Queridos amigos,
Vai-se a uma instituição universitária à procura de uma potencial leitora que amenize a vida de um cego culto que pretende os serviços de alguém que goze de boa dição, e enquanto se espera lê-se num jornal da respetiva associação de estudantes um texto magnifico, fala-se de uma África que corre nas veias de alguém que se ri de todos aqueles que supõem que África não tem História. O que deu para pensar a quem ali foi que teve também almoços como aqueles, com moamba, funge, pirão, brancos, mestiços e pretos à volta, tudo em risada desbocada. E assim se cozeram duas falas e o produto é o que se segue.
Um abraço do
Mário
Diário de Ébano, por Sofia Yala Rodrigues
Beja Santos
Há bem mais de 30 anos que eu não entrava na Faculdade de Letras de Lisboa. A fachada, concebida por Almada Negreiros, mantém-se intocável, felizmente. O átrio principal mudou muito, é um convidativo espaço de marketing lucrativo e de causas, as paredes bem pintadas, desci até ao piso inferior, depois de olhar nostalgicamente para as vitrinas onde se afixavam as pautas, onde se anunciavam as conferências, as datas das frequências e dos exames, a sobriedade do passado desapareceu, é tudo rutilante, um quase chamamento de relações públicas. No piso inferior, foi confrontado com vendas de livros, novos e usados, atravessei um corredor infindável até chegar à associação de estudantes, era esse o meu objetivo. Sempre tentado pelas bancas, lá comprei António Carreira, André Álvares de Almada e mais uns papéis, a Guiné é o meu fado. Procurava uma jovem com cultura e boa dicção, para ler a um cego exigente, alguém que não gosta de vacilações na voz. A menina que me ia atender estava em derriço numa chamada telefónica, mandou-me sentar e eu obedeci. E estes casos, como nas esperas dos consultórios, tenho um impulso automático e saco de um livro, desta feita chamou-me à atenção o jornal da associação com o nome “Os Fazedores de Letras”, mais a mais com um título provocatório na capa “como se Deus sofresse de um reumático do Diabo”. O telefonema era interminável, embrenhei-me na leitura deste jornal referente ao mês de Setembro, a menina com os cotovelos no balcão continua a falar de ordens de batalha no campo dos estudos, entra gente e logo recua, apercebem-se da indisponibilidade da rececionista. E é nisto que um texto me engole por inteiro, uma África plena, uma saudade luxuriante, quem quer que tenha escrito esta belíssima página tem África no sangue e no coração e senti-me no dever (entenda-se no gostoso dever) de transcrever para gente ofuscada por África este...
Diário de Ébano
Sinto o cheiro a óleo de palma, oiço as conversas e vejo o Sol a atravessar a persiana do meu quarto. Ao fundo do corredor uma melodia de vozes femininas e o barulho de água a escorrer na cozinha. Falam em Kinkongo, concluo que é razão para saltar da cama e correr pelo corredor como uma louca. Ao chegar à cozinha perdi o Alzheimer temporal, como é óbvio. É Domingo porque a cozinha cheira a Fubá e a minha tia Ngundu está a fazer funge ou fu fu, como dizem os meus primos franceses. O Kiluanji também veio, consigo ouvi-lo cantar para os pombos na varanda.
Na minha casa come-se funge somente ao Domingo, porque é o único dia em que conseguimos reunir a família e sentar à mesa sem horas e sem compromisso. O meu pai insistentemente conta que no Kakongo comia funge todos os dias, tenho a certeza que na altura devia ficar farto mas hoje ele conta essa história sempre em tom saudoso.
Voltei, a saltitar de felicidade, para o meu quarto, arranjei-me e por fim peguei no meu pente favorito e penteei o meu cabelo o melhor que podia para reavivar o meu afro que agora estava parecido ao da Kathleen Cleaver ou da Angela Davis. Sou linda e serei uma guerreira, tal como elas. Olho para a janela e parece feriado, Domingo à portuguesa, a minha vizinha do rés-do-chão está a ver “Portugal em festa”, a senhora adora partilhar os sons televisivos pela vizinhança.
Enquanto todos falam à mesa, apenas consigo olhar para a beleza do feijão do óleo de palma, a perfeição do funge e o lindo peixe seco e o molho envolvente a fluir no meu prato cheio de vida. A mesa está repleta de iguarias e por isso tenho que acabar de comer este para a próxima rodada. Quando dou por mim, estão a falar sobre História. O meu tio Jonas é professor numa escola secundária e tem muito gosto em lecionar e em partilhar com a família todos os acontecimentos ao longo da semana. Desde que sou pequena que Jonas faz questão de transmitir e fazer despertar a minha identidade cultural. Agora entendo-a perfeitamente. Conheço o império de Benim, o império Songhai, o império Monomotapa, o império do Congo. O meu tio é o meu herói, porque sempre que oiço a parte dos “Descobrimentos” na escola dá-me vontade de rir, mas ele ensinou-me que a vida é feita de perspetivas. Muitos jovens como eu, só sabem a história que é lecionada na escola, nunca saberão o que foi o pan-africanismo, no máximo saberão que estas pessoas não tinham alma e que pertenciam a correntes de dor e de servidão. Acordei de mais um prato delicioso, agora olho para o rosto negro do meu tio, olhos desenhados e lábios contornados, feições de guerreiro que me relembram os velhos contos da minha avó “jovens de corpos estéticos da cor do ébano, verdadeiros guerreiros do Deus da Terra”.
Desvia o olhar com um muxoxo e disse que estou com olhos de mvumbi ankengele, parei de olhar e comecei a rir. Começou a contar que enquanto transferia conhecimentos sobre o mundo a uma turma, o seu jovem aluno André, baralhado com a história sobre o reino de N’zinga disse: “O meu pai sempre me disse que África não tem História”. Olhamos uns para os outros e a mesa transformou-se numa explosão de gargalhadas, até a minha tia Ngundu começou a rir, o que é bastante raro. Todos afirmamos: “Como será possível alguém existir e afirmar tal coisa?”.
Sofia Yala Rodrigues
Imagem extraída do blogue Coisas da Vida, com a devida vénia
Depois sou atendido, conto a minha história, a rececionista toma conta do meu caso, estou mais ausente que presente, porque em minha casa é Sábado, vai haver funge aprimorado pela avó Ângela, batem à porta e entram mestiças, pretas e brancas ruidosas, nasceram ou viveram em Lucala, Vila Salazar, Malanje, são grandes amizades que deixou Angola nas minhas ancestrais, riem desbocadamente, as bocas avermelhadas pelo óleo de palma, é impossível seguir aquelas conversas, fala-se de missangas, malaguetas, obras em marfim, há fotografias que passam de mão em mão, entre exclamativas, risinhos de assombro. Este foi o meu diário de Ébano, que vim imprevistamente reencontrar à entrada de uma associação de estudantes, e rio-me para dentro, a nossa África tem história, aquele de que sou portador no sangue e mais aquela que são os laços estabelecidos lá no num ermo da margem direita do Geba, em que recebi o nome de família, numa terra que está adubada em sangue, em sofrimentos mil, e de onde verdadeiramente nunca saí. Percebo muito bem do que é que Sofia Yala Rodrigues faz mofa, daquele passado, presente e futuro em que ignora África, os seus odores, fragâncias, lianas nas florestas, palmares soberbos, pedaços de Éden, é nesse ambiente que se ergueram culturas, idiomas e se multiplicam artes que os ocidentais provincianos chamam por arte tribal.
Que privilégio ter um diário de ébano, comentei para mim, sonhador, quando saltei para o autocarro e me atirei para a chamada civilização superior.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Boa noite!
Por magia encontrei este post. 6 anos depois ...
Espero que esteja bem de saude, muito obrigada por esta publicação que me despertou novamente a vontade de regressar à escrita.
Um grande Abraço
Sofia Yala Rodrigues
Enviar um comentário