um pássaro, de nome John. A paixão entre Mariama e Elias desperta. Passa-se pela região de Lala Samba, os jagudis voltam a atacar o finado, arrancam-lhe os olhos, metade de uma orelha, o nariz. Aos tombos, chegam a Cumbijã Sare, lavam o que resta do Perdiz. A trama ganha novos contornos com a chegada de dois guerrilheiros, depois chegam à tabanca de Sambuiá onde um velho, de nome Mamadú Keta, antigo alferes de segunda linha, irá oferecer um cachimbo ao Bravo Elias. Ali se falará do futebolista Eusébio e numa xícara da Vista Alegre. Depois de terem ladeado Tabassai, dá-se o reencontro com a tropa. Mas a via-sacra ainda não terminou, aliás nunca se saberá qual o seu ponto culminante. Segue-se um ataque a Mansabá, uma descrição como nunca encontrei na literatura da guerra colonial: o vigor da encenação, os sons, as imagens de sofrimento, as águas-fortes das correrias e dos rodopios. No durante o ataque os dois jovens guerrilheiros do Morés matam Mariama. O apocalipse prossegue, Bravo Elias consegue olhar com os olhos enxutos todo este mundo devastado em que até o pássaro John pia assustado, era um fio de voz que doía. E assim termina este romance incomparável: “Então, resolvi erguer-me de onde estava, aéreo e pardacento, e, cambaleando muito, fui à procura de John por cima de um mundo de destroços”.

Esta linha dominante da reconciliação, do diálogo entre os pólos opostos, será retomada num outro livro de inegável mérito A Cubana que Dançava Flamenco, a obra mais recente de Armor Pires Mota. Mas convém não perder de vista a questão central que é a bela metáfora, a epopeia do Bravo Elias e de Mariama à volta de um santuário mítico do PAIGC onde tem lugar uma romagem espantosa, cravejada de heroísmo, erotismo e do fantasma de Thanatos. Bela metáfora de um herói anónimo, quando regressa ao quartel de Mansabá, tudo quanto ocorreu parece não ter passado de uma mera formalidade. Bela metáfora de um Morés onde tudo é possível quando a camaradagem se sobrepõe à violência do meio. Qualquer uma daquelas batalhas podia ter sido vivida por um combatente, a romagem de padiola, aquela solidão a que se junta em solicitude Mariama e o seu afago, os presentes de um alferes de segunda linha a recordar que mesmo num local de franca carnificina os homens não esquecem os valores do passado. A morte ronda por toda a parte mas a missão de dar uma urna ao Perdiz sobrepõe-se à fadiga e aos medos. Até ganha plausibilidade conversar com guerrilheiros e entrar quase naturalmente em Mansabá, como nada tivesse acontecido. Parece que o horror da guerra se esfuma com a coroação de toda aquela ternura entre a guerrilheira e o combatente que não abandona um camarada nos ocasos da floresta. Uma trama engenhosa que desagua num mundo em destroços que não interessa completar porque a guerra não é cor-de-rosa e ninguém tem direito a saber o destino deste Bravo Elias que acaba de perder a sua estranha noiva de guerra.

Se há acontecimento mais feliz de um ano trágico da minha vida, em que ao perder uma filha procurei refugiar-me no estudo da trajectória da literatura da guerra colonial da Guiné, foi o de ter conhecido esta pedra preciosa que parecia guardada a sete chaves, inexplicavelmente.

É o momento preciso para que a cultura portuguesa se reencontre com uma obra-prima que reconcilia e abrilhanta, em todo o seu esplendor, a lusofonia que emergiu com o fim da guerra colonial.

Lisboa, 5 de Julho de 2010
Mário Beja Santos
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6715: Notas de leitura (129): Sobre a Unidade no Pensamento de Amílcar Cabral, de Sérgio Ribeiro (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6436: Bibliografia de uma guerra (56): Vindimas no Capim, de José Brás - Maneira mais cómoda para obter esta obra

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