terça-feira, 24 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21576: O cruzeiro das nossas vidas (28): A Síndrome dos Embarques (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > "Homenagem da Zambuejira e Serra do Calvo aos seus combantentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013. Foi uma patriótica iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira de Serra Local.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem de 22 de Novembro de 2020, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) traz-nos uma reflecção sobre a síndrome dos nossos embarques a caminho do desconhecido.


A Síndrome dos Embarques

Abel Santos

A curiosidade deixa o pessoal preso à amurada e as madrinhas ficam chorosas e até as pedras dos cais choram baixinho enquanto os familiares dos embarcados se acotovelam na esperança de assinalar o último e doloroso adeus.

O destino é assim mesmo, incerto, melhor do que a provação do adeus será ingrata sorte dos que embarcaram sem saberem para o que vão. Mas nem tudo é tão mau, embora a guerra seja um quadro pintado pela desgraça dos que morrem sem gentilezas da mata que os rodeia.

Muitos amores ficam assim abandonados no cais de embarque, mas serão avivados pelas cartas dos aerogramas, salvo se a fatalidade se intrometer pelo meio. Há que ter esperança, afugentando os sobressaltos dos dias mais custosos. As contingências das missões podem safar os embarcados onde tudo é possível.

A contar com o regresso, muitos destes soldados acreditam no amor que perdurará até ao encontro da moça dos seus encantos. Só por ironia do destino o seu fado será atraiçoado. As despedidas são sempre dolorosas, mas os que partem para a guerra, ainda no tombadilho e encostados na amurada, não pensam nos imprevistos.

Não temos lágrimas sublimes, mas alguns abraços e beijos sem excentricidade e com algum erotismo. De resto, muito daquela gente amontoada no cais vive entronizada nas aldeias, coberta por um manto de virtude e vergada ao trabalho honesto.

Os primeiros arrepios com o embate nas ondas alterosas aparecem à passagem ao largo da Madeira. O convés fica cheio de escumalha viscosa, por causa dos mais indispostos vomitarem. Para muitos, a comida começa a ser um problema, porque quanto mais comem mais vomitam e o navio começa a ficar mal cheiroso, um purgatório para alguns e um inferno para outros. Mas o navio lá ia sulcando as águas do oceano indiferente à má indisposição dos passageiros, agora com águas mais calmas para alívio dos soldados, rumando ao encontro de outro cais, onde iria deixar a sua preciosa carga. Em poucas semanas, os amores do cais de embarque começam a ficar esquecidos, tal é a tormenta das mudanças e o deslumbramento das confusões.

Instalados em diversos aquartelamentos espalhados nos vários TO, há soldados com diversos níveis de formação e padrões de educação, onde a convicção é coisa rara e o idealismo uma abstração. O mundo dos sonhadores começa a desmoronar-se ao som do rebentamento das primeiras morteiradas. Muitos sonhos começam a ficar sem sentido, perante a dureza das caminhadas, o calor e a secura com que o pessoal vai enfrentando. A realidade começa a desgastar as energias próprias da idade, as emoções vão esmorecendo e a rigidez da disciplina e da ordem vão diluindo a educação genética dos ancestrais. As angústias e o medo acabam por sufocar a última esperança de resistir ao amotinar dos desejos e a vontade fica amorfa. A rigidez das regras de conduta em zona de perigo vão-se desvanecendo, e a exposição ao fogo inimigo deixa a morte descansada. Na guerra não há génios, mas pode haver sorte como também há imprevidentes ou incautos. Acontece que os mortos nem sempre são os menos cuidadosos, porque o azar bate à porta de qualquer um, quando as balas são invisíveis e fatais.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18515: O cruzeiro das nossas vidas (27): O meu regresso no N/M Uíge, em 5 de agosto de 1969, com o cap mil médico Carlos Parreira Pinto Cortez, esposa e outros (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Caro camarada Abel Santos.
Excelente texto.
Quase todos nós nunca tínhamos feito grandes viagens de navio, Lisboa-Barreiro ou Cacilhas e pouco mais. Por isso, estranhamos muito a viagem com ondulação em mar alto.
Os navios transformados para transporte da tropa, não tinham condições para tanto tempo de viagem e o transtorno devido a enjoos e constantes vomitar das refeições era um problema sentido principalmente pelos soldados alojados no porão.
Este tema das viagens nunca foi abordado aqui no blogue, e provavelmente muitos de nós estávamos desejosos de chegar ao destino indesejado, para acabar aquele martírio.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Carlos Vinhal disse...

Caro amigo Valdemar Queiroz, dizes: "Quase todos nós nunca tínhamos feito grandes viagens de navio, Lisboa-Barreiro ou Cacilhas e pouco mais".
Reduziste assim Portugal e os portugueses àqueles que normalmente faziam a travessia do Tejo. Acho que posso dizer que pelos menos nos anos 60, muitos militares do interior nunca tinham visto o mar, quanto mais um navio, ou ter feito a travessia do Tejo. E mesmo os de Lisboa, já que o resto é paisagem, só uma minoria muito burguesa terá feito alguma viagem de lazer em navio, normalmente as que se faziam então, eram para emigarar para as "Áfricas" ou Brasil.
Dizes por fim que: "Este tema das viagens nunca foi abordado aqui no blogue...". Estás mesmo enganado porque se fores ao marcador "O cruzeiro das nossas vidas", vais encontrar 51 postes a falar do assunto.

Aquele abraço.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira City

Valdemar Silva disse...

Ó meu caro amigo Carlos Vinhal, 'grande poça' como diria um soldado recruta que conheci em Aveiro, quando viu o mar pela primeira vez.
Realmente, há muita tinta, agora é mais digits, a falar das viagens de "cruzeiro das nossas vidas" que grande parte dos jovens do nosso tempo fazia por terras de África, Ásia e Oceânia. Manias de gente rica, coitados de nós.
Bem nos podem tratar por gente de marinheiros, mas o que não faltava era rapaziada que nunca tinha visto o mar, enjoava a andar de barco e muitos nem nadar sabia. Agora mais afastados, vá que do mar sempre conhecemos, e bem, as sardinhas e o fiel amigo bacalhau.

Abraço e cuidado com o bicho
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Abel, que rica prendinha nos dá tu, a nós, teus amigos e camaradas da Guiné, e logo no teu dia de anos em que é pressuposto seres tu a receber prendas...Mas o nosso blogue é isso, a camaradagem e a amizade significam isso mesmo, a arte do dom, a arte de dar e receber!...

É um belíssimo texto que merece, um dia, figurar numa antologia com os melhores textos da nossa série "O cruzeiro das nossas vidas"...

E o Carlos Vinhal, que já é catedrático nestas coisas do blogue e tem uma memória de elefante, só podia "postar" o teu texto na nossa série "O cruzeiro das nossas vidas"...

Na realidade há mais referências (mais de meia centena) a essa viagem de ida para o Ultramar (e que para alguns milhares de camaradas nossos) só foi mesmo de ida, sem regresso...

Boa continuação das tuas festividades natalícias... Bebo ùm copo à tua saúde!... Luís

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/O%20cruzeiro%20das%20nossas%20vidas

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Carlos e Valdemar:

Confesso que eu, que nasci à beira-mar, também só tinha feito as viagens de cacilheiro, na adolescência... Para além das viagens Lisboa-Cacilhas-Lisboa, só devo ter andado de "barquito" a remos na foz do Rio Grande da Minha Infância...

Bolas, nem sequer tinha ido às Berlengas!...Com as ilhas aqui mesmo à minha frente!...

E ainda dizem que somos um país de marinheiros!

Carlos Vinhal disse...

Luís, e eu que trabalhava numa Administração Portuária não tenho a certeza de entrado em algunas das nossas (da APDL) embarcações. Andei uma vez de lancha e outra de rebocador, mas julgo ter sido depois da tropa. Mesmo por terra só tinha ido a Fátima aos 10 anos, levado pelos meus pais. Lisboa, conhecia só em postais ilustrados. Quando saí das Caldas com destino a Vendas Novas, desembarquei (desembarcámos) do comboio no Rossio de onde fomos ao Cais (?) apanhar o barco para o Barreiro. Vê tu o que fiquei a conhecer da capital do império.
Era assim o Portugal do nosso tempo.
Abraço
Carlos Vinhal