domingo, 25 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5157: Histórias de heroísmo (1): Sold nº 939 Paulo: Olha os cabrões, já me f... a arma! (José Colaço)

1. Texto do José Colaço, ex-Sold Trms, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde Junho de 2008 (*).


Olha, os cabrões, já me foderam a arma!

O título é forte mas o Paulo merece... Na descrição do texto direi a razão, mas os nossos editores têm toda a liberdade de o alterar se verem que ofende a moral pública.

No dia 3 de Agosto de 1964, os trabalhos da construção do quartel [de Cachil] podiam ser dados como concluídos. As explorações à mata do Cachil por ordem do CTIG tinham deixado de ter interesse, parece que o ponto fulcral era agora abrir o caminho Catió-Cufar.

É recebido uma mensagem no subsector do Cachil para a companhia, a 557, dispor de quase todo os efectivos, para participar na tentativa de limpar Cufar, zona onde o inimigo estava muito bem instalado. (A sorte foi que o inimigo nunca se lembrou de atacar o quartel num desses dias).

Nesta operação estavam também envolvidas outras forças, a companhia de Catió e os fuzileiros do sétimo destacamento que nesse dia pelo menos foram contemplados com uma baixa, o sargento vago mestre, o homem levou uma bazucada no ventre e levantou, num autêntico voo. Morte imediata com aquela zona do corpo desfeita.

A operação para a CCaç 557 era só por um dia. Principal razão: a insegurança em que o quartel do Cachil ficava. Havia camaradas que se ofereciam para trocarem e irem para o mato com todos os perigos que sabiam iam encontrar, mas o receio de ficarem no quartel ainda era maior.

As tropas da CCaç 557 saíram ao romper da manhã, embarcadas nas lanchas LDP e LDM e lá seguiram pelo rio Cumbijâ até à zona programada para o desembarque. As viaturas de Catió só iam até onde fosse considerado zona de segurança. A partir dai era a autopenantes.

Lá seguimos até encontrar o confronto com o inimigo. Era uma zona de mato como é normal, mas havia naquele local uma seara de milho, o que dava para ocultar a nossa progressão mas não protegia nada do fogo inimigo, que estava bem instalado e armado com um poder de fogo muito forte.

Houve da nossa parte um pequeno recuo, mas o pessoal não se apercebe de momento que o ilhéu 2º sargento Conde estava ferido com dificuldades de locomoção, mas pior estava o soldado nº 938 António Pires Martins Belo, mais conhecido entre nós pelo alentejanito, devido ao seu porte físico. Ele gritava com dores sem se poder deslocar e isolado.

Entretanto dois elementos do inimigo apercebem-se da situação do nosso camarada, e rastejam para tentar resgatar o António. E é aqui que surge o primeiro acto de coragem dos soldados nº 939, Dionísio da Conceição Paulo, e nº 917, António de Jesus Guilherme.

Foi feita uma barreira de fogo, os referidos soldados rastejam por baixo dessa barreira de fogo, o Paulo carrega o António Belo às costas, sempre a rastejar até conseguir trazer o camarada António para junto de nós, e o Guilherme trouxe a G3 do António Belo, sempre protegidos pela barreira de fogo.

Mas, além do azar, em tudo por vezes também a sorte nos acompanha e neste caso o António Belo teve alguma sorte: primeiro os camaradas que num acto destemido, com risco da própria vida, [fazem tudo} para salvar o companheiro o amigo; a seguir a equipa médica do helicóptero que no local lhe fez duas ou três transfusões de sangue senão o António Belo tinha-se finado.

O António Belo foi operado no Hospital 241 em Bissau onde permaneceu cerca de cinquenta e poucos dias, a seguir foi enviado para a metrópole para tratamentos e recuperação, não regressando mais à Guiné. O António hoje vive feliz em Castelo de Vide, casou, é pai, tem uma filha e um filho que trabalham e moram em Lisboa.

Bem, agora vamos esclarecer a história do titulo. O Paulo, assim que pôs o amigo em porto seguro, continuou como uma fera ferida, enraivecida, no seu ataque e defesa, mas a certa altura ouve um um barulho estranho na zona da culatra da G3 e simultaneamente a arma encrava. Olha para o carregador e vê no mesmo uma bala cravada. Reacção:
- Olha os cabrões, já me foderam a arma!

Seria normal até entrar em pânico mas a reacção foi esta... A seguir pega na arma do António Belo e continuou no seu acto de bravura.

Foi condecorado com a cruz de guerra, não sei de que ordem ou classe. O 2º sargento Conde, também evacuado para a Metrópole, não regressou à companhia, encontrei-o por acaso uma única vez num jogo de futebol Benfica-Sporting mas devido ao movimento e a ele já estar sentado só nos cumprimentámos.

Um alfa bravo, Colaço.

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

2. Comentário de L.G.:

A tua história merece que demos início a uma nova série, Histórias de Heroísmo... Palavra que usamos sempre com cautela, com pudor, com acanhamento e às vezes até com culpa!... Seria idiota, por preconceito, ou por um qualquer complexo (de culpa, de superioridade, de inferioridade seja o que for), não contarmos aqui as histórias dos nossos... heróis (da terra, do ar e do mar). Que os houve, seguramente, ao longo destes anos todos de guerra. De um lado e do outro, do nosso lado e do lado do PAIGC. Originalmente, a palavra herói, na língua grega, queria dizer, filho de um deus ou de uma deusa, e de um ser humano (homem/mulher), alguém que, pela genética, tinha qualidades sobre-humanas... O heroísmo é, pois, segundo os dicionários, "o conjunto de qualidades e acções que elevam um homem à classe de herói"...

Os heróis que conhecemos na Guiné eram de carne e osso, vulgares, mortais, com um buraco entre as pernas como os outros, nem melhores nem piores do que os outros, filhos de uma qualquer Maria e de um qualquer José... Como os teus camaradas, os Sold nº 939, Paulo, e nº 917, Guilherme...

Não quero aqui teorizar sobre o heroísmo na guerra. Quero apenas, como editor, agradecer-te mais esta história e desejar bom sucesso para as seguintes. A porta fica aberta. Deixemos aos leitores (devidamente identificados!) a tarefa de opinar, avaliar, criticar, malhar, comentar...

Quanto às ofensas à moral pública, José, que apareça o primeiro... filho da mãe que se atreva a atirar-te a primeira... pedra! Quanto ao Belo, vai daqui um quebra-costas valente, lá para Castelo Vide onde ele vive, espero que feliz e com saúde.

LG

___________

(*) Vd. postes relacionadas com o José Colaço e a CCAÇ 557:

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

29 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3099: Os Nossos Regressos (13): Fundeámos ao largo, com as luzes de Cascais...(José Colaço, Cachil, Bissau, Bafatá, 1963/65))

9 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4196: Blogpoesia (39): CCAÇ 557, Missão cumprida na Guiné (José Colaço/Francisco dos Santos)

1 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4765: Convívios (153): Almoço/Convívio: CCAÇ 557, Cahcil, Bissau e Bafatá 1963/65 - (José Colaço)

18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5125: José Augusto Rocha: da crise estudantil de 1962 à Op Tridente, Ilha do Como, 1964 (José Colaço / Luís Graça)

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Colaço
Tal como refere o Luís Graça, histórias como essa devem mesmo ser contadas.
Penso que o sargento Conde deve ser o Manuel Conde, natural da ilha Graciosa, casado com uma prima minha e que ficou sempre com problemas causados por esses ferimentos. Já faleceu há vários anos.
Abraço Henrique Matos

José Marcelino Martins disse...

O seu a Seu Dono

DIONISIO DA CONCEIÇAO PAULO, condecorado com a Cruz de Gerra de 2ª Classe, por acção desenvolvida no dia 3 de Agosto de 1964, que consta na Ordem do Exercito nº 15, IIIª série de 1966.

José Martins

MANUEL MAIA disse...

CARO COLAÇO

O QUE NOS TRAZES SOBRE A SOLIDARIEDADE,SOBRE A FRATERNIDADE,APESAR
DE TUDO,AINDA NOS FAZ ACREDITAR NO HOMEM,MAU GRADO ESTA PERDA DE VALORES DA SOCIEDADE ACTUAL.

O PACTO DE SANGUE COMO AQUELE ENTRE UM FILHO DE CHEFE GUINÉU,QUE O MORALES PELA PENA DO VASCO TÃO BEM CANTOU,FOI OUTRO MOMENTO DE PRAZER QUE SERVIU DE TÓNICO PARA
SE ESPERAR UMA CONSCIENCIALIZAÇÃO
DA COMUNIDADE SOCIAL.

PODE SER QUE OS JOVENS QUE NOS LÊEM,(E HÁ MUITOS) SE APERCEBAM,DE QUE OS EGOÍSMOS,OS DESRESPEITOS,OS ATROPELOS,NÃO SÃO O MELHOR CAMINHO A SEGUIR.

OBRIDADO COLAÇO E OBRIGADO MORALES,PELO QUE TROUXERAM DE BOM,ESPECIALMENTE NESTA ALTURA DE NECESSIDADE DA OBSERVÂNCIA DESTES VALORES TÃO ARREDIOS.
UM GRANDE ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Boa noite Camarada José Colaço
Excelente história de um grande acto de coragem.
À distância no tempo bem merece ser recordada e sabe bem saber da justa condecoração da Cruz de Guerra de 2ª.classe com que foi agraciado o Dionísio da Conceição Paulo.
Do título também gosto.
E do tempo.
Em Agosto de 1964 estava há 2 meses e meio na Guiné.Em Binta, no Norte, perto de Farim. Na CCaç. 675.
Um grande abraço.JERO

Anónimo disse...

Caro Colaço,

Teremos mais oportunidades de falar do Cachil e de Cufar.

Hoje apenas os parabéns por trazeres aqui à Tabanca estas verdades vividas.

Toma lá aquele abraço do tamanho do nosso Cumbijã,

Mário fitas

Anónimo disse...

Caro Colaço

São momentos como os que narraste que,para alem de exemplos, unem para sempre quem os viveu e servem para demonstrar uma das muitas verdades da guerra que fortalece e une quem por ela tenha passado.

Um abraço
Luis Faria

Colaço disse...

Não vou individualizar,o agradecimento é para todos
As palavras que os nossos comentaristas escreveram sensibilizaram-me que ao ler os comentários a emoção foi mais forte, [aliás eu sou um fraquinho sentimental] os meus olhos ficaram rasos de agua, mas quem merece esta solidariedade, fraternidade, que são autenticas menções honrosas é:o Belo, o Paulo e o Guilherme.
Vou dar a conhecer este poste e os respectivos comentários, aos meus companheiros, amigos, camaradas no dia 7/11/2009 no almoço anual de confraternização C.Caç.557 que terá lugar em Almeirim, Santarém.
Muito obrigado a todos pelas palavras tão carregadas de emoção e amizade,podia estar para aqui todo o tempo do mundo a adjectivar no bom sentido.
Cumprimentos e um quebra costas fazendo uso das palavras do Luís Graça. Colaço.