sexta-feira, 20 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840); "Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)



Mário Beja Santos
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2016:

Queridos amigos,

É verdade que já se escreveram histórias da unidade em verso, e há muitíssimas rimas em edições de autor. Não conheço nada de tão íntimo, despojado de pompa que este testemunho de um alferes das Daimler que viveu a guerra e o amor em Teixeira Pinto e arredores, e que põe fundamentalmente em verso a sua forma de ler as fotografias do seu álbum daquele tempo.
Ele não se ilude: "A pessoa que agora as revive é diferente daquele viveu os factos a que se referem".

Mas há tesouros que não se apagam, e o ouro brilha sempre, tal como ele canta a amizade em teatro de guerra, como ele escreve com tanta singeleza:

"Hoje sou eu que ajudo./Amanhã poderei ser eu o ajudado./Só o viver as situações/nos ensina quem somos".

Que ninguém perca esta leitura, digo-vos eu.

Um abraço do
Mário


Outro olhar, Guiné 1971-1973, por Francisco Gamelas

Beja Santos

O testemunho de Francisco Gamelas [, foto atual à direita[, que comandou um pelotão Daimler em Teixeira Pinto, entre 1971 e 1973, é um documento único. Nunca saberemos o tempo que levou a congeminar esta solução original de voltar à Guiné meditando e poetando sobre fotografias pessoais. É um autor despretensioso, nada de farroncas nem de bravuras e diz abertamente: nem sempre os episódios narrados foram diretamente vividos pelo autor, soube deles por narrativas feitas na altura por quem as viveu.

É um regresso muito íntimo, na Guiné viveu atribulações mas chegou a ter ao seu lado a mulher amada. Sentiu deceções, não se deu bem no enquadramento da máquina militar, como escreve: “A qualidade humana e profissional da hierarquia era maioritariamente fraca. As massas militares não passavam de números, de estatísticas, de peças descartáveis de uma engrenagem com um dono todo-poderoso”.

 Descreve Teixeira Pinto, pelo que pude ler e ver é a Teixeira Pinto que aparece no meu livro “A Mulher Grande”, que ali viveu nos anos 50 em cuja casa recebeu Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, somente há que adicionar o quartel. Tudo pacato no sítio, mas o PAIGC movimenta-se em áreas próximas, no Balenguerez e na Caboiana.

Exalta a Daimler (p. 27), o seu instrumento de trabalho:

Esta bizarria careca e obsoleta 
também defendia o império. 
Puseram-lhe a tampa na valeta, 
desta vez com algum critério. 

No caso de pisar uma mina, 
no provável saltar e tombar, 
ao cuspir quem a domina, 
poderia a sua vida salvar (...). 

E apresenta também em métricas rítmicas as tarefas do seu pelotão (p. 29): 

(...) Nos caminhos com tapetes de alcatrão
rumo ao Cacheu e ao Pelundo, 
por vezes até João Landim,
exibíamos o nosso vozeirão
rouco, feroz e profundo
nunca faz de conta de ínterim.

Nas visitas dos senhores do poder
às terras das redondezas
erámos presença obrigatória
não fosse chegar e não ver
o aparato a garantir certezas
de um final feliz para a sua estória. (...)

Não lhe escapam datas de festividades, o trabalho da ação psicológica, as peripécias para angariar uma comida um pouco melhor, são saborosos os seus textos sobre a caça ao leitão e o rabo dos cabritos.

E temos as lavadeiras, assim louvadas (p. 49):

Serviço público por excelência
este de nos lavar a roupa suja.
Ranchos de jovens mulheres nativas
cuidavam de manter apelativas
as roupas dos brancos, cuja
paga era de uma esmola a evidência. (...)

Não esqueceu as crianças, a sua inocência e o seu gargalhar estrídulo, as práticas de higiene no lavadouro  (p. 57):

O prazer lúdico da água a escorrer
sobre a pele nua de uma criança
exprime a aparente confiança
de uma subtil normalidade a decorrer.

Enquanto a mão, para sobreviver,
lava a roupa de militares, balança
a sorte de quem no mato se lança,
tanto para matar como para morrer.

Contudo, é reconfortante a ternura 
que sentimos na simples observação
deste quadro e pensar que perdura,
ainda, neste nosso aviltado coração,
um sentimento nobre. Pura e dura
é a loucura desta arma na nossa mão.

Não se exime ao uso da prosa para castigar o estilo da crueldade, da incompreensão do horror, aquilo que se chama a banalização do mal, é o que escreve o título com "A Queda" (P. 59):

  "Não mais de 35 anos, triste, franzino e alquebrado, um soldado armado de cada lado, mãos atadas atrás das costas. Da negrura do seu corpo sobressaia o branco das pupilas. Na sua frente, formando o bico do triângulo, o sargento de dia, que comandava o grupo. O africano tinha acabado de ser entregue pela PIDE à porta de armas. Da penumbra do seu gabinete o tenente-coronel emergiu, dirigindo-se ao grupo, que parou, na expetativa. De onde me encontrava, pareceu inquirir o africano que o encarou, humilde, embora firme e determinado no seu silêncio. Inesperadamente, uma chuva de murros e pontapés, aplicado meticulosamente, desabou, inútil, sob aquele corpo que se apequenava a caminho do chão, sem produzir um queixume. Um último e violento pontapé, no corpo em posição fetal, há muito no chão, confirmou o cansaço do comandante. Arrastou-se e foi arrastado até ao calabouço. Cedo, na manhã seguinte, um helicóptero veio por ele. Chegou vazio a Bissau. Constou que o preso caiu pelo caminho”.

Não lhe saíram da memória certos lugares e espaços: a camarata em Bissau, a vida da messe de oficiais de Bissau a Teixeira Pinto, duas crianças a conversar no Pidjiquiti, a visita do ministro da Defesa, não lhe escapa um retrato a corpo inteiro do coronel (pp. 70/71):

“Entroncado, seco, estatura meã, sempre de camuflado com a sua boina de paraquedista, parecia um atleta de pesos e alteres. Passo miúdo e saltitante, cabeça rapada e bigode apurado, já a grisalhar. Constava que tinha praticado boxe. Olhava as pessoas sempre de frente sem nunca desviar o olhar. Personalidade forte, gostava de ser obedecido com rapidez e de forma eficiente. Tinha pouca paciência para quaisquer discussões. As suas frases eram curtas e grossas. Sabia que, no final era a sua opinião que prevalecia. Era ele que mandava. Para quê perder tempo?"

E há momentos inolvidáveis: acompanhado pela mulher ocorre um encontro na bolanha, foi momento mágico, como ficará no poema e na imagem (p. 75):

No saibro da linha direita e vermelha
na nossa direção, surge a caminhar
um vulto negro, passo lento e seguro.
O que poderia ser uma mulher velha
no porte e compleição, veio a revelar
a frescura própria de um fruto maduro.

Dois pequenos ramos secos nas mãos.
Como uma coroa, cingia-lhe a cabeça
uma fita clara de pano fino enrolado.
Os brincos das orelhas eram irmãos
do colar de contas do pescoço, peça
típica de mulher com marido prendado. (...)

Nem tudo circunda à volta do estro poético, há acontecimentos duríssimos, inocentes mortos que nunca mais se esqueceram, é preciso ler com os olhos límpidos e o coração disponível um texto pungente que se intitula “Efeitos colaterais" (pp. 78/81). E há a mais extremosa das confissões de amor, até porque a Lena virá para Teixeira Pinto e será professora, foi uma decisão com muitos escolhos (pp. 99/101):

“Mesmo assim, amor, decidimos casar
e começar a nossa vida em comum
neste reino de guerra sempre latente
aproveitando os intervalos
de alguma normalidade
para nos inventarmos
como casal.
Éramos jovens.
Sentíamo-nos imortais
apesar da evidência em contrário.(...)

Foi aqui, no Canchungo,
e nestas condições que aceitámos,
que o nosso amor floriu
que nos fomos aprendendo
na partilha permanente
nas cumplicidades do presente
e nela germinou a semente
que foi crescendo
no teu ventre
sangue do nosso sangue
carne da nossa carne
até nos acrescentar
em forma de rebento
a quem demos o nome de Sara”.

E, um dia, estão todos de regresso, finda uma saudade, rasga-se uma esperança, aquele barco de nome Niassa traz gente que vai recomeçar as suas vidas (p. 127):

Agora, quem espera já não desespera.
Está iminente o retomar da dignidade.
A felicidade pode mesmo ser verdade
e a carícia que nos afaga ser sincera. (...)

Não há livro neste extenso acervo da literatura de guerra como o de Francisco Gamelas. Resolveu o autor fazer a sua própria edição com uma tiragem de 150 exemplares. Irá arrepender-se pois há muito mais gente que quer guardar para si este majestoso e enternecido olhar de dois anos numa guerra, reescritos em alguns meses de 2015. Que obra tão bonita!


Parece olhar, enviesado, a objetiva/mas, sem nesse instante se manifestar/uma intenção do fotógrafo afrontar./Será mais um efeito de perspetiva. (Foto de Francisco Gamelas, p.114)


"Lena, por favor, a máquina fotográfica./Cicio numa pressa para a minha mulher./Máquina na mão, nos lábios um sorriso, abordo, afoito, aquela negra magnífica./Mas será que ela aceitar e entender?/Sorriu para mim, e nada mais foi preciso".  (Foto de Francisco Gamelas, p.74)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16094: Nota de leitura (839): Num número da revista Africana encontrei um trabalho de certo fôlego intitulado “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa”, da autoria da antropóloga Maria Teresa Vázquez Rocha (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Excelente texto, Mário Beja Santos! O Gamelas merece o reconhecimento e elogio.Foi meu amigo em Teixeira Pinto, aparece citado por três vezes no meu Diário da Guiné. Era um senhor, com a Helena a seu lado!
Abraço,

António Graça de Abreu

Tabanca Grande Luís Graça disse...

António, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... O Gamelas teria forçosamente que nos encontrar, mesmo sendo avesso a estas modernices da Interent,... Quem diria, um engenheiro das telecomunicações como ele, que trabalhou na PT Inovação... Entendo-o: ele protege-se!...

Mas se fizeres uma pesquisa no Google, escrevendo "alferes Gamelas", lá vamos ter ao teu "Diário da Guiné" e aos excercps que publicamos no nosso blogue.. És incontornável,
somos incontornáveis... Lá está o Gamelas, o Teixeira, o Pancadas, o Correia, o Durão, a Helena... o Graça de Abreu, Canchungo, a "nossa" Guiné:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/01/guine-6374-p9310-excertos-do-diario-do.html

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/12/guine-6374-p9287excertos-do-diario-do.html

Sei que o Franciasco Gamelas quis "arrumar" este capítulo da sua vida... Decididamente "não voltará ao assunto", é um capítulo "encerrado"... Acho que fica bem encerrado, com este "outro olhar"... O teu Diário e o livrinho do Gamelas serão, por certo, citados pelos historiadores que se debruçarem sobre a guerra e o pedaço de céu e de terra que nos couberam em sorte...


Abraço para todos. Luis