segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21933: No céu não há disto...Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (21): A Broa de Milho à Moda do Minho... e as sopas de vinho verde tinto (Joaquim Costa, V. N. Famalicão)


A broa de milho à moda do Minho...à moda da minha mãe


Foto (e legenda): © Joquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar:


Data: segunda, 22/02/2021 à(s) 12:53
Assunto: O pão de milho e as sopas de vinho

 
Caro Luís, amigos e camaradas, em resposta à tua sugestão (*), aproveito para dar voz ao pão de milho, moído nas bucólicas azenhas espalhadas por toda a região do Minho, dando continuidade às minhas memórias de Paz.


As minhas tamanquinhas, a broa de milho… 
e as sopas de vinho verde tinto

por Joaquim Costa


Terminado o verão, era altura de preparar o inverno, pelo que a minha mãe me levou com ela à feira para comprar umas chancas novas e uma masseira (recipiente em madeira para dar “Coça” à massa para a fornada de pão) já que a velhinha de várias gerações se estragou.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos que precisavam a bom preço bem como um pouco de divertimento e convívio fugindo, por ,algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:

  • venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas a saltarem de mão em mão (Durante toda a tarde nunca a malga era lavada e todos os amigos que chegavam eram convidados a uma “golada” ; (a Sara era chamada frequentemente para repor o tinto com a frase: "Sara! lave com a mesma água !");
  • se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
  • onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes (um menino que nasceu com 3 cabeças e um homem que matou a mãe à facada e foi morto com uma cornada de um boi em defesa desta);
  • onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
  • onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
  • onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
  • onde não faltava, nos dias de calor, a “águadeira”, com o seu cântaro de barro a vender copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
  • onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.

Antes de irmos às minhas chancas a minha mãe ainda comprou uma “masseira” nova para amassar a farinha para as fornadas de pão que cozíamos no forno caseiro uma vez por semana. 

A Sexta Feira era o dia mais esperado. Dia de cozer uma fornada de pão para toda a semana. Para além de ser o único dia da semana em que se comia pão fresco, era o dia das sopas de vinho (sopas de cavalo cansado), e da bôla com carne. Com o pão a sair do forno quentinho e estaladiço partia-se com a mão, ainda a queimar, para uma malga onde se embebia em vinho tinto. Ficava em descanso durante umas horas e ao fim da tarde era um regalo ver todos os meus irmãos a “lambuzarem-se” com tão extraordinária iguaria.

Eu não ficava de fora e tinha direito a uma pequena tigela, onde deitava um pouco de açucar. Não estava autorizado a beber vinho mas estava autorizado, uma vez por semana, a comê-lo (gostava mesmo daquilo). Eram as sopas de vinho e uma cebola pequena aberta com dois golpes preenchidos com sal e acompanhada com pão de milho quentinho que eu mais adorava.

Outra iguaria que fazia as nossas delícias era uma bôla, espalmada, onde se colocavam pequenos pedaços de carne de porco entremeada. Ia ao forno com a carne onde se derretia a gordura que dava um sabor divinal à bôla.]

Ao contrária dos nosso netos, que julgam que tudo o que aparece nas superfícies comerciais é feito na fábricas, no meu tempo, quando comia um “naco” de pão de milho sabia, melhor do que ninguém, como se chegou e este momento tão extraordinário de saborear esta dádiva da natureza.

A minha casa era rodeada por campos onde se cultivava, alternadamente, milho e centeio, acompanhando, maravilhado, os milagres da natureza:

  • acompanhava o lavrar a terra, ainda com a charrua puxada por uma junta de bois;
  • acompanhava a sementeira manual com gestos precisos e elegantes;
  • abria a janela todos os dias de manhãzinha e ver o que a natureza tinha tinha feito, durante a noite, à sementeira;
  • assistia à rega do milho abrindo e tapando carreiros, com a ajuda de uma enxada, onde passava um pequeno regato de água;
  • caminhava por entre o milho, cortando uma espiga, ainda verde, para assar na lareira da cozinha;
  • fumava os primeiros “cigarros” com as barbas de milho já secas enroladas em papel de mortalha;
  • participava na apanha do milho, fazendo o trajeto para a eira em cima dos carros de bois;
  • participava nas magníficas, e tão esperadas, desfolhadas, com muitas cantorias acompanhadas pelas tradicionais concertinas, muito vinho e presunto. O clímax destes momentos era quando alguém desfolhava um milho rei, com os rapazes em êxtase dando beijos às raparigas solteiras;
  • assistia à malha do milho com gestos preciso, coordenados e elegantes dos malhadores;
  • acompanhava o moleiro carregando sacos de milho do lavrador até ao moinho de água, construído num ribeiro afluente do Ave e acompanhava-o no regresso já com os sacos cheios de farinha;
  • assistia e ajudava ao levar em braços do moleiro até à sua carroça, puxada por um elegante e inteligente cavalo, depois de adormecer, bem jantado e bebido, e, dar uma pancada no cavalo que o levava direitinho até casa, escolhendo o melhor caminho para não acordar o patrão.

Depois, de todas estas tarefas, tudo ficava nas mãos da minha mãe:
  • Amassar a farinha numa masseira de madeira, fazendo uma reza e benzendo várias vezes a massa já devidamente posta em sossego, depois de uma valente coça;
  • Aquecer o forno com caruma e carqueja apanhada nas bouças vizinhas (altura em que as matas estavam sempre limpas);
  • Meter toda a fornada no forno já quente e limpo, utilizando uma gamela de madeira para dar forma à broa;
  • Fechar o forno, tapar todas as frinchas com um material, que me escuso de desvendar evitando ferir a sensibilidade de leitores mais suscetíveis, e mais uma reza e umas benzeduras.

Depois o milagre acontece... com o pão, que “Deus” amassou... na malga embebido em vinho tinto

“Amem"

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21922: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (20): O pão nosso de cada diz nos dai hoje, diz a "chef" Alice... E se for de farinha de trigo de Barbela, do Moinho de Avis (Cadaval, Montejunto,1810), ainda melhor!

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim: puseste-me a salivar...

Como sabes, sou mouro, mas quando comecei a ir aí, ao Mimho e a Entre Douro e Minho, em 1975, ainda conheci, em Candoz, quase tudo o que tu descreves: a cultura do milho e as suas diferentes fases, o forno, a broa de milho, o vinho verde tinto, o "jacquet", as videiras de enforcado, a matança do porco, as feiras de gado (do Marco de Canaveses), o carro de bois a chiar, as juntas de bois, o "gadinho", etc.

Enfim, todo um mundo que, de resto, desapareceu...

Aqui tens o teu poste, que espero seja muito comentado. Ab, Luís

Anónimo disse...

Cato Joaquim Costa

Riquíssimo o teu escrito que nos faz mergulhar na região durimínia, à qual eu pertenço também, descrevendo com todo o rigor e pormenorizadamente a vida campestre de há mais de sessenta anos.
PS- não quiseste impressionar , mas eu complemento sem qualquer rebuço : era com bosta de bovino que se tapava a porta do forno.

Um abraço

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

António, eu, "marginal-secante" à tua/vossa região, Minho e Entre Douro e Minho, confirmo o que tu dizes...

Quando comecei a ir a Candoz, a partir de 1975, fazia questão de "chocar" os meus amigos do Sul, no regresso, com essa da "bosta de boi"... A boroa de milho e o arroz de forno com anho assado tinham um gosto com toque especial "por mor da tal bosta de boi" com que se "calafetava" a porta do forno...

Parabéns aos dois, Joaquim e António, por partilharem aqui, no nosso blogue, essas memórias de infância, o mesmo é dizer, as vossas geografias emocionais, com todos os cinco sentidos incluidos...

Valdemar Silva disse...

Ó Carvalho, depois de ler o belo texto do Joaquim ia escrever sobre com o que se fechava a porta do forno.
Vivi no Minho até aos 11 anos, só depois da 4ª. classe vim pra Lisboa.
Quando a minha avó Maria cozia broa, eu ou o meu primo íamos apanhar bosta das vacas, a de boi era difícil encontrar pois o "bonito" não saía da sua corte de cobrição. Como a nossa casa estava junta da Estrada Nacional era fácil arranjar a bosta, depois trazía-se numas folhas de videira.
No dia da broa de milho, com um bocado da mesma massa a minha avó fazia um bolo de sertâ com quatro sardinhas em cima, ou se naquele dia tivesse dado sargaço no mar também se trazia uns mexilhões que depois de abertos a minha avó fazia uma fritada com azeite e farinha de milho.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Meus caros, Luís, Carvalho e Valdemar, os meus amigos acabaram de “borrar” a minha escrita.
Já que me descobriram a careca (cada vez mais difícil de cobrir!) aqui vai a história toda:
Como já afirmei adorava em participar em todas as fases da vida do milho, particularmente a última, lambuzando-me com as sopas de vinho, mas fugia como o diabo da cruz do balde da M****
Pegar no balde, atravessar toda a aldeia até ao lavrador, bater à porta com o homem mandando-me entrar e apreguando para toda a aldeia: é entrar, é entrar, m**** quentinha acabada de c****.
Entrar na corte do gado com os inquilinos de cornos afiados resmungando com a invasão da sua privacidade. Meter a mão na m****, todo acagaçado, enchendo o balde. Fazer o calvário no regresso a casa escondendo-me aqui e ali na procura de uma fuga discreta.
Já a meio do caminho, no silêncio da aldeia ouvir a voz de trombone do “tolinha” da terra:
Toquem os sinos a rebate, tapem os vossos narizes, fechem portas e janelas que vem aí o rapaz da m**** . Não era nada fácil...mas era por uma boa causa!

Anónimo disse...

Apregoando - com as minhas desculpas pela dislexia