terça-feira, 19 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19601: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (6): o contentor do Abubacar


Guiné-Bissau > Bissau > Março de 2019 > O Contentor do Abubacar > Fotografias do contentor e parte da tertúlia. O Abubacar está ao centro.  Eu, à sua direita, de óculos esuros, chapéu e um criança ao colo.



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Fotos (e legendas): © Luís Oliveira (2019) . Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).



Luís Oliveira, na praia da Areia Branca, Lourinhã
1. Sexta crónica do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto) e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol; lisboeta, tem fortes ligações à Lourinhã, Oeste, Estremadura...

Chegou a Bissau, a 2 de março, e aqui vai estar 3 meses como voluntário na Escola Privada Humberto Braima Sambu, no âmbito de um projeto da associação sem fins lucrativos ParaOnde, que promove o voluntariado em Portugal e no resto do Mundo. (*)






O Contentor de Abubacar


por Luís Oliveira



Conheci a loja do Abubacar através das minhas companheiras de voluntariado. Trata-se de um contentor marítimo de pequenas dimensões, talvez cinco por dois metros que, à custa de rebarbadora, ferro de soldar, alguns materiais reciclados e sobretudo muita imaginação, foi transformado num estabelecimento comercial quase em frente da escola Humberto Braima Sambu e do Estádio Bom Fim.



É um local incontornável quando me dirijo todas as manhãs para a escola e aproveito para reconfortar o estômago, meio pão tipo baguete com manteiga e leite. O Abubacar, ou o alguém que o substitui, após cortar a baguette ao meio, rapa com uma colher a manteiga com origem numa lata de cinco quilos daquele produto e parte do “mata bicho” está preparado, só faltando uma latinha de leite de duzentos ml que os holandeses vendem para a Guiné e que até sabe bem.


Para além deste serviço, a loja do Abubacar vende água de Penacova, rebuçados, óleo avulso em saquinhos de plástico, conservas e muitas mais mercadorias de natureza alimentar. Também fornece serviços tecnológicos e, quando necessito de carregar dados ou chamadas no meu cartão SIM, o

Abubacar, não sei com que artes mágicas, carrega-me o telefone do que preciso.


Mas o que mais me atrai na loja são os momentos de convívio com p Abubacar e os seus amigos que aí aparecem para disfrutar de uma boa cavaqueira que abrange desde o tema político ao desportivo, e com o Abubacar estou sempre de acordo porque é um ser humano de qualidades inquestionáveis. Tem ideias claras e críticas sobre a gestão recente da Guiné-Bissau, do estado de pobreza material e a outros níveis em que se encontram os seus irmãos guineenses. Faz propostas, discute com moderação e siso os problemas partidários e tem sempre uma mensagem ecológica para os mais novos, sempre distraídos na forma como tratam o lixo, e sobre a higiene urbana e, além disso, é do Sporting.


O Abubacar deve ter, talvez, pouco mais de vinte anos, tem o curso de professor, mas, como esta categoria profissional não recebe ordenado desde Outubro, prudentemente orientou a sua vida por outra via, e é pena porque os seus ensinamentos seriam bem úteis aos mais novos.


Hoje, sábado, não houve escola e lá fui tomar o pequeno almoço, comprar dados para o cartão SIM e conviver. Uma manhã muito agradável com vários jovens, entre eles um de Missirá, onde o seu pai foi milícia da força portuguesa, e outros que me questionam do período colonial que, segundo eles, não faz parte do curriculum de história do ensino guineense:


“Luís, como é que convivias com a população?” 
“Na tabanca não tinham medo de vocês?” 
“Para onde iam detidos os elementos do PAIGC que eram capturados?”... 

E a conversa continua com serenidade, entusiasmo e curiosidade. As lembranças de um conflito que existiu e que apenas tem registo nas nossas memórias, são um ponto de encontro e de reflexão sobre os erros cometidos, sobre as malhas que o império tece(u) e que nos torna mais próximos.



P.S. No meio da conversa desta confraria ocasional, surge uma mulher transportando uma lata de tinta, abeira-se de mim;

– A bó miste?


Nem sabia o que a senhora transportava e até pensei que queria que lhe fosse pintar a casa como as vezes faço colaborando com os meus amigos que têm menos tempo ou jeito!


Como fiz um ar surpreendido, tirou a tampa e lá dentro estava uma massa castanha de cor pouco atrativa e também não era massa consistente porque eu até não tenho jeito para a mecânica. Mancarra, insistiu ela.


Pois, era manteiga de amendoim. Não pude negar e, com a ASAE ausente e sob investigação, não iria

haver problema.

– Um quilo?


Um quilo era demais, e o aspecto e cor tão pouco atrativos que só pedi duzentos e cinquenta gramas para ver o que dava e não deixar a senhora com a lata na mão após tanta insistência.


Nesta lata não há colher e ela vai rapando com a mão e fazendo bolinhas até juntar o que lhe pareceu serem os duzentos e cinquenta gramas. O Abubacar forneceu um saquinho plástico onde ficou o produto pelo preço de duzentos e cinquenta francos CFA (cerca de quarenta cêntimos de Euro) e que não resisti a provar depois do meu almoço.


Nunca comi manteiga de amendoim tão saborosa e, se amanhã os efeitos desta iguaria não me afectarem demasiado, irei à procura da mulher e comprar um quilo. Talvez seja suficiente até partir para Lisboa.


Bissau, 16/03/2019

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Luís, o caso do professor Abubacar e tantos outros jovens da Guiné, de toda a ´África, de muita América Latina, de quase toda a Ásia...deviam ajudar-nos a pensar e a repensar o nosso modelo de vida, de desenvolvimento, de consumo, de trabalho,de comunicação. de cidadania...

O Abubacar não recebe o salário a que tem direito desde outubro de 2018...Quantos dias, quantos meses, quantos anos é que ele já esteve a trabalhar, sem receber salário ?

Abraço, Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"pabia", crioulo da Guiné-Bissau... Quer dizer: porque, pois que... LG

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/pabia

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Luís, que tenhas, mesmo à distância, um belo dia do pai... Estou encontado com a tua capacidade para identificar e valorizar as pequenas coisas do quotidiano de Bissau... Um abração do outro Luís...

Anónimo disse...

Luis Oliveira
19 mar 2019 16:52

Igualmente para ti e obrigado por lembrares. Já sou bisavô.... tenho dois netos.
Abraço

Cherno AB disse...

Caros amigos Luis Graça e Mourato Oliveira,

Só quero deixar duas notas de esclarecimento sobre o tema d'hoje, muito interessante:

- Existem várias categorias de Professores no ensino público da Guiné-Bissau: Formados e Efectivos (do quadro), Formados mas ainda não efectivos (eventuais e de novo ingresso), Contratados não formados (os precários dentro da grande precarirdade que é o funcionalismo publico). Assim, em relação a primeira e segunda categoria, não há salarios em atraso, mas em relação a ultima é possivel que tenham 1 ou 2 meses em atraso.

- Quanto a "manteiga" do Amendoim que o Luis provou, trata-se de uma pasta mole de amendoim preparado para cozinhar o famoso caldo de mancarra e não para comer tal como está, mas para quem não tenha receio da gordura/azeite e tenha tripas para aguentar, não faz mal nenhum. Nas feiras e mercados as mulheres manipulam a pasta de mancarra com as mãos pois que, de antemão sabem que se destina para a cozinha onde será preparado e fervido no fogo em altas temperaturas.