quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Não conhecia nada de semelhante, um garboso francês que garantia a um rei tiranete, na maior ilha dos Bijagós, que um francês nunca mentia, e tudo vai terminar com um golpe de astúcia, recuperam-se as mercadorias roubadas que retornam a Bolama com alguns presentes de déspota que quer modernas armas de fogo para entrar em guerra com o rei de Uno. 

Não vale a pena insistir que a França tudo fazia para espartilhar o território onde havia presença portuguesa, na altura circunscrita a Bolama. E há os belíssimos pormenores que ele nos dá sobre o animismo e a justiça bijagó, a descrição que faz da floresta de Orango é de alguém que se rende completamente aos encantos de uma natureza incomparável. Questiono como é que é possível este texto tão belo não aparecer referenciado na literatura luso-guineense.

Mistérios!

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (3)

Beja Santos

Vista geral da Ilha de Orango

Aqui se conclui o acervo de peripécias vividas pelo vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau, na ilha de Orango, em 1879, e dado à estampa no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1886. 

Max Astrié foi detido, o tirano da ilha, o rei Oumpâné Caetano, “nacionalizou” os seus bens, mas ao mesmo tempo deixa-o passear, até se matou um touro em sua honra e houve festejos públicos. O francês e a tripulação do barco passeiam-se pela floresta, o “turista à força” confessa o assombro que lhe provoca aquela portentosa catedral verde. 

Estava nesta contemplação quando deu por uma imensa gritaria, eram cinquenta negros agrupados à volta de um imenso tronco abatido, procuravam fazer uma piroga destinada ao rei, o único habitante da ilha que podia dar-se ao luxo de possuir tal embarcação. E Max Astrié faz considerações sobre a construção de uma piroga, repara que os indígenas estavam munidos de instrumentos rudimentares, seriam forçados a trabalhar meses seguidos para fazer a piroga, qualquer trabalhador europeu só precisaria de alguns dias, na posse de ferramentas adequadas, observou. 

O rei procurava substituir a sua piroga de guerra que tinha ficado inutilizada depois do último maremoto, intentava uma expedição contra o rei de Uno. A piroga é considerada pelos bijagós como o verdadeiro sinal de poder e de riqueza. Por isso, escreve Max Astrié, não surpreendem as demonstrações de que fui alvo quando me viram chegar na soberba chalupa construída em Marselha. 

Os indígenas admiravam as formas elegantes desta embarcação, capaz de resistir à mais inclemente tempestade e navegando, houvesse boa brisa, cerca de sete nós à hora. O chefe dos trabalhadores mostrou-me uma cabeça de touro em madeira, com cornos imensos, que devia ser colocada na popa da piroga à semelhança dos emblemas que nós vemos nos navios europeus. Entretanto, chegou um negrinho enviado pelo meu cozinheiro, encaminhei-me para a tabanca.

Cerca das duas horas, em plena sesta, entrou-me em casa o ministro da justiça que me conduziu ao rei. Oumpâné esperava-me deitado sobre uma esteira, a cara inchada e os olhos injetados de sangue: pareceu-me ainda fatigado e nauseado pelas orgias da noite anterior.

Informou-me que na minha ausência ele mexera nas minhas mercadorias e que escolhera os objetos que mais lhe agradara, e tinha expedido para um outro ponto da ilha o meu barco, não muito longe dos bancos onde naufragara o navio austríaco. 

Procurei usar da diplomacia e mostrei uma indiferença aparente. Mudando de assunto, o rei queria conhecer a maneira como os brancos procedem para fazer a guerra, para praticar a justiça e para receber os impostos. O seu espanto foi imenso quando lhe falei de exércitos permanentes, da cavalaria, de metralhadoras, de fuzis de escopeta. Manifestou-me logo o desejo de possuir tais armas e de se servir delas contra o seu inimigo, o rei de Uno. 

O modo como se pratica a justiça em França só lhe provocara uma admiração muito reduzida, interrogando-se para quê tantos juízes quando em Orango eram suficientes o rei e o ministro da justiça. Ele questionou por que é que, tendo um assunto ido a julgamento, podiam outros juízes decidir o contrário do que tinham decidido os primeiros, e disse claramente que gostava de ver o seu ministro da justiça ter a audácia de o contraditar…

Uma coisa digna de reparo é que as diversas questões postas por este Luís XIV falhado, em nada afloraram o modo de vida da Europa. Nunca me interrogou sobre a maneira como se vive nos nossos países, como se alimentam as pessoas, quais os seus desejos. Tudo o que toca à vida puramente material parecia deixá-lo completamente indiferente.

A nossa conversa foi bruscamente interrompida porque trouxeram ao rei uma grande quantidade de vinho de palma. O rei explicou-me que estava na hora das libações que duravam regularmente das cinco à meia-noite. Ele iria beber até ficar completamente bêbado na sua esteira. Vim a descobrir que me tinham sido retiradas cinquenta jardas de tecido de algodão, muitas folhas de tabaco, dois fuzis, um barril de aguardente de 140 litros e muito mais coisas.

No dia seguinte, fui testemunha de um acontecimento bizarro, um pobre diabo sucumbiu a uma doença misteriosa muito espalhada na costa ocidental africana, a doença do sono. E Max Astrié enuncia as manifestações desta doença e como num processo de gradual degradação se chega à morte. Segundo ele, atribui-se a doença do sono a um veneno vegetal que seria muito comum nas florestas onde há seringueiras. Mas logo diz que a questão não está elucidada se bem que tenha sido estudada pelos médicos da Senegâmbia e da Serra Leoa.

Segue-se a descrição de novo sacrifício, morrera alguém e suspeitava-se que tinha sido assassinado pela mulher. De novo se consulta um boneco em madeira, que se manteve imóvel às pessoas que o interrogavam perguntando se ele era o assassino até que, quando chegou a mulher do falecido, o boneco estremeceu e balançou-se duas vezes, seguiu-se a sua prisão e uma cena selvagem que ele descreve de tormenta e grande sofrimento, a condenada é conduzida para uma masmorra subterrânea onde já lá estão outros punidos condenados a morrer no meio de excrementos e de restos de comida, o francês retira-se agoniado.

Ao sexto dia depois da sua chegada à ilha, o ministro da justiça veio pedir mais aguardente, Max Astrié achou então oportuno retomar a ideia de um contrato comercial e pede ao rei para ir a Bolama, compromete-se a trazer todas as mercadorias exigidas pelo rei, pede a contrapartida de levar produtos da terra. 

O rei leva-o até a um conjunto de casas fechadas que manda abrir e mostra-lhe coconote e depois manda abrir outras casas onde há couros, esteiras, borracha, milho-miúdo e amendoim. A última casa aberta tinha restos de um naufrágio que ele veio a apurar tratar-se do naufrágio do capitão inglês John Peens, supostamente desaparecido nas costas do Gabão, os restos ali amontoados pareciam uma autêntica caverna de Ali babá. 

O rei Oumpâné dispõe-se a que o francês possa levar para Bolama o que lhe interessa desde que traga aguardente, tabaco, quina, fuzis e metralhadoras, caso os deuses agora lhe sejam favoráveis. Se o sacrifício o permitir, ele parte na chalupa pouco tempo depois. Max Astrié explica como corrompeu o sacerdote e como é que o galo decapitado veio cair a seus pés.

Tudo vai terminar com uma façanha do francês, quando descobriu que na chalupa estavam cascas de amendoins ou amendoins estragados. Ele apercebeu-se que o rei tinha com ele um tratamento inqualificável, chegara a hora da vingança.

Comunica à tripulação que irão astuciosamente até à tabanca enquanto o rei está a terminar o embarque dos presentes que lhe tinha anunciado, foram buscar tudo quanto lhes tinha sido roubado aquando do desembarque dias antes, esvaziaram as caixas e encheram-nas de ramos e de terra.

O rei mandara embarcar bois e porcos e juntou uma tartaruga magnífica com um metro de diâmetro e um pacote de cinquenta esteiras. A tripulação, dissimuladamente, levou para bordo tudo quanto tinha sido roubado. O rei pediu-me o meu revólver, escreve Max Astrié. À cautela, retirei todas as balas e entreguei-lho.

O vento estava de feição, chegara a hora de partida, o rei conduziu-me até ao embarque, sempre exprimindo agrado por ter ficado com as minhas mercadorias, julgava ele. Na praia, os marinheiros estavam a postos, levantou-se a âncora, disse adeus ao rei, a chalupa pôs-se ao largo. Foi mesmo a tempo!

Ouvia-se uma enorme gritaria do lado da tabanca, uma multidão avançava para a praia com os ministros da guerra e da justiça à cabeça. O rei teve conhecimento que eu lhe tinha deixado as caixas vazias, gesticulava freneticamente, lançava gritos roucos e desarticulados. Possesso, apontava-me o revólver e procurava disparar. Cinco bijagós lançaram-se à água, o rei Oumpâné incitava-os com a voz e gestos. 

Mas a âncora estava levantada e a brisa a nosso favor, pusemo-nos rapidamente ao largo. Então eu gritei aquela palavra que me tinha acolhido à chegada: Toubaba! Toubaba! 

E assim termina este portentoso relato, uma pérola da literatura de viagens do século XIX.

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, é sem dúvida uma "preciosidade", merecia ser divulgadio, como tu fizeste, no nosso blogue... Mas, atenção, é preciso passar o relato do vice-cônsul (francês) da Turquia em Bolama e Bissau (, "agente duplo", como sugeres ?), pelo crivo da crítica, sem esquecer a sua "abordagem etnocêntrica"...

Falta-me informação sobre as sociedades bijagós à época da expansão colonial...Ora os antropólogos têm tendência para classificá-las como "pacíficas" e "matriarcais", o que se calhar é um mito...

O tal rei de Orango, em 1879 (, usando estranhamente com um apelido português ou cristão, Oumpâné Caetano) é descrito como um "psicopata"... Não seria o estereótipo que estava na cabeça de todos os europeus, dispostos a abocanhar a África, para de pronto "civilizar os selvagens"... ?

Não sou especialista em "literatura de viagens", mais ou menos ficcionada, que de resto tem uma longa tradição na Europa, a partir (e até antes) dos "Descobrimentos": Marco Polo, Pero Vaz de Caminha, Fernão Mendes Pinto, Hans Staden, Daniel Defoe (, com o clássico "Robinson Crusoé", que todos lemos na infância ou adolescência), etc.

Enfim, acho que esta recensão do nosso incansável e dedicado crítico lietrário merece mais comentários dos nossos leitores. Venham eles. LG

Anónimo disse...

As recensões e livros apresentados por Mário Beja Santos são uma das razões do tão variado interesse deste blogue.
As descrições de outras culturas quando observadas por não(!) intelectuais europeus dos séculos XVI,XVII ou XVIII,dão-nos oportunidades únicas e curiosas.
Quanto mais “genuíno” o observador mais interessantes os assuntos e situações descritas.
Os critérios que levam às escolhas dos mesmos são também dignos de curiosidade atenta.

Quanto ao Daniel Dofoe das nossas leituras na juventude,não deverá ser incluído na “lista” formada pelos Fernão Mendes,Pêro Vaz de Caminha,Marco Pollo ou Hans Staden.
São homens que fazem descrições na “primeira pessoa “ quanto às suas observações e experiências de viajantes.
Ora o nosso Daniel Dofoe de viajante por paragens exóticas nada tinha.
Dispondo de elevada capacidade descritiva publicou alguns interessantes e populares livros na sua época mas,viagens reais foram mais as de prisão em prisão por razões políticas várias.

O livro ,publicado a título anónimo em 1722 “O ano da Peste” ,referente à Peste de 1665 que só em Londres matou mais de 100.000 pessoas (leitura interessante na pandemia de hoje),levou muitos dos leitores a julgar ter o acontecimento sido “vivido” ,precisamente como no caso Robinson Crusoe,por Daniel Dofoe.
Interessante escritor,com uma vida rica em acontecimentos mas,não ao nível das viagens dos outros membros da lista.

Um abraço
J.Belo

Anónimo disse...

Relativamente ao conjunto de 3 Posts sobre a viagem do cônsul da Turquia em Bolama à ilha de Orango em 1879 a instâncias de Aimé Olivier, gostava de começar por referir que a viagem relatada não terá sido a primeira àquelas paragens intentada por um “branco”. De facto, já dezoito anos antes, em Dezembro 1861, o rei de Orango, Orantó, havia assinado com as autoridades portuguesas um termo de reconhecimento da soberania de Portugal sobre a ilha de Orango. Termo que foi assinado na presença dos juízes dos grumetes de Bissau e Bandim.
A propósito desta viagem tem interesse mencionar que Aimé Olivier (a quem o governo português dera o título de marquês de Sanderval), era um daqueles comerciantes estrangeiros empenhados em prejudicar a acção administrativa das autoridades portugueses, promovendo os interesses da França (já aqui referimos a acção de um outro comerciante, Otto Schacht).
Em 1881 havia a convicção de que as hostilidades entre futas e fulas na vizinhança de Buba eram impulsionadas por súbditos franceses que “adversos ao nosso domínio” largamente presenteavam estes últimos. Entre aqueles encontrava-se Aimé Olivier, o qual não seria estranho aos movimentos que se verificavam envolvendo aqueles povos.
No ano seguinte também aquele intervém através da sua casa comercial estabelecida no rio Nalú, fornecendo mantimentos aos fula-forros que atacavam as feitorias do rio Grande.
Mais tarde, em 1888, no decorrer dos trabalhos de demarcação das fronteiras no território dos fulas, fazem-se novamente sentir “os manejos” de Olivier. Havia a convicção de que este estaria a fornecer pólvora aos chefes fulas para os auxiliar na sua guerra contra os beafadas, com o fim último de que se pronunciassem em favor da França. Olivier provocava ainda a continuação das dissenções entre aquelas povos dificultando a acção das autoridades. Esta actuação vai obrigar o ministro dos negócios estrangeiros a enviar uma Nota ao ministro da França em Lisboa mencionando as dificuldades que à acção administrativa das autoridades portugueses causava as alegadas intromissões do cidadão francês Aimé Olivier.
Armando Tavares da Silva