segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25282: Manuscrito(s) (Luís Graça) (247): Quando os ventos sopravam em Assuão...

 

Egito > Assuão > Templos de Abu-Simbel > Cortesia de Wikipedia e Panoramio (foto)

 

Quando os ventos sopravam em Assuão era verão

por Luís Graça


Aqui o verão era fértil,
O verão era fútil,
O verão era fértil em coisas fúteis.
Fértil no Vale do Nilo,  fútil em Abu Simbel.

Era no Verão que se comia melancia ao quilo,
E, enquanto amadureciam as tâmaras,
Vendia-se a inultura geral a granel 
Em folhas de falso papiro:

... "Welcome, sejam bem vindos a Assuão!"

Senhores e senhoras do Norte, 
Em agosto resiste-se melhor 
À melancolia do entardecer em África,
Bem como ao medo das câmaras escuras da morte,
Na linha do horizonte, abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel, o verão era ostentação.
Tu preferias os óstracos
Onde o operário de Deir el-Medina
Falava da sua condição,
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De escultor de esfinges, 
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro Caronte.

Tu sempre achaste que esta estação não rimava com poesia.
Mas tu não eras o Ramsés Segundo
Nem conhecias o caminho irreversível para a imortalidade.

Aqui o verão era fértil em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível do mundo globalizado.

..."Na terra prometida do pão e do mel,
Tenham cuidado, meus senhores, com os vegetais,
Bebam águas minerais, encapsuladas, 
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais
E das sete pragas do Egito!

... "E o vírus do Nilo, senhor barqueiro  ? É mortal ?"

... "Descanse, my lady, que o barco tem escolta policial."


Na Ilha Elefantina nâo havia manicure,
Havia apenas pessoas  inúteis
Que adoravam subir aos píncaros do verão.
De camelo.

... "Sobretudo não tome uísque com gelo",

Podia ler-se numa tabuleta à beira do lago Nasser.

... "Meus senhores, estamos em África, be careful"

Aqui o verão era, por excelência, o paraíso 
Com o ocre como pano de fundo.
E sob os carris de ferro das dunas
O barco, bêbedo, do poeta Rimbaud.
O verão era uma casa de adobe e uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.

... "Ah, o nascer e o pôr do sol, 
Não esquecer de pagar tributo ao deus-sol".

Porque o verão no Egipto era a rosa do mundo.
O misticismo. A demência. 
Os calores 
De Santa Teresa d’Ávila em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis. E das Rainhas. E dos Nobres.

... "Esqueçam, por favor, a mastabas dos pobres!

... "Ah! Não vêm nos roteiros turísticos ?

... "I'm sorry"!

O verão era o sexo distendido.
O músculo relaxado. A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea. O postal ilustrado.
O repelente para os mosquitos,
A alegre promiscuidade dos cinco sentidos.
O carrossel do Cairo em três dimensões.
O teu gin tónico com limão.
A carne em decomposição. O desastre humanitário.
Mais, ao fundo do mapa,  a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios. As volúpteis núbias.
A mutilação genital feminina das futa-fulas da Guiné.
A tragédia de Darfur.
Tudo trivialidades.

... E ainda a louca montanha russa. O bazar.
A dança do ventre dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família. Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto. 
Todos os estereótipos do mundo.

... "E, por favor, tirem uma fotografia digital,
Da varanda do hotel Marriott."


Bem gostarias de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:

... "Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades da comunicação humana."


O verão era o Vale do Nilo, 
Um gigantesco falo que penetrava, fundo,
A terra árida e seca da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.

... "White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo!"


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Dizia o guia, o teu guia:

... "Alá é Grande!,,,
Mas o meu o coração sangra de dor
Pelos meus irmãos, xiitas, sunitas, ismaelitas.


Do alto das pirâmides de Sacara
Havia um imã que te notificava
Por carta registada com aviso de recepção:

... "Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação!"


Recebeste por fi
m notícias de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
Era então um problema de saúde pública.
Um osso duro de roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde soprava o vento que modelava o  rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo erguia-se o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
Era  já um pequeno burgo.
E o teu guia, egípcio, brasileiro, muçulmano,
Dizia que tinha o coração a sangrar.
Marcos chorava pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidenciava-te:

... "Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem."

Marcos não tinha preço.
Incorruptivel como o corpo dos faraós.
E recusava-se a atravessar o Mar Vermelho. 

... "Não matarás!,  sentenciava Moisés".

Que tivessem  santa paciência.
Os pobres. Os diabos. Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas. Os contribuintes.
Os camponeses. Os escribas. Os escravos,
Os guias turísticos. Os romancistas policiais.
Os arqueólogos. Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.

... "E sobretudo os pobres,
Porque deles ainda há de ser o reino da terra!"


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos e tão poucos sábios.

... "E não se esqueçam de pôr a escrita em dia.
Pesem a alma. Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar!"...

E o Habibo, de mão estendida:

... "Um oiro, um euro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo,
Que tem sede e fome.
Óscar, de seu nome."


E o Estado que já não garantia ser mais Estado no futuro,
E muito menos o Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a baixa por doença ou acidente 
Aos construtores, descartáveis,  de piràmides,
E nem sequer já a múmia ao faraó.

..."Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão".


Restava-te a Alta Autoridade do Nilo
Que regulava os influxos e os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias em Memphis.

Na verdade, o verão era apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que ia do nascer ao morrer,
Duna acima duna abaixo.
E quem dizia estação dizia cais. 
De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que era o rio que passava à tua porta antes de ser desviado
Para ir regar as palmeiras do Éden.

Sexta-feira, treze.
De Agosto. De azar,
Quer quisessem ou não, a indústria do lazer
Iria ser o principal foco de infecção
Naquele pico de verão.

... "Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon."


Morrera a indústria dos metais pesados,
Como acabara por decreto o tráfico de escravos
Que alimentava o Novo e o Velho Mundo.
Pois que vivesse, agora, a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. 

... "De terceira vaga.
Com homologação. Com certificação.
Com acreditação. Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício."


Graças ao lóbi da qualidade
O mundo iria bem melhor sem escravos nem metais pesados.

... "Que a vida era dura,
E o que a gente faz para ganhá-la", dizia o Marcos.

Como o búfalo que pastava nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimentava o Faraó 
E as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia e os seus esbirros,
E a legião de escribas acocorados
Que tinham o monopólio da escrita. E do saber.
Ah!, sem esquecer os engenheiros da barragem de Assuão.

Na época, as partes pudendas, a zona púbica,
A coisa pia, do Portugal contemporâneo,
Iria ser matéria de alto relevo na televisão.
Dizia o Eça, o escriba ainda de pé,
Em missão de reportagem na inauguração do Canal do Suez.

... "Já não tens rei, ó portuguès,
Nem o tique aristocrático do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay.
Nem faraó. Nem deuses. Agora é que é,
A república é quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino no Portugal pequenino
Mas demo...crático."


Imaginavas.
Sem imagem nem voz.
Porque estavas em férias num cruzeiro do Nilo,
A observar o elegante voo da garça real.

... "Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ? E a abetarda ? E o jagudi da Guiné ?
E os filhos ilegítimos do povo ?"


No barco não apanhavas a RTP, felizmente de todos nós.
Nem sabias se o Porto perdera na supertaça
E o Obikwelo ganhara a medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.

... "Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?"...

... "Ah!, não, ah!, sim, português !

... "Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo."

... "Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco...
Quatro três dois, um!"

... "É só um oiro, um euro, amigo.
Que o Habibo tem fome e sede mais o camelo."


Maria do Patrocínio, tua avó materna.
Lembrar-te-ás dela,  a 'ti Patxina ?!
Patxina, de alcunha, 
Por economia de letras do alfabeto.
Morrera cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
'Ti Patxina, apalpando os netos, o  cabelo,  a cara.
E não a mumificaram
Nem muito menos a operaram às cataratas
Que no seu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais e sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as sete pragas do Egipto.
Como naquela triste aldeia núbia
Que era uma espécie de reserva dos últimos núbios
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde havia uma velhota,
Cega como a  ti' Patxina,
Que vendia bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor, tu gostarias de ter escrito
Um poema sobre os teus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulavam.
A verdade é que encontraste aqui
Um povo afável.

... "Mas que te  adiantava o pedigree, ó Habibo,
E os cinco milénios de civilização.
E Ramsés Segundo e Nefertiti,
E o templo de Edfu,
 E a barragem de Assuão,
E o museu do Cairo...
Se nada mudara, pobre de ti,
Na tua condição de burro carrejão ?"

Soprava o vento dessecante.
Estavas em Assuão.
Nos píncaros do verão.
E nem sequer havia um gin tónico, refrescante.


Egipto, em cruzeiro pelo Nilo, 22-28 de agosto de 2004. 
Revisto em 16 de março de 2024.

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25260: Manuscrito(s) (Luís Graça) (246): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 3. Da medicina mágico-religiosa do templo de Epidauro aos atuais médicos de família

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não eram só os faraós que aspiravam à imortalidade... Todos nós, pobres seres humamos...

E se não fosse a campanha mundial, nos anos 60, da UNESCO, o pobre do Ramsés II mais a sua bela Nefertiti já estavam há muito cobertos com a água e o lodo da barragem de Assuão...

E assim acaba a vaidade humana...




Antº Rosinha disse...

O Ramses não sabia nadar, tal como as pinturas rupestres do Côa.
Grande viagem ao passado!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Rosinha! ... O Ramsés teria morrido afogado na grande barragem de Assuão, construída pelos soviéticos (se não erro; hoje seria pelos chineses)...

Foste feliz ao desencantar a palavra de ordem que ajudou a salvar as gravuras de Foz Coa... E que chegou aos ouvidos do nosso camarada João Crisóstomo, que vivia em Nova Iorque.

Mantenhas. Luis


Joaquim Luis Fernandes disse...

Luís Graça, foste feliz em poder visitar o Egito e captar o quanto de História e grandeza lhes estão impregnados, testemunhando a vida de milénios. E não te passou ao lado a observação das atuais realidades, marcadas pelas vicissitudes dos nossos tempos.

Eu nunca fui ao Egito, mas gostava, sabendo que isso dificilmente acontecerá.
Assim, limito-me a dar uma espreitadela ao que se vai publicando e me cai diante os olhos.
Também o "Google Maps", me oferece a oportunidade de uma mirada. É uma breve, pobre e solitária viagem virtual. É o que se pode.

Abraço
JLFernandes

antonio graça de abreu disse...

Boa malha, Luís, o Egipto, o Nilo, o vale dos Reis. Eu, que tenho a mania, e o proveito, de que sou um rapaz muito viajado, nunca fiz esses itinerários faraónicos. Mas estive dois dias em Alexandria e atravessei já por três vezes o canal do Suez. Aprendo contigo que trazes todo esse Egipto, das pirâmides a Assuão. em palavras e ritmos coloridos, e poderosos.
Abraço,

António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

Obrigado Luís por esta narrativa

Querendo, ou mesmo que não, sempre viajamos por lá, aproveitando as tuas referências.
O Egipto foi e ainda é motivo para grandes observações.
Para além do seu esplendor, distribuído por várias dinastias da Faraós, também as referências religiosas que teriam, ou não, influenciado o "Antigo Testamento", são importantes.
E se relacionarmos tudo isso com as diversas situações históricas em que os Hebreus foram para o Egipto e de lá voltaram com novos conhecimentos, podemos aqui encontrar "pano para mangas" para discussões mais ou menos académicas ou sobre religião.

Também nunca fui ao Egipto e gostaria de ir, ou ter ido, que agora acho que já passou a oportunidade.
Já estive na "Terra Santa", em Israel e na Palestina. Estive lá um ou dois meses, não sei precisar agora, antes do Sharon ter, propositadamente, provocado a "intifada" e com isso começado a sabotar o desenvolvimento da tese dos "dois estados". Mas isso são outras histórias, o que importa aqui é o Egipto.

Eu não estive, mas o meu filho mais novo esteve. Esteve por alguns meses, em serviço numa empresa que fazia parceria com a Vodafone. E gostou. Gostou bastante.
De tal modo que em alguns fins-de-semana que por lá passou, aproveitou para tirar um curso de mergulho no Mar vermelho, salvo erro em Hurgharda, mostrando-se entusiasmado por mergulhar com tubarões. Aproveitou também para passar noites do deserto, o "deserto branco", o "deserto vermelho" e acho que mais alguma coisa. Mesmo dizendo que o trânsito automóvel (e não só) era uma enorme confusão, acabou por também arranjar um carro para se deslocar para o local de trabalho e disse que durante todo aquele tempo nunca viu um acidente.
Bem, calculo que tivesse "lentes de benevolência".

E digo isto porque no fim dessa comissão de serviço no Cairo foi transferido para outro projeto, mas agora no Dubai. E assisti, aqui em Portugal, durante um almoço, a defesa que ele fez das belezas e virtudes do Egipto, da riqueza da sua História e civilização, contra aqueles que consideraram que "o Dubai, sim, é moderno, limpo, organizado, agora o Egipto é sujidade, antiguidades". Ele aqui empertigou-se defendendo o Egipto e argumentando que o Dubai não tem história, tem dinheiro, é tudo artificial.
Bem, opiniões, mas para mim faz alguma sentido.

Portanto, fizeste bem em trazer para aqui o Egipto.

Hélder Sousa