quinta-feira, 16 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19792: Os nossos seres, saberes e lazeres (325): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte VI: 25 de maio de 1980, Hangzhou, "um paraíso debaixo do céu", segundo um provérbio tradicional

Mais um excerto do "diário chinês, secreto", ainda inédito, do nosso camarada António [José] Graça de Abreu. Recorde-se que ele viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. 

Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] (*)



 Hangzhou, 25 de Maio de 1980

Estou há uma dúzia de horas em Hangzhou e já escrevo, a necessidade de fixar as primeiras sensações e incipientes entendimentos desta cidade, "um paraíso debaixo do céu", como diz o provérbio chinês.

Cheguei de comboio e depositaram-me numa fabulosa residência para quadros superiores do Partido. Viajo com o beneplácito e a protecção dos meus patrões, as Edições de Pequim ligadas ao Comité Central, e assim se explica o direito a tanta mordomia. 

Destinaram-me uma suite que é uma afronta para as centenas de milhões de gente humilde deste país que vive, famílias inteiras, em dez ou quinze metros quadrados. Só a minha cama terá aí dois por três metros, um vasto colchão de qualidade, mais um sofá, salinha, mesinha e varanda, um aposento meio espartano, mas amplo, cómodo e funcional. Na China Comunista, como em todo o mundo, a vida das pessoas não é igual.

Há dois mil e quatrocentos anos mestre Confúcio (551a.C. - 479 a.C.) terá dito mais ou menos o seguinte "Quem trabalha com a cabeça, manda, quem trabalha com as mãos obedece." Os quadros do Partido Comunista trabalham muito com a cabeça e quem obedece constrói-lhes estas magníficas residências onde tenho o privilégio de estar hoje alojado. Eu não mando nada mas, no meu trabalho nas Edições de Pequim, é verdade que o meu labor também é feito sobretudo com a cabeça. Daí, estas mãos mimosas e estas mordomias.

Vou, entretanto, comprovando que, quadros do Partido ou a gente simples do povo, todos são semelhantes no amor.

Esta noite, acabei de calcorrear uns pedaços da margem deste esplendoroso lago Xihu西湖, ou do Oeste. No céu havia uma lua meia escondida entre nuvens, aqui em frente as luzes dos poucos candeeiros reflectiam-se nas águas. Varandins, pavilhões, balaustradas pareciam dançar na penumbra da noite. O lago cintilava vestido de nobre roupagem escura. Avancei pelos caminhos em volta do cristal das águas. Duas bicicletas pousadas no chão, logo depois mais duas. Adiante, conforme ia caminhando, dezenas e dezenas de pares de bicicletas espalhadas pelos relvados, encostadas às árvores. Arbustos, vegetação por todo o lado e não se via ninguém, adivinhavam-se, no entanto, os namorados, um rapaz e uma rapariga abraçados, deitados na erva, escondidos na obscuridade, ocultos por sebes e por canteiros altos de flores. Contentamento e paz. Não têm espaço nas suas casas para se exercitarem na "arte do quarto de dormir", como lhe chamam os chineses, e procuram por isso estes jardins em volta do lago, uma espécie de imensa mansão natural que os acolhe para o carinho da noite.

Sei como é dura a vida deste povo. Percorre-me uma alegria branda quando vejo estes jovens vivendo todo o amor que têm para dar, as horas da dupla ternura quando os sonhos ainda não pararam de rodopiar nas cabeças imaturas, puras e os corpos se acariciam na exaltação dos prazeres concedidos pelos deuses.

Um dia poderá haver alguma baixeza e vilania, e do amor de agora restarão apenas destroços e um rio enlameado. Mas não para todos. Pode acabar o "mimoso riso" e "os fogosos beijos na floresta" (ai, Camões!), mas continuará a confiança mútua, a força-crença que unirá estes jovens até onde for possível, por entre as borrascas da vida.

Senti vontade de estar também ali, enlaçando a minha chinesinha, que nunca conheci, ou simplesmente a mulher capaz de me amar, mulher que não tenho, sei que existe e eu merecia.

António Graça de Abreu (**)

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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 10 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19770: Os nossos seres, saberes e lazeres (323): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte V: Ppequim, 1 de setembro de 1980: visita de uma delegação militar portuguesa


(**) Último poste da série > 11 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19773: Os nossos seres, saberes e lazeres (324): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (4) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Não consigo perceber se na fotografia aqui apresentada, o Graça Abreu era obrigado ou por sua opção andar assim maosemamente vestido.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em Roma, sê romano... Na China, sê chinês... No "chão" fula, sê fula...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Qunado estudei antropologia, no ãmbito do meu curso de sociologia, havia um termo que se usava muito, e que eu não gosto pela sua conotação "racista":... cafrealização. LG

PS - Vd. dicionário

cafrealização | s. f.
derivação fem. sing. de cafrealizar

ca·fre·a·li·za·ção
(cafrealizar + -ção)
substantivo feminino
1. Acto ou efeito de cafrealizar ou de se cafrealizar.

2. [Depreciativo] Adoção por parte dos europeus de comportamentos associados aos indígenas africanos.


"cafrealização", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/cafrealiza%C3%A7%C3%A3o [consultado em 16-05-2019].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, tens outro exemplo recente, e bem triste, deste fenómeno de mimetismo: os dos europeus (incluindo portugueses) que aderiram ao DAESH, ao Estado Islâmico... LG

Valdemar Silva disse...

Agora já percebi, por lá toda a gente andava vestida de igual.
Interessante, por aquele tempo lembro-me de ouvir 'toda a gente andava vestida de igual' mas era noutras paragens.

Valdemar Queiroz

antonio graça de abreu disse...

Vestia assim, às vezes, por opção.
Não era obrigado a coisa nenhuma.
A partir de 1980 estas roupinhas começaram a desaparecer, a monotonia azul e cinzenta entre os chineses desapareceu. Ainda tenho hoje esse casaquinho aqzul, mas já não me serve. Tenho um mais largo, cinzento, levarei para um próximo almoço da tabanca da Linha. O Manuel Resende tira o retrato.
Abraço,

António Graça de Abreu