quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma história simples sobre as minhas andanças por terras manjacas. Deixo à apreciação dos nossos camaradas os choques de vivências diferentes e os preçários então praticados em terras manjacas.

Para ti, para todos os camaradas e vossos familiares um grande haja saúde.
Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (22)

Aventuras em terras manjacas

Na Mata dos Madeiros éramos, constantemente, surpreendidos com situações muito diversas. Resolvê-las era, em muitos casos, um problema que dependia mais da capacidade humana de cada um, sem esquecer o lado militar.
A incompreensão na solução das situações que nos surgiam, poderia levar a uma situação de rotura do elo de ligação entre comandos e comandados, o elo de respeito humano.

Numa das minhas saídas para a mata, fui surpreendido com um pedido formulado pelos militares da minha Secção. Queriam, pediram eles, aproveitar a nossa próxima folga de serviço para irmos a Teixeira Pinto. Bem me apercebi das suas intenções!

Bajuda Manjaca (Edição da Confeitaria Império - Bissau)

A minha reacção imediata foi negativa. Ainda tinha bem presente a emboscada feita aos Comandos, os tiros disparados pelo Fur Mil André Fernandes sobre algo suspeito, não identificado, que pressentira quando acabara de emboscar para a noite, as duas morteiradas que caíram para os lados do Balenguerez tentando localizar as nossas forças, através de uma possível resposta destas e a prisão de dois homens na mata e que acabámos por deixar ir.

Confesso que também não sentia nenhum à-vontade em fazer a deslocação para Teixeira Pinto, sobretudo o troço até ao Bachile. O perigo entre este quartel e a Ponte Alferes Nunes era menor. Para além disso, também levei em conta o facto de nunca termos estado em Teixeira Pinto, nem termos tido qualquer contacto com as populações manjacas, para além daquele que tínhamos com alguns dos capinadores, sobretudo os jovens, que nos acompanhavam no acampamento.

Notei o desânimo estampado na cara daqueles moços, tão jovens quanto eu, ao receberem o meu não imediato. Não falámos mais no assunto, mas não deixei de pensar nele. Quanto mais pensava na minha reacção menos à-vontade me sentia.

Na manhã seguinte, de regresso ao acampamento, fui ter com o nosso Cap Mil Rogério Alves, a quem coloquei o assunto. Tal como eu, a sua recusa foi imediata e pelas mesmas dúvidas que me tinham assaltado. Acrescentou o facto de, em caso de ataque, o acampamento ficar com menos uma Secção na defesa.

Para a sua última dúvida em não podia ter resposta. Já a nossa segurança no percurso até à ponte Alferes Nunes poderia ser garantida com algum atraso na escolta da tarde ao Bachile. Na manhã seguinte, a minha Secção também não chegaria a tempo de ir para a mata, mas poderia apanhar a primeira escolta do dia ao Bachile.

O capitão lá foi acrescentando que o pessoal estava farto de ração de combate, bacalhau com grão, dobrada desidratada com feijão, entre outros, que me autorizava a ir a Teixeira Pinto, mas que eu teria que trazer carne fresca e que me responsabilizava pelo comportamento da Secção.

Há muito aprendera que, nas nossas circunstâncias, a única certeza que tínhamos era a incerteza. Por isso, guardei segredo até momentos antes de acabarmos os nossos deveres do dia. Que, diga-se, acabaram logo ali...

Havia que preparar o atavio para a saída. Camuflado a preceito, botas engraxadas, brilhantina e água de cheiro bem carregadinhas, tudo em nome das pu(r)as donzelas de Teixeira Pinto.

Já nesta vila, dei-lhes conta da promessa que fizera ao Capitão. Todos compreenderam o que estava em jogo. Nenhum perguntou, nem era necessário, o que me fizera mudar de opinião. Pediram-me que os acompanhasse... só para o jantar. Fi-lo com gosto!

Passeio açorianíssimo em Teixeira Pinto: José Câmara e o Chaves (St. Maria) da CCaç 2791


Sobre este assunto, foi assim que escrevi à minha madrinha de guerra.

Mata dos Madeiros, 11 de Maio de 1971
Ontem... Ao chegar de outra operação tinha 2 cartas para mim: uma tua e outra de meus tios. Em boa verdade, até dispensei a minha Secção por um quarto de hora para as ler. Sabes que horas eram?! Nada mais nada menos que cinco horas da manhã e as cartas foram lidas à luz dos faróis da viatura que ía sair comigo.


Isto é assim: chegámos do mato e não se pára, o trabalho continua. Só vim a descansar a partir das duas da tarde e fui a Teixeira Pinto com os meus rapazes, tendo regressado há pouco.

O passeio foi agradável. Umas voltas por lá com um bom bife à noite (tirei a barriga da miséria) e fui ao cinema. O pior seria à noite na cama. Todas as vezes que me mexia acordava. Ela era tão mole que me dava vontade de dormir no chão. Só para não perder o hábito!

De manhã, logo pelas 6 horas, fomos à procura de vacas, porcos, cabritos e galinhas. Nunca tinha ido e acredita que já tive muitos problemas e horas de boa disposição. Mas, as duas ao mesmo tempo não acontecem muitas vezes.
Fomos até a uma tabanca e os soldados que estavam comigo iam entrando nas casas. Nos quartos das casas estavam os cabritos, os porcos e tudo o mais, que nem parece deste século.

Toda aquela bicharada punha-se a fugir quando entrávamos e cheguei a pensar que estavam ensinados nesse sentido. Para apanhar duas vacas levámos quase uma hora e meia. Uma pesava 90 kgs e a outra 110 kgs. Paguei pela primeira 630$00 e pela segunda 770$00. Pagámos 7$00 por kilo. Também apanhámos um porco que custou 70$00, um cabrito pelo mesmo preço e uma galinha que custou 12$50.
Imagina a festa que é ver 11 homens a correr atrás de uma vaca, de uma galinha, ou os mergulhos às pernas dos animais.

O pior viria a seguir. Quando estávamos para vir embora começaram a tocar batuque e e a dançar, numa última despedida às suas vacas. Tive pena daquela pobre gente. É que eles guardam e estimam os animais.

A reacção daquelas gentes fez-me lembrar as famílias açorianas quando embarcavam os seus animais com destino ao mercado continental. Ficava sempre a tristeza de ver partir os bichinhos que, durante mais ou menos anos, tinham feito parte das suas vidas. Porém, compreendia-se que esses animais iriam cumprir a missão para que tinham sido criados e sustentados: ajudar, financeiramente, o agregado familiar.

Em Teixeira Pinto fomos encontrar realidades bem diferentes, sobretudo as de crença religiosa.

Os manjacos professavam o animismo, acreditavam no IRÃ e abominavam o roubo. Por isso mesmo, a sua cooperação foi, na prática, nula. Daí o termos entrado nas suas moradias à procura dos animais. Não acredito que o fizemos por sermos mais fortes, mas porque a necessidade se impunha. Tanto assim é que, quando se negaram a dar um preço pelos animais, nós levámos estes e seus donos à Administração Civil. Foi aqui que os animais foram avaliados e pagos.

Ao regressar à Mata dos Madeiros, mal sabia que voltaria a viver situações semelhantes num futuro relativamente próximo. Mas com a lição aprendida! Passei a contactar o chefe da tabanca para ajudar no processo.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7059: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (21): Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

4 comentários:

Jorge Fontinha disse...

Essa fotografia, traz-me uma certa nostalgia, do meu grande amigo e camarada de muitos meses, Antonino Chaves,desde Junho de 1970 ainda em Évora.Desde o nosso sembarque no último fim-de-semana de Setembro de 1972, que não tenho o prazer de o abraçar.Um abraço para ele, como para ti.Foi pena ele na altura não me te ter apresentado.Certamente que a nossa cumplicidade se tornaria mais estreita, pois eu tinha por essas bandas, mais protagonismo!...O Chaves sempre foi mais reservado...

Aquele abraço

Jorge Fontinha

Torcato Mendonca disse...

Bonito trabalho. Mas deve ser terrível suportar. É que fazer um bordado daqueles, leva muito tempo certamente.

AB do T

Luis Faria disse...

Amigo José Camara

A exposição dos Posts em primeira pagina é realmente de pouca duração!

Com que então a tua Rapaziada queria uma folgazita em TP para descansar a vista,comer uns bifitos com batata frita e ovo a cavalo e tambem carne da "entremeada feminina"...

Esquecendo-te de pedir os bons ofícios do Fontinha ou do Chaves(Obelix)para as suas Professorinhas(?),resolveste pôr e bem (?),os teus Rapazes a correr atrás dos galináceos e da carne viva de quatro patas (!!!)e como tal a fazer exercicio fisico de que certamente precisavam!Não teria sido melhor polos a fazer elevações??!

Um abraço

Luis Faria

Juvenal Amado disse...

Caro José da Câmara

Só hoje li o teu poste que não posso deixar passar em claro pois gostei muito.

Estou como o Torcato em relação ao trabalho «artístico» que a bajuda tem. Deve ter sido bem doloroso, mas deve ser para ficar mais bonita. Se lhe disséssemos que não, ficava ficaria de certo chateada.

Mas há um outro pormenor que tu lembras, é o embarque do gado para o continente e da tristeza que os seus criadores sentiam. Faz-me lembrar o livro do teu conterrâneo João de Mello «GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS» que descreve com muito realismo o processo.

Povo dos Açores sofrido que ele tão bem relata e que me apaixonou pelas ilhas bastantes anos antes de lá ir.

Um abraço

Juvenal Amado