segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (JAN - JUN 1967)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (X)

Contuboel, 11 de Janeiro de 1967

Chegou alguma da tropa que nos vem render. O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente. Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.


Contuboel, 13 de Janeiro de 1967

Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.


Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967

Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.


Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967

Veio o Governador a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada. Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra. Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.


Lisboa, 27 de Janeiro de 1967

Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer? Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!


Tomar, 28 de Janeiro de 1967

Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo. Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.


Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967

Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente. Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.


Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967

Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me: - O minino sente-se mal, está doente? - Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.


Coimbra, 14 de Junho de 1967

Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchilostoma raríssimo. Bicharia da Guiné. Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.


Coimbra, 28 de Junho de 1967

Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe: - Deixa cá ver a farda. - Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra, também lá estava. Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:

Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].

Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].

Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques, a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.
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Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Nascimento do primeiro filho (OUT - DEZ 1966)

1 comentário:

MANUEL MAIA disse...

GOSTO DE TI,POETA MAIOR,QUE NOS BRINDASTE COM O TEU SENTIR.

MANUEL MAIA