quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3564: História de Vida (19): Meninos Soldados (Juvenal Amado)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (1), Ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Novembro de 2008, com um texto destinado à série História de Vida (2).

Mais um retrato dos tempos da guerra colonial, quando a ditadura mais se fazia sentir.

Assunto: Meninos Soldados

Caro Carlos

Depois da troca de correspondência havida entre nós dois e posteriormente com o Luis e conhecimento do Virgínio Briote sobre a anterior estória, cheguei à conclusão que relatar um pouco do que foram as lutas passadas dos senhores Loureiros, merecia uma segunda oportunidade.

Se entenderes que há interesse na estória, agradeço que me digas pois eu tenho alguma documentação eleitoral daquele tempo que poderá ser adicionada à estória.

O titulo é recuperado de um escrito do Torcato Mendonça, nome que é mencionado no decorrer da estória.

Um abraço
Juvenal Amado



Juvenal Afonso no dia de embarque para a Guiné, 18 de Dezembro de 1972

Juvenal com o amigo de Alcobaça, António, da Companhia de Transportes.

Aljustrel, Juvenal, Confraria e o periquito Lourenço, no Restaurante da Morte Lenta



2. MENINOS SOLDADOS
(Em memória dos senhores Loureiros, combatentes pela paz e liberdade)

O bairro Hipólito, em Alcobaça, serve de alojamento na sua grande maioria, a operários da Crisal e Raúl da Bernarda.

Tinha talvez uns 10 anos, morava mais os meus pais e irmãos provisoriamente na casa da minha tia, após termos ficado sem sitio para vivermos, por motivos que não interessam agora.

Filho de operário vidreiro, aí comecei a moldar o meu sentimento político.

Uma madrugada ouvi bater as portas de carro, mesmo debaixo da janela do quarto, onde dormia mais o meu irmão.

Em 1960 os carros eram raros e, que eu me lembre, no bairro não havia nenhum.
As visitas não eram para nós, mas sim para a casa ao lado.

Ouvi vozes graves, alguma turbulência, o choro de uma mulher, palavras nervosamente balbuciadas, várias pessoas entram no carro e este parte.

No dia a seguir apercebo-me, entre as meias palavras da minha tia e da minha mãe, que o senhor Loureiro tinha sido preso. Deixava a esposa e filhos num total desespero.

O senhor Loureiro era operário vidreiro na Crisal.

Era por demais reconhecido por toda a gente, que os vidreiros eram firmes opositores ao regime de Salazar. A Pide prendeu muitos militantes anti-salazaristas nessa altura e o senhor Loureiro foi um deles.

A partir daí passei a viver com o terror, de que viessem buscar o meu pai também, não que percebesse o porquê, mas na minha ingenuidade, pensei que prendessem todos os que fossem vidreiros.

Mais tarde também eu fui vidreiro e rapidamente fui apanhado pela contestação que grassava no nosso ambiente de trabalho.

Em 1969 fui aos primeiros comícios, onde os candidatos da oposição (*) discursavam, num ambiente carregado de ameaças por parte da polícia politica. Quando saíamos das sessões, trazíamos panfletos, que distribuíamos pelas povoações por onde passávamos.

Assim cheguei à idade do serviço militar e ai, sabendo o que devia fazer, faltou-me a coragem. Faltou-me a coragem para fugir, não ver mais os meus pais, irmãos, amigos e os locais nos quais eu tinha crescido. O medo do desconhecido e clandestino toldou-me os pensamentos.

Embora consciente da injustiça da guerra, fui mais um para engrossar a enorme legião de jovens, atirados para a mesma.

Fomos porventura os melhores soldados do Mundo, atendendo às condições em que éramos mal treinados, armados e enviados durante dois anos para combater soldados, que não cumpriam comissões de serviço, mas sim lutavam na sua terra e só acabavam o serviço militar quando morriam, ficavam feridos, ou no caso de vitória dos seus ideais.

Nós pelo o contrário sem razão e sem ideais, éramos carne para canhão. Na esmagadora maioria éramos milicianos.

Nós. os soldados, éramos em grande parte quase analfabetos, oriundos de zonas do nosso pais que competiam em atraso com as próprias colónias. Não tínhamos qualquer noção do nosso isolamento como País no crédito das Nações.

A Guiné foi em tempos apelidada pelos Ingleses, que estiveram na região de Bolama, (**) como cemitério de brancos. Devido ao seu clima foram-se embora. Só nós oriundos de um país atrasado aguentámos.


A chegada à Guiné

MENINOS SOLDADOS, retrato superiormente traçado pelo Torcato Mendonça, fomos recebidos ao largo de Bissau para nosso espanto e desconfiança pelos pilotos da barra porque eram negros.

Olhando para as águas barrentas pensava, que nada era como havía imaginado antes. O calor era insuportável às 11 horas da noite, quando amanhecesse não sei como seria.
Sufocava dentro do camuflado, novo em folha e por isso mesmo mais desconfortável. A sede que sentíamos, seria nossa companheira durante os 27 meses de comissão.

As horas foram passando até que amanhece, as Companhias desembarcam. Os pius pius e os periquito salta, salta, são as minhas memórias daqueles primeiros momentos. Os garotos faziam o gesto de quem nos degolava. Naquela atmosfera de festa para eles, era visível a nossa atrapalhação e receio, face ao nosso destino.

Eram camionetas civis, subimos para elas com as nossa malas e sacos. Chegamos ao Cumeré já noite, véspera de Natal.

As antiaéreas fizeram fogo de batimento de zona seriam talvez 22 horas pois o IN tinha atacado alguns destacamentos próximos.

Como não sabíamos para que lado estávamos virados, pensámos que estávamos a ser atacados. Foi o nosso primeiro cagaço se assim poderei chamar-lhe.

Conclusão

Também fizeram a guerra milhares de jovens que já naquele tempo estavam conscientemente contra o regime. Não deixaram de cumprir a sua obrigação de defender-se a si e aos seus camaradas. Nesses também houve coragem, abnegação, sofrimento suor e lágrimas. Choraram os nossos mortos e maldisseram o inimigo, mas não festejaram os seus mortos. Envelhecemos rapidamente.

Hoje estou divido entre a enorme honra de me encontrar no seio dos ex-combatentes, (consciente que não passei por metade do que muitos passaram), é muito o prazer que me trazem a maioria das recordações, mas também a certeza que combati numa guerra que nunca devia ter acontecido.

O senhor Loureiro passou pelas mais diversas torturas às mãos da Pide e esteve preso muito tempo. Quando foi solto vinha doente, desnutrido e pálido. Quando recuperou, retomou o seu lugar no seu local de trabalho. Reformou-se já depois do 25 de Abril de 1974, tinha começado a trabalhar com 5 anos no vidro, numa fábrica da Marinha Grande.

Vendia ainda há pouco tempo, junto ao Mosteiro de Alcobaça, miniaturas de vidro soprado para aumentar a pouca reforma. Não ganhou nada para ele e foi a pensar em nós todos que foi preso. Num combate desigual pela liberdade e igualdade, lutou com as únicas armas que tinha, a sua razão.

Não teve direito a medalhas, mas foi sempre com orgulho e humildade que ostentou a valentia dos que souberam dizer não.

Juvenal Amado

(*) Eram candidatos das forças Democráticas entre outros, os Drs. Vasco da Gama Fernandes e José Henriques Vareda. Também se candidatava pela primeira vez o jovem estudante Alberto Bernardes Costa, hoje Ministro da Justiça.
No comício o Dr. Vareda, a certa altura do seu discurso, apontou para as filas da frente e chamou assassinos aos esbirros que aí estavam. O Teatro José Lúcio da Silva, penso que já se chamava assim, quase vinha abaixo com a enorme ovação da sala, cheia até à porta.

(**) Bolama era o sítio para onde iam os nossos camaradas descansar nas férias. Eu nunca lá estive, mas diziam que era bom. Para os Ingleses não se lá aguentarem, como se aguentariam nas outras zonas?

Periquito vai no mato, olé lé lé lé
Que a velhice vai no Bissau, olari lo lé.


Juvenal Amado
_______________

Notas de CV:

(1) Vd. último poste da série Estórias de Juvenal Amado de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

(2) Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (19): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra)

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo e camarada Juvenal, não podia deixar de comentar o teu texto/artigo considerando que se trata duma peça muito importante para o conhecimento geral de que haviam pessoas que tinham vida difícil por se oporem ao regime de então e que haviam jovens que não eram totalmente alheios ao que os rodeava e que, por uma razão ou outra, também "engrossaram" os contingentes militares.
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Sabes Juvenal Amado, eu não quero e não posso aqui, neste espaço, comentar o teu texto ou a tua História(com agá) de Vida. Parece que muitos não conhecem...como se vivia em alguns "lugares". Como se era tratado por alguns esbirros e Ponto! Há verdades que...
Não tenho experiência própria...dos lugares...só dos esbirros. Não os odeio, só deles sinto pena... O teu testemunho é mais um a juntar a tantos que conheço. Bem hajas.Fazia falta aqui!
Um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Caro Juvenal

Este foi um testemunho importante das lutas que muitos fizeram para que o nosso país fosse digno para os seus filhos....e que ficaram esquecidos na voracidade das lutas de poder que se seguiram. Sei o que foi sentir a PIDE em nossas casas. Lembro-me bem de os ver na minha a basculharem até os meus livros escolares. O meu pai foi vítima duas vezes de um "bufo" qualquer, mas teve a sorte de não ger sido preso....como tantos outros.
Recordo ainda aquela primeira noite no Cumeré, com a malta a cair numa espécie de valas, cheias de cacos de garrafas de cerveja partidas, com o troar das peças de artilharia....ou lá o que era. Foi o nosso primeiro susto e logo no primeiro dia de Guiné, a 3/4 km em linha recta de Bissau e a 40 por estrada e ainda por cima na véspera de Natal - o nosso primeiro - seguir-se-iam mais dois.
Um abraço
Luís Dias

Anónimo disse...

"Também fizeram a guerra milhares de jovens que já naquele tempo estavam conscientemente contra o regime."

Nunca gostei de politizar as coisas, mas sempre gostei da coerência e, esta frase encheu-me as medidas, tanto mais que arrogantes e valentões do género "ninguém me cala" e, que na hora da decisão deram à soleta têm o desplante de se candidatarem ao mais alto cargo..

um abraço de satisfação

urbano silva

Juvenal Amado disse...

Camaradas e amigos
Em Alcobaça foram muitos os presos politicos desde operários, pequenos comerciantes, empregados de comércio.
Também houve estudantes incorporados à força, mandados para as colónias, como forma de combater as actividades estundantis contra o regime. Era comum circularem abaixo assinados, a pedir a libertação dos jovens estudantes.
Na Crisal faziam-se colectas clandestinas, para ajudar as famílias dos operários presos.
Vou aproveitar para prestar homenagem ao sr António Magalhães, grande industrial e patrão da Crisal Cristaias de Alcobaça, que atrazou a entrada da policia nas instalações da empresa e a sim, deu oportunidade que alguns operários que iam ser presos, fugissem.
A verdade é que são precisas pequenas estória para se reconstruir o nosso passado colectivo.
Muito obrigado pelos vossos comentários, que só enriqueceram o poste em presença.
Um abraço
Juvenal Amado