sexta-feira, 27 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Com o fado do regresso, o bardo e este seu companheiro despedem-se desta estranhíssima lide, que vale a pena recordar como tudo começou.
Um dia, num alfarrabista, encontrei esta "Missão Cumprida", irresistível não a ler num serão, e pronto começou a germinar a ideia de republicar a obra, peça a peça, gerando formas de diálogo, associações imaginárias, tudo a propósito da ida à tropa, a recruta, a especialidade, a formação do batalhão, todo o corolário do período operacional.
Há bastantes anos que me acicatava a curiosidade de descer ao fundo deste poço do início da guerra, tão escarnecido ou detratado enquanto crescia a mitologia spinolista, aquilo é que era fazer a guerra, conversando com o povo, tornando a guerra avassaladora, e o muito mais que todos sabemos, tudo apresentado como soluções que rasuravam um passado de insucessos, os generais que tinham antecedido aquele guerreiro de monóculo não tinham sido mais que dois mal enjeitados. Ora nada foi assim, embora os mitos continuem a pairar na atmosfera, a despeito da documentação publicada que revelam, por A mais B, que era uma evolução imparável que se prendia com uma vontade humana irrefragável de ficar independente, como veio a acontecer, deixando, felizmente, os dois povos em relação fraterna, e espera-se que para todo o sempre.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (51)

Beja Santos

“Depois de penar na guerra
eu voltei à minha terra
para meus pais abraçar.
Ao ver-me, a minha mãezinha,
com alegria, coitadinha,
abraçou-se-me a chorar.

Muita lágrima deitou
o tempo que demorou
seu filho no Ultramar.
Passando muita agonia,
ela, coitada, pedia
a Deus para me salvar.

Tive então essa sorte
e Deus me livrou da morte
e à nova vida voltei.
Ficou-me de recordação
a grande satisfação
quando meus pais abracei.

Lutando com os africanos
passei então os dois anos,
hoje estou já descansado.
Já me vejo ao pé dos meus
posso dar graças a Deus
de tudo me ter livrado”.

********************

Assim culmina, com este fado do regresso, a grande ode que o bardo dedicou às gentes do seu Batalhão. Compôs e recompôs, seguramente que pediu escrutínio a algum censor, seguramente de juízo benevolente, não se podia imprimir em letra de forma, ainda por cima para o grande público, algo que pudesse revelar os itinerários daquela guerra a que o Estado Novo tratava com discrição, chamando-lhe ações de policiamento, ora toma. No cômputo da literatura da guerra há finais lancinantes, avultam lágrimas, são regressos em que o lugar muitas vezes não mudou mas quem chegou sabe de antemão que vem mudado.

Aqui quero ombrear com o bardo, e a todos dar conta do meu dia de chegada, naquele agosto de 1970, o navio Carvalho Araújo meteu-se pelo Canal do Geba e foi direito ao oceano, houve uma primeira paragem na Ilha do Sal, para largar cabo-verdianos sorridentes que nem olharam para trás, tinham a terra à vista, bem como as famílias em plena agitação, à sua espera. Dali se seguiu para Mindelo, o viandante guarda bilhete-postal que enviou à mãe, dizendo-lhe que não havia diferença entre o que estava a ver ali e talvez o centro de Mortágua ou Oliveira do Hospital, o casario tinha afinidades inequívocas, com coreto e jardins, e bem impressionante era avistar, a curta distância, Santo Antão, negro e escalvado. E continuou a viagem até Ponta Delgada, a receção mais comovente nunca assisti, estou no convés e o navio aproxima-se do porto, o silêncio é sepulcral entre a multidão que espera e a mole humana dependurada pelos varandins. Súbito, ouve-se um grito, como se um ser humano estivesse a ser retalhado, nada disso, foi mãe que avistou filho, irrompeu uma gritaria medonha, aquela mole humana vestida de preto estava a deitar fora o luto, era a plena alegria da chegada.

Também fui bafejado pelos amigos que me esperavam e que me obsequiaram com um belo jantar, acontecimento inesquecível, guardo-o com esta memória fotográfica com que Deus me privilegiou. E rumámos até Lisboa, chegámos pela noitinha, foi uma vigília com gritos estrídulos, gente desorientada, gente bem bebida, era Lisboa iluminada à vista, com a mesma Ponte Salazar antes do cais da chegada.

Muitos anos depois, quando decidi pôr tudo em letra de forma sobre a minha vida na Guiné, finalizei a obra com o texto que se segue, e que consta do livro “O Tigre Vadio”, 2008:
“Comemos o pequeno-almoço à pressa, há quem esteja à mesa com os seus pertences à volta, não vá chegar aí uma ordem para regressar à Guiné. Saímos de roldão, quem vem em unidade militar tem de controlar as emoções, a gente da rendição individual foge para as saídas, indiferente à gritaria dos diferentes administrativos a quem compete indicar aonde nos devemos apresentar. Fico a saber que as minhas caixas seguem para um quartel na Calçada da Ajuda, informam-me que tenho uma entrevista com um major da unidade na manhã seguinte, o Exército pretende fazer um contrato comigo. Saio desabrido por aquele Cais da Rocha do Conde de Óbidos onde embarquei na manhã de 24 de Julho de 1968. Visto a farda n.º 2, com a calça comprida, não tive dificuldade em conseguir um táxi, quando me instalo, com a mala bem pesada e a arte guineense atada por cordas, posta nos meus costados, parece que estou a dar ordens para partirmos para o Xime ou o Xitole. Faço perguntas, oiço comentários, identifico sítios, assombro-me com algum edifício desconhecido.

O táxi passa pelo Cais das Colunas, esta é a minha Lisboa, pareço um gaiato a apontar para o Castelo de São Jorge, banzado com os cacilheiros, o trânsito da Baixa, a imponência quieta da Avenida da Liberdade. Passamos pelo Saldanha, só faltou acenar ao Monumental, onde fui tantas vezes ao cinema e teatro. É uma manhã de Agosto quente, mas não sinto a humidade da Guiné, incendeia-me o entusiasmo de querer avisar meio mundo que cheguei a Lisboa e que tenho planos para recomeçar a minha vida. O táxi parece voar, é a vez de o chofer fazer perguntas, tem um filho a fazer recruta, quer saber se a guerra da Guiné é tão dura quanto por aí dizem à boca calada. Dou respostas assépticas, hoje não quero que o senhor chofer tenha maus sonhos. Passamos pelo Campo Grande que conheço a palmo, o jardim está a definhar, talvez seja do calor do Verão, tem pouco a ver com o verde viçoso e os lindos canteiros de flores que sempre conheci em miúdo. De repente, lembrei-me da felicidade que senti, tinha eu 11 anos, quando achei uma nota de 20 escudos dentro do jardim e ofereci à minha mãe. O táxi vira à direita e entra na Avenida do Brasil, pára ao lado da Garagem Dragão, tinha sido esta a referência que a Cristina me dera ao telefone, estava eu em Ponta Delgada.

Tiro a custo o malão pesado, a arte guineense chocalha com tanto movimento, os mirones param na rua com este quadro insólito. Toco à campainha, oiço a declaração de alegria da Cristina. À porta de um sexto andar gritamos e beijamo-nos. Arrasto o malão para a entrada, a Cristina freme de entusiasmo, quer mostrar o espaço organizado: a salinha com alcatifa em tom azul-marinho, depois um quarto ainda vazio, a cozinha com a mesa já posta para o almoço, é daqui que avisto uma Lisboa com arranha-céus até ao Sheraton, vou fazendo perguntas, a Cristina procura responder. Depois o corredor faz um cotovelo, há uma casa de banho e ao fundo o nosso quarto com janela tendo o Júlio de Matos como fundo. É um ambiente cheio de ternura, a Cristina foi uma grande artífice com os poucos tostões disponíveis.

É no momento em que lhe estou a pegar nas mãos e lhe procuro agradecer tudo quanto tem feito por mim que sinto um rugido medonho, as paredes estremecem, sinto um pânico, estendo os braços com as mãos viradas para a frente, sinto-me em Missirá, procuro um morteiro 81 cercado por bidões cheios de terra e cimentados, preparo-me para gritar, quero todos a postos para reagir contra as gentes de Madina. São segundos de total desencontro, os olhos procuram orientar a melhor resposta para aquele ataque ao fim da manhã. A Cristina apercebe-se de que estou a viver aquilo que ela já lera em relatos sobre quem chega da guerra: um simples estampido de um carro põe um ex-combatente à procura do inimigo, deitado no chão ou lançando-se sobre as pessoas. A Cristina serena-me: “Estamos na linha do aeroporto, dentro de dias estás completamente habituado a este barulho. Acalma-te, Mário, a guerra acabou. Olha, tens ali uma carta do Ruy Cinatti. Vou acabar o almoço, tenho sardinhas no forno, como tu pediste.”

Lago do Campo Grande

Cineteatro Monumental, na Praça do Saldanha

Finais destas histórias são infinitos, na impossibilidade de dar voz a tanta eloquência e emoção das chegadas, finda a guerra, festeja-se este mano-a-mano com que convivi com o bardo com uma bela página de “sairòmeM, Guerra Colonial”, de Gustavo Pimenta, com data de 2000, é um encontro universal que não pode deixar indiferente qualquer velho combatente que passou pela experiência:
“A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio. As mesmas cores esmaecidas, em particular o amarelo das portas e janelas, o mesmo soalho corrido com tábuas carcomidas entremeadas, aqui e ali, por novas impecavelmente aplicadas, a motorizada logo à entrada do corredor e, ainda, a mesma cortina encobrindo o cubículo das garrafas de gás.
Meu pai acabava de me abrir a porta num abraço raramente acontecido: que me lembrasse, em adulto, era a segunda vez que estreitávamos os ossos. Com ele, diluíram-se num ápice os mais recentes dois anos da minha vida. A guerra parecia não ter acontecido: eis-me, de novo, naquele ambiente seguro e certo, inamovível, que sempre me foi a casa de meus pais”.

É com pesar que me despeço, gostei imenso de me ter atravessado na vida de um poeta popular que contou a sua vida no início de uma guerra que continua por ser escrita em linhas mais direitas, esclarecedoras. Cheguei à Guiné nos finais de julho de 1968, o Brigadeiro Spínola subia os degraus do pódio da mitologia e do estrelato, pelo tempo que se seguiu sucediam-se os rumores que ele estava a pôr a casa no sítio, os generais que o precederam tinham andado às aranhas, num perfeito descaminho, implantando destacamentos ao acaso, vendo a guerra agravar-se de ano para ano. Era assim, com comentários mordentes, que estes oficiais eram postos num banco dos réus, como que incriminados pelo crescimento da guerra. E como aqui se procurou desvelar, não foi nada assim, felizmente que documentos neutrais como a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, nos volumes dedicados à Guiné, mostram à saciedade que se procurou agir e travar a guerrilha. Só que esta se revelou imparável, por diferentes fatores que não se prendiam diretamente com a liderança ou mesmo a bravura do soldado português. Quem se sublevara era portador de ideologia, havia um histórico de insubmissão, um pouco por toda a colónia da Guiné, o líder da guerrilha prepara com conta, peso e medida a insurreição, tinha jovens quadros, com os anos o armamento tornou-se muito mais sofisticado e um dia os oficiais portugueses aperceberam-se que não havia solução militar e que se avizinhava uma tremenda humilhação, mais um desvario a averbar ao delírio de querer perpetuar um império colonial. Não foi por acaso que esta Guiné onde o bardo e este outro autor passaram a mocidade se tornou a chave, e até a fechadura, que levou ao fim do império.
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Notas do editor

Poste anterior de 20 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20752: Notas de leitura (1274): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (50) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20763: Notas de leitura (1275): "O Adeus ao Império", organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira; Nova Vega, 2015 - Das guerras em África à descolonização, diferentes olhares, quarenta anos depois (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graca de abreu disse...

Acabado de chegar da Guine o Mario Beja Santos informa que "Exército pretende fazer um contrato comigo, tenho uma entrevista com um major da unidade na manhã seguinte"
Espantoso, nao foi o MBS que meteu o "chico", foi o exercito portugues que procurou tao inclito, valoroso e imprecindivel combatente para o contratar. Espantosa a vaidade do MBS. As coisas que continuo a aprender com o MBS! Ate aqui, encalhado em Perth. oeste da Australia, a espera de melhores dias para regressar, de navio. Serao, se o coronavirus nao der cabo de nos, quatro semanas de viagem, ate Portugal.
Abraco,

Antonio Graca de Abreu

Valdemar Silva disse...

A fotografia do Cine-Teatro Monumental é do início dos anos 80, talvez 1983 e existem outras fotografias, do mesmo autor que não sei o nome, tiradas no mesmo dia mas em ângulos diferentes desta.
O mais interessante, aparecem num blog sobre Lisboa as mesmas fotografias mas censuradas. O tema do blog é sobre o Monumental e o seu autor, como de um 'lápis azul' se tratasse, resolveu 'limpar' AD=FOME, e aparece a parede limpinha.
Não sei se o autor das fotografias apresentou alguma queixa-crime pelo abuso dos direitos de autor, mas sei que o meu comentário nesse blog sobre o assunto não foi publicado.

Cuidado com o cornodovirus
Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Gostei muito (mesmo MUITO) deste "Missão Cumprida", de Santos Andrade. Ainda quando foi politicamente incorrecto, este poeta popular disse infinitamente mais do que muitos "doutores" em pilhas de assépticos livros cheios de erudição. Bem haja o Mário Beja Santos por no-lo ter revelado.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880, Angola-1972-74


P.S. - Cheguei de Angola no fim da comissão com a minha companhia, em 28 de agosto de 1974. Viemos de avião e desembarcamos no Aeroporto de Figo Maduro. Como eu não tinha ninguém a receber-me à chegada, ajudei, no que pude, os meus camaradas a fazer o espólio, que decorreu no RAL 1, ali mesmo ao pé. No fim, fiquei sozinho com o meu camarada Arrifana, à porta do quartel. «E agora, o que é que fazemos?», perguntei-lhe. «Agora? Agora apanhamos um táxi e vamos para casa», respondeu-me ele. Viemos de táxi até ao Porto e durante a viagem ao longo da Estrada Nacional N.º 1 eu olhava emocionado e maravilhado a paisagem que nos envolvia. «Tão lindo! Portugal é tão lindo! Já passei por esta estrada não sei quantas vezes e nunca me dei conta de como o meu país é tão bonito! Só agora, depois de uma longa ausência, é que eu vejo o que antes não vi».