terça-feira, 16 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): Como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

Brasão da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67)


José Henriques Mateus (Lourinhã, Areia Branca, 1944 - Guiné, Rio Tompar, região de Tombali, 1966)


I. A notícia do desaparecimento do soldado n.º 711/65 José Henriques Mateus, sold at cav, CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido no rio Tompar, em 10/9/1966(*)



por Jaime Silva [, foto à esquerda, 2014]


1.O DEPÓSITO GERAL DE ADIDOS CENTRALIZAVA A INFORMAÇÃO (**)


Os Serviços da República Portuguesa, através das Forças Armadas, tinham um Serviço especializado para este efeito. A primeira comunicação da morte ou acidente de um militar ocorrida durante a sua Comissão no Ultramar era da responsabilidade do Comandante da Unidade a que pertencia o Militar em questão. 

Este, via rádio, comunicava as circunstâncias da ocorrência ao superior hierárquico que, por sua vez, encaminhava o "assunto" para o departamento responsável, o Depósito Geral de Adidos.

A partir desse momento todas as formalidades eram da sua competência:

i) informar todos os departamentos governamentais e das Forças Armadas com responsabilidades na condução da Guerra;

ii) enviar um "telegrama à família", via CTT, a dar a notícia (nunca as Forças Armadas de Portugal enfrentaram diretamente as famílias para lhes darem essa notícia, escudaram-se nos carteiros, mas isso é outra história!);

iii) realizar o funeral na respetiva Província onde ocorreu o acidente (por vezes, sobretudo no início da Guerra, os miliares eram sepultados nos cemitérios locais);

iii) trasladar o caixão chumbado com o corpo do militar para Portugal e realizar o funeral no cemitério da sua freguesia (até 1968 as famílias dos militares tinham que pagar ao Estado as despesas com o transporte do caixão);

iv) tratar de enviar à família a mala com o seu espólio (quase sempre, era o melhor amigo que realizava esta "operação");

e, v) tratar da documentação a enviar à família para que esta pudesse receber a "pensão de sangue", quando tinha direito (nem todas as famílias, apesar da morte dos filhos no Ultramar, tiveram direito a essa "pensão").

2. O CASO CONCRETO DO SOLDADO N.º 711/65, MATEUS - S.P.M. 3008:

Oficialmente a notícia do desaparecimento do soldado José Henriques Mateus seguiu a rotina habitual:

(i) O Comandante da Companhia enviou para o Comandante de Batalhão a notícia do desaparecimento do Mateus e este fez seguir a informação para o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) que se limitou a enviar, via rádio, a informação para o Depósito Gerald e Adidos, sediado em Lisboa.

A partir daqui os militares da Secretaria adstrita ao Comando do Depósito Gerald e Adidos, na altura chefiada pelo Coronel de Infantaria Amândio Ferreira, põe em marcha um conjunto de procedimentos de rotina:

1.º Através do Ofício N.º 1893/B - P.º 183 e datado de Lisboa, 14 de setembro de 1966, informa:

a) Chefe da 1.ª Seção da Rep. do Gabinete do Ministro do Exército;

b) Chefe da Rep Geral DSP/ME;

c) Chefe do Serv. Inf. Pública das Forças Armadas do Dep. da Defesa Nacional;

d) Chefe do Estado Maior do QG/GML;

e) Chefe da Repartição de Sargentos e Praças DSP/ME;

f) Chefe da Agência Militar;

g) Comandante do R.C.7 (Leiria).


2.º Depois, dá conhecimento, a partir de Lisboa, ao Chefe de Estado Maior do Quartel General do CTI da Guiné que informou aquelas entidades oficiais do teor do seguinte rádio:


"ASSUNTO: DESAPARECIMENTO DE PRAÇA NO ULTRAMAR

“Para os devidos efeitos, transcrevo a V. Exa. o rádio N.º 1859/A de 12.9.66 do CTI da Guiné, que é do teor seguinte:


“DESAPARECIDO OPERAÇÕES 10.19.00SET66 JOSÉ HENRIQUES MATEUS SOLDADO 6951665 CCAV 1484/RC 7 NATURAL FREGUESIA CONCELHO LOURINHà FILHO JOAQUIM MATEUS JÚNIOR E ROSA MARIA RESIDENTE LUGAR DA AREIA BRANCA CONCELHO LOURINHÔ.

Informo V.Exa. que foi enviado telegrama à família do desaparecido comunicando a ocorrência”.

"O comandante
Amândio Ferreira
Coronel de Infantaria".


Exemplo de um telegrama  enviado à família de um outro militar, o fur mil João Carlos Oliveira Martinho, neste caso com data de 26 de maio de 1973, às 12h32, assinado pelo Comandante do Depósito Geral de Adidos, Ajuda Lisboa. (A família do Mateus deve recebido um, de teor similar,  7 anos antes.)

"Nº 602787. Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano João Carlos Oliveira Martinho ocorrido dia 25 corrente Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências

"Comandante Depósito Geral de Adidos
Lisboa".


O fur mil cav Martinho pertencia ao EREC 8740/73, sediado em Bula, e morreu em combate em 25 de maio de 1973.




II. Depoimento de José Francisco Couto [, ex-sold at cav, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67, natural do Bombarral, vive há muito no Canadá] (***):

O soldado n.º 699/65 – S.P.M. 3008, José Francisco Couto, natural de Baracais, freguesia da Roliça, concelho do Bombarral, foi camarada de pelotão do Mateus e seu amigo. Participou na “Operação Pirilampo”, assistindo ao desaparecimento do Mateus quando ambos atravessavam o Rio Tompar. Escreveu dois Aerogramas à mãe do Mateus. 

Durante a consulta do espólio do Mateus,  encontrei entre a sua correspondência dois aerogramas enviados à mãe do Mateus pelo José Francisco Couto. Neles, lamentava as circunstâncias da morte do filho e afirmava que a iria visitar logo que regressasse da Guiné, uma vez que eram naturais de concelhos vizinhos.

Transcrevo o segundo aerograma que enviou à mãe do Mateus em 8 de novembro de 1966:


Catió,  8 Nov966

Prezada Senhora:

É com os olhos rasos de lágrimas que novamente me encontro a escrever-lhe, sendo ao mesmo tempo a desejar-lhe uma feliz saúde, a si e aos seus filhos, que eu cá vou indo na graça de Deus.

Sei, senhora Rosa, que ao receber esta minhas notícias mais se recorda da tragédia que lhe roubou o seu querido filho, pois é com mágoas no coração que lhe respondo a tudo quanto me pergunta e peço a Deus que não a vá magoar mais com tudo o que lhe possa dizer. Pois compreendo que, além da minha dor ser enorme, a sua não tem palavras, pois o destino foi traiçoeiro. Sim, a Senhora pede-me que lhe explique como tudo se passou. Pois sou a dizer-lhe tudo o que sei.

Foi uma das saídas que nós tivemos, durante o dia tudo se passou da melhor maneira na graça de Deus e nós nos sentíamos satisfeitos, mas no regresso tivemos que atravessar um rio e a corrente era enorme, como enorme era o peso que trazíamos.  [E foi aí] que ele [, o seu filho,]  ao passar, a corda se partiu e foi quando ele foi parar ao fundo sem mais ninguém o ver. 

[Logo] quatro camaradas nossos, mal pressentiram o que se estava a passar, atira[ra]m-se à água e mergulharam ao fundo para ver se o encontravam,  correndo o rio de cima para baixo e vice versa mas o resultado foi o que Senhora já sabe. Não o conseguiram encontrar pois a corrente o arrastaria logo, foi como um balde de água fria que caiu sobre nós e todos os esforços que juntos fizemos foram negativos. 

Esta é apenas a verdade que podem contar à Senhora [e] aos seus filhos. Sim, também me diz que apareceu alguma coisa dele, e é certo, mas não o que a Senhora me diz. Apareceu, sim, o que lhe vou contar.

Passados alguns dias nós voltámos a passar por lá, e foi nessa altura [que] um dos alferes encontrou uma parte da camisa e a carteira no bolso, pois a parte da camisa era só [a] da frente e tinha o bolso onde estava a carteira, que o alferes tem para lhe enviar tudo junto, [o] que resta do seu querido filho. 

E a Senhora não precisa de tratar nada, pois a companhia já tratou de tudo, também tratou dos papéis para a Senhora ficar a receber algum dinheiro que bastante falta lhe fará. 

E, assim, minha Senhora, não quero alongar mais as minhas notícias pois elas só lhe levam mágoas. No entanto, mais uma vez lhe digo, a companhia está a tratar de todos os assuntos e lhe enviará todas as suas coisas. 

Sem mais me despeço, com muitas saudades para os seus filhos, um aperto de mão para todos, para a Senhora também deste que chora também a sua dor.

José Couto 


[Revisão / fixação de texto: JS/LG]


3. Nota adicional de JS:

O Mateus nasceu, na Areia Branca, Lourinhã, a 17.10.1944, e foi meu colega da escola primária, no Seixal, Lourinhã. Assentou praça no RI 7 em Leiria no dia 4 de maio de 1965 com a idade de 21 anos e, numa altura em que, como me disse o seu irmão Abel, era o “homem da casa” e o “braço direito da mãe”, uma vez que o pai já tinha falecido e tinha, ainda, mais duas irmãs e um irmão para ajudar a criar. 

Sobre as dificuldades das famílias em criar os seus filhos naquela época em que os trabalhadores do campo labutavam de “sol a sol” para ganharem uma “côdea”, são contas de outros rosário. A mãe do Mateus não escapava a estas dificuldades. Nem nestas circunstâncias o Governo de Portugal tinha alguma consideração: Ala para a guerra. Quem fica, que se amanhe! (****)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado

Comentário de LG:

Jorge: Para já, o meu/nosso muito obrigado por este inventário, doloroso mas precioso, tratando-se de camaradas mortos, por afogamento, no CTIG... Mas, se eu bem li os teus postes [...], há mais um caso omisso: o sold at cav, José Henriques Mateus (1944-1966), que pertenceu à CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), e que desapareceu em combate em 10/9/1966, no rio Tompar, afluente do rio Cumbijã, no decurso da Op Pirilamp, no setor de Catió, região de Tombali... Estive há tempos, na sua terra, Areia Branca, Lourinhã, justamente a participar numa homenagem póstuma à sua memória... Houve camaradas da sua companhia que chegaram a ponderar a hipótese de ele não ter morrido, mas antes ter sido feito prisioneiro pelo PAIGC... A verdade é que o corpo nunca foi encontrado. 
(...)

(**) Vd. poste de 11 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13127: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VIII: Como é que a funesta notícia chegou à família ?... Através do carteiro... (Jaime Bonifácio Marques ds Silva)

(***) 10 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13123: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VII: Dois importantes depoimentos de camaradas e amigos do Mateus, o sold at cav, José Francisco Couto (Bombarral e Canadá e o ex-fur mil radiomontador Estêvão Alexandre Henriques (Lourinhã) (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

(****) Último poste da série > 3  de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

1 comentário:

Anónimo disse...

Camaradas,

Em função dos testemunhos acima, produzidos por aqueles que observaram o desenrolar desta triste ocorrência, de que resultou a morte do camarada José Henriques Mateus, sou de parecer que as deveremos validar, como únicas, considerando a "morte por afogamento, sem recuperação do corpo".

Caso ninguém se manifeste contra, procederei à actualização do meu "ensaio" sobre as mortes por afogamento no CTIG (1963-1974).

Um forte abraço para o colectivo da Tabanca.

Jorge Araújo.