O BLOGUE E A SUA IMPORTÂNCIA
Caros Editores
Amigos e camaradas,
Há perto de um mês, um professor de História da Escola Secundária de Moncorvo, Armando Gonçalves, solicitou ao Blogue a sua colaboração para que pudesse concluir a sua pesquisa sobre as condições que envolveram a morte do Alf Mil Lourenço da CCAV 8350, falecido na Guiné em 5 de Março de 197373(1).
Este caso englobava-se num projecto mais amplo, respeitante a todos os ex-combatentes de Moncorvo, falecidos nas ex-províncias ultramarinas e nascidos no concelho de Moncorvo. Como se depreende a sua tarefa não foi fácil. O conhecimento das datas de nascimento, filiação, localização dos cemitérios onde se encontram os corpos e a localização de familiares ainda vivos exigiu muito tempo e perspicácia ao Armando. Os locais e as circunstâncias em que morreram foram talvez o trabalho mais complicado. A singela homenagem aos ex-combatentes mortos ser-lhes-à prestada com a colaboração da Câmara Municipal, em data oportuna.
Quero deixar aqui duas notas: O meu apreço e gratidão pela dedicação do Armando a ex-combatentes, nossos camaradas e amigos. Não basta dizer que houve uma guerra e como em todas as guerras há mortos, feridos e estropiados. É redutora esta visão. Há algo mais para além disso. O meu apreço pela pronta, rápida e eficaz colaboração do Blogue, que acabou por me envolver neste processo e me sensibilizou para avançar na localização da campa do Alf. Lourenço e da da sua família.
Em pouco tempo se reuniram a maior parte dos elementos que o nosso amigo Armando precisava com a ajuda preciosa do Alf. Gonçalves, outro dos Alferes da CCAV 8350, que vive em Almada e não via há imensos anos. Localizámos a campa do Alf. Lourenço e dois dos seus primos ainda vivos.
Prestar uma singela homenagem, junto da campa do Lourenço, no Monte da Caparica, conversar com o Gonçalves e conhecer uma prima do Lourenço era uma razão forte para me deslocar ao Monte da Caparica, o que fiz logo que se deparou uma oportunidade. Foi um encontro emotivo e gratificante.
Durante o almoço recordámos vários amigos, várias situações e alguns episódios. Recordámos a morte dramática do Alf. Branco, em Gadamael, que foi substituir o Alf. Lourenço e que poucas horas permaneceu entre nós.
Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.
Foto: © António Carlos Morais da Silva, Coronel Art Ref.
Assisti, revoltado, na vala, à sua partida para o patrulhamento, desnecessário e sem sentido. Já não o vi regressar.
Ainda hoje dói ao reviver o filme deste episódio. Não é minha intenção responsabilizar ou julgar alguém, o meu relato é factual.
No dia 31 de Maio de 1973 o Coronel Durão ordena-me para fazer um patrulhamento a Ganturé, da parte da tarde. A meio do percurso, perto das 15 horas, rebenta o ataque do PAIGC e ouvem-se as granadas a sibilar por cima das nossas cabeças. Chego ao local e constato que estou a 100 metros de uma boca de fogo do PAIGC. Solicito o regresso ao aquartelamento, conforme combinado, mas é-me negado, e só no dia seguinte de manhã regresso sem autorização superior, por não me ter sido possível estabelecer qualquer contacto, via rádio, com Gadamael. Entro no aquartelamento pelas 11 horas da manhã do dia 1 de Junho.
No aquartelamento sou informado pelo Alf. Seabra de toda a situação. Houve imensos mortos e feridos e não restavam mais de 30 homens, dispersos nas valas. Tinha havido uma fuga desordenada no dia 1 de manhã. Uns conseguiram chegar a Cacine e outros refugiaram-se nas imediações do aquartelamento, onde se sentiam mais seguros do que dentro do aquartelamento. E ainda outros que morriam na travessia do rio.
No dia 1 de Junho, da parte da tarde, o abrigo das transmissões é atingido e são feridos os dois comandantes de Companhia, que acabam por ser evacuados pelos fuzileiros estacionados em Cacine. Poucas horas depois chegam os dois novos Comandantes de Companhia e o Alf. Branco, em substituição do Alf. Lourenço. O novo Comandante da CCAV 8350 teve connosco uma breve conversa, para se inteirar da situação. No dia 2 de Junho ordena um patrulhamento ao Alf. Branco para a zona do antigo heliporto localizado nas imediações do cais. O Alf. Branco não tem homens e caso os tivesse não os conhecia e percorre, vala a vala, a perguntar quem pertencia ao 4.º grupo. Não encontrou ninguém.
Acabou por sair no dia 3, sob pressão do Comandante de Companhia, com 11 homens, voluntários e mal armados. Perante o desespero do Alf. Branco, ainda cheguei a saltar da vala para os acompanhar, mas a protecção divina e percepção da minha inutilidade, aconselhou-me a não o fazer. Mal entrou na mata o pequeno grupo foi fortemente atacado pelos militares do PAIGC, instalados em valas, em missão de protecção avançada aos camaradas estrategicamente colocados no cimo das árvores, para orientar o fogo. Isto acontece a menos de 100 metros do arame fardado. Registaram-se 5 mortos e 1 ferido grave, sendo recolhidos pela Companhia de Paraquedistas 122, recém-chegados.
No ar pairava um misto de dor e revolta. A noite era de breu, alguns comentários ecoaram e o Comandante de Companhia acabou por exercer algumas represálias sobre mim e sobre o capitão Catarino, ex-adjunto do Major Coutinho e Lima, que também tinha presenciado a saída do reduzido grupo de combate.
Gadamael foi mau demais e só não se transformou num enorme cemitério, devido ao apoio relativamente rápido das três Companhias de Paraquedistas que a partir do dia 3 de Junho passaram a operar em rotatividade.
Recordo algumas palavras escritas na altura.
GADAMAEL-PORTO EU TE AMO, EU TE ODEIO
Na vala recordo os dias alegres da infância,
os tempos da boémia coimbrã e a ti, Catarina.
Chove, troveja.
Não, não é um trovão, alerta o João.
Deito-me na vala, o mundo parece desabar.
Outra saída, outra e mais outra....
Ouço gemidos.
O João calara-se para sempre.
É manhã. Ai o café quente de Bissau!....
Os rebentamentos não param.
Abdulai, nosso guia de Guileje,
chora os nossos mortos com palavras sentidas e comoventes.
Na vala refilo,
protesto com palavras obscenas contra tudo e contra todos.
Abdulai, o nosso guia, o nosso amigo,
morreu.
Um abraço amigo,
Manuel Reis
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Notas do editor
(1) Mensagem de Armando Gonçalves com data de 22 de Março de 2016:
Assunto: Victor Paulo Vasconcelos Lourenço
Boa noite,
Sou professor da Escola Dr. Ramiro Salgado de Torre de Moncorvo.
Uma das iniciativas para o 25 de Abril na nossa escola é lembrar os soldados mortos no Ultramar.
Tenho procurado na Internet informação de todos os nossos conterrâneos caídos, pelo facto encontrei o vosso Blogue e o texto de Hélder Sousa, Fur Mil Transmissões TSF (Piche e Bissau e 1970/72) sobre o Alferes Victor Paulo Vasconcelos Lourenço que muito me sensibilizou. Naturalmente, gostaria de apresentar este texto à comunidade, pois poucos conhecerão este episódio. Além de que seria uma homenagem devida.
Por este motivo procuro que o autor do texto Hélder Sousa possa compartilhá-lo connosco, com a devida autorização.
Grato pela atenção que possam dar ao exposto,
Atenciosamente,
Armando Manuel Lopes Gonçalves.
Último poste da série de 25 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15900: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (36): quantos quilómetros terá feito, em 9 dias, o valente soldado José António Almeida Rodrigues, na sua fuga, desde o local onde era mantido em cativeiro, na região do Boé, até ao seu porto de salvação, no Saltinho?
11 comentários:
Presto, comovido, a minha homenagem aos bravos de Guileje e de Gadamael. Leio, comovido, o surpreendente poema do Manuel Reis, escrito com sangue e raiva nas valas de Gadamael... O Manuel Reis é um dos nossos grã-tabanqueiros que pode pôr no seu currículo que desceu aos infernos e voltou à terra, à terra da alegria... Voltou, mas há memórias do inferno que não se apagam... O João, o Abdulai, o Lourenço, o Branco e tantos outros não regressaram... Às vezes carregamos esta culpa: porquê eles, porque não eu ?
Manuel, bom amigo e camaradA: o blogue, se alguma importância, não é por ser uma "feira de vaidades", ou muito menos por publicar as narrativas épicas dos heróis... Não é o Olimpo, ou o caminho para o Olimpo. O blogue fala, em primeira mão, das nossas alegrias e tristezas, dos momentos bons e maus que nos calharam naquele tempo e naquele lugar... O blogue é seguramente importante porque procura dá voz e rosto àqueles que a terra engoliu e comeu: o Lourenço, o Branco, o João, o Abdulai...
Obrigado, Manuel, pela teu poste e pelo teu poema... Terá lugar, por certo, na antologia poética da guerra colonial que um dia ainda haveremos de organizar, se Deus, Alá e os bons irãs nos deram vida e saúde...
PS -Um abraço para o professor Armando Gonçalves, de Torre de Moncorvo, que, ao organizar uma exposição sobre os mortos na guerra do ultramar / guerra colonial, naturais do seu concelho, está também a lutar contra a indiferença e o esquecimento que pesa sobre toda a nossa geração...
A verdade dói.
A verdade fere e mata consciências.
Tenho a esperança que um dia ainda se vai saber a verdade..nua e crua.
Um grande alfa bravo para ti "manel augusto".
C.Martins
É na verdade um poema escrito com sangue, num momento de desesperança e revolta. Está ali a demonstração da nossa impotência face à vontade do inimigo se ver livre de nós e a clara sensação de que éramos, cada vez mais, carne para canhão.
Como te compreendo Manuel Reis !
Um abração
Carvalho de Mampatá
Digo eu hoje :
"...ainda bem,que não estamos em Gadamael...".
Forte abraço. VP
Caro Camarada Carlos,
No Expresso a caminho de Portimão, acabo de ler esta narrativa do camarada Manuel Reis onde nos conta, em síntese, a sua experiência vivida no inferno de Gadamael, prestando, igualmente, homenagem aos que aí tombaram á sua volta.
Porque fiquei comovido com o seu relato, ao qual adiciona referências ao meu amigo e companheiro das lides académicas e desportivas - Artur José de Sousa Branco (ver o meu poste 15904) - seria interessante colocar este novo texto na etiqueta com o seu nome.
Obrigado pela atenção.
Um abraço para todos vós.
Jorge Araújo.
A minha homenagem a todos quantos não deixam esquecer o que aconteceu e mais sentida ainda por todos que perderam a vida.
A forma de não os esquecermos é falarmos deles, lembrá-los.
A quem não viveu esse tempo, mas procura hoje documentar-se, ajudar a lembrar o que se passou e levar até outros mais distraídos, o meu obrigado.
Um abraço ao Manuel Reis.
BS
Também vivi os acontecimentos de Gadamael como furriel paraquedista da 122. Quem deu ordens para que este pequeno grupo fosse patrulhar nas imediações do destacamento,deve sentir um grande peso na consciência. A emboscada deu-se a algumas centenas de metros do destacamento e não a cem metros como foi relatado no depoimento de Manuel Reis. Eu próprio carreguei os corpos para a Berliet,com a ajuda de outro furriel do meu pelotão e nesse momento houve um forte bombardeamento na zona do cais e com muita sorte não houve feridos.
Manuel Reis
Tantos anos depois, as lágrimas, teimosamente, voltam...e eu já me tinha "safado"!
Abraço!
Zé Teixeira
Jorge:
Há tantos camaradas, mortos no TO da Guiné, que estão aqui ainda por recordar e homenagear!... O Artur José de Sousa Branco, teu amigo e nosso camarada, herói da Gadamael, já tem, pelo menos, 3 referências no nosso blogue... Não queremos que ninguém fique na "vala comum" do esquecimento... Cabe-nos, a nós, que regressámos vivos e estamos vivos, falar dos nossos mortos.
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Artur%20Jos%C3%A9%20de%20Sousa%20Branco
Caro Luís,
Estando de acordo com o teu comentário, vou elaborar uma nova narrativa histórica articulando os Perinteps, a comunicação social e os acontecimentos de janeiro de 1974 em Canquelifá.
Hoje, ou amanhã, enviá-lo-ei.
Um abraço, J.Araújo.
Constantino Costa
CCavª. 8350
"Piratas de Guileje"
"ISENÇÃO E RIGOR"
1º. Foi o furriel Carvalho quem andou pelas valas a pedir voluntários;
2º. O pequeno grupo que saiu em missão de patrulhamento era constituído por 14 militares brancos mais o guia negro;
3º. Tudo aponta para que o alf. Branco tenha sido abandonado ainda com vida;
4º. No que diz respeito ao armamento a responsabilidade cabia por inteiro ao malogrado alf. Branco e fur. Carvalho;
5º. Em resultado da emboscada registaram-se quatro mortos e um ferido grave que mais tarde veio a falecer.
Cumprimentos.
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