sábado, 25 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra atribuída a  Fernando Pessoa, num parede de um prédio devoluto já entretanto demolido: "A terra é feita de céu./A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu./Tudo é verdade e caminho".

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo> Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!

 por Luís Graça (*)


Foi só largos meses depois, na ida à  consulta anual de vigilância a que o doente oncológico fica sujeito, no IPO de Lisboa,  que tu vieste a saber da morte desse teu conhecido... 

Dele não guardavas, para seres sincero, as melhores recordações. Era um tipo de quem sentias pena e asco, ao mesmo tempo (e sem saberes  bem por quê). Tinha sido doente do IPO, tal como tu, antes da pandemia, lá já vão uns bons anos.

Era alguém, um bocado "bronco", que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas, às enfermeiras e às radioterapeutas que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) !...

Uma dos profissionais do IPO, tua conhecida,  que ainda se lembrava dele, comentou:

− Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, uma figura do passado, um marialva à moda antiga... Cirandou por cá ainda uns tempos. E acabou até por morrer cá. 

Foi bravo na morte, disseram-te. Tu sempre o achaste, para além dessa faceta de marialva "démodé", um bocado exibicionista e histriónico. Precisava de palco. Mesmo no fim. Mas nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. (Afinal, quem sabe onde e quando vai morrer?!)... E tinha-se voluntariado (?) para um ensaio clínico. Não chegaste a saber se fora aceite… 

Descobriste que tinham, afinal, tu e ele, em comum um conhecido. Da terra dele. Mas o que mais aproximou ambos foi, de facto, o IPO, que frequentaram juntos durante algum tempo. Enfim, encontraram-se ainda algumas vezes, na radioterapia... e no bar.

Abreviando a história:  ele acabou por te confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena. Pediu-te um “parecer”. Achava que tu tinhas pinta de crítico literário. Só  por usares óculos e andares sempre com um livro debaixo do braço. No fundo, confiou em ti. Não sabes bem por quê, nunca lhe disseste, de resto,  o que fazias na vida… 

Ele queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro. E “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava…

Os direitos de autor, segundo a sua vontade expressa, seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic). E ele era um sedutor e desfazia-se em lisonjas para quem cuidava dele.  Ou lhe dava trela, como era o teu caso.

Comentaste, mais tarde, este caso com um teu amigo psicólogo, psicoterapeuta, com nome na praça, e que te perguntou no fim:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da 'fauna humana' ?

Respondeste-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… Podes pô-lo na gaveta do 'acelera', do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do brigão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias dele (ou que soubeste dele por um amigo comum)... Histórias que ele provavelmente nunca contaria aos netos (nem deveriam ser  motivo de orgulho para os filhos)...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com princípios, 
com ética, com bom senso e bom gosto…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamavam (ou ainda chamam) “lobo”, em crioulo, à hiena, um animal desprezível,  fedorento, caçador oportunístico... O que eu acho que é uma ofensa para o pobre lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Talvez o epíteto seja bem aplicado neste caso… 

E acrescentaste:

− Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…, que ele acabava de deixar transparecer, nas entrelinhas... Talvez pela compulsão de se mostar subserviente para com os  ricos, fortes e poderosos... e valentaço aos olhos dos mais fracos. Era o fruto de uma época, de um regime...

Foi mais ou menos nestes termos que tu descreveste, numa bela manhã de  sábado, em que se encontraram, tu e o teu amigo "Psi",  por acaso,  numa visita a um exposição temporária na Fundação Calouste Gulbenkian (se bem te recordas, sobre o "Cérebro", em meados de 2019), quem era essa tal “hiena” da tua pequena história… 

Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as francesas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil fratricida, como a dos tempos do Liberalismo, as lutas liberais de 1828-1834, a Maria da Fonte e a Patuleia, em 1846/47, ou ainda do tempo República ou e depois dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar", como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano, no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se facilmente “à porrada” com colegas e professores. Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias, sem pudor nem arrependimento.

Na época mandavam-se estes casos, quem tinha algumas posses, para o Colégio Nun'Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… O pai, nortenho, conservador,  tinha o desgosto de ter um filho "corrécio" (sic)... Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos (e carros)  deve ter vindo desses tempos. 

Mas tu sabias pouco do seu passado, baseavas-te no que ele te contara, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-te, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebeste passou por Cabo Verde e Angola. Nunca te deu pormenores sobre a sua passagem por Angola, já em plena guerra. Sabes, isso, sim,  que aprendeu "uns truques de boxe". Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos (e no pedal: era um "acelera"...).  Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil, com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique da União Nacional, deu-lhe uma mãozinha...

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Os porcos e as galinhas estavam então em explosão demográfica.  Percorria suiniculturas e aviculturas do Oeste. Apresentava-se também como delegado de propaganda médica veterinária... Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sabes se, à boa maneira dos tradicionais "caixeiros-viajantes", que nessa época ainda calcorreavam a província, chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes. Confirmou-te, isso, sim, que tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic), ao longo do caminho de casa…

Nunca deu para perceber se estavas na presença de um sociopata. Pelo menos,  ele nunca terá chegado a ter problemas com a justiça (para além, eventualmente, das multas da Brigada de Trânsito)… Também já o conheceste na fase terminal da sua vida. Mas sabias que ele nunca contaria "a verdade toda"... Sobretudo gostava de ficar "bem na fotografia". Teria alguns traços do sociopata, no mínimo fora um homem violento. E, na verdade, não parecia nutrir sentimentos de compaixão pelos outros.

Contou-te (mas não deixou isso escrito nas suas "memórias") que atropelara mortalmente um “pobre diabo” (sic)... Na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"..., apressou-se a acrescentar. Mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima. “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado, a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Ao  princípio, pareceu-lhe até ter sido "um animal, talvez um javali"...  

Provavelmente intranquilo, confirmou pelos jornais, no dia seguinte, a notícia da morte de um homem, naquela noite, àquela hora, e naquela estrada : “Uma chatice..., mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, comentou ele, com o maior dos desplantes… Sentia-se, afinal,  impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso terá sido arquivado. Por fim, o  bate-chapas, seu conhecido,  destruiu os eventuais indícios do crime de homicídio involuntário.

A propósito, o teu amigo "Psi" comentou, "ex-cathedra":

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável) que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Alguns ficam atormentados. Outros fazem tudo para esquecer. Outros confessam-se ao padre ou ao psicólogo.,,  Para o bem e o mal, a fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas voltando ao teu conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua… 

− Estou a ver… Na província, num certa província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico” (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. 

De vez em quando, tu apanhavas, nos seus monólogos (era bastante compulsivo a falar), alguns restos da sua tosca formação político-ideológica. E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apuraste (nem quiseste, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo…

No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E tu nunca o inquiriste sobre isso. Achavas que não tinhas esse direito, para mais numa situação em que a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não te pareceu que tivesse sido um operacional de coisa alguma (do MDLP, por exemplo). Quando  muito terá sido um "peão de brega" nas "touradas desse tempo" em que ele gostava,  isso sim, de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante". 

Com um sorriso amarelo, contou-te, da última vez que o viste (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica oncologista do IPO quem lhe passara a “certidão de óbito antecipada”. (E ele dizia-te isso, com um súbita frieza, sem a mais pequena emoção, o  que te chocou.)

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. A si e à sua família.  Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou, infelizmente, na próstata… Agora a bexiga, o fígado, o pâncreas… O diagnóstico foi, infelizmente,  tardio. Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a ajuda piscológica. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota ter-se-á apagado pouco tempo depois, pelo que tu vieste, 
mais tarde, a saber . Esteve ainda numa unidade cuidados paliativos, com muita morfina em cima daquele corpo que se degradou muito rapidamente…

Mas, muito antes disso, já lhe tinhas devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica:

 “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal,  e com erros de ortografia, mas tu não tinhas coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isso, afinal, a um homem que, pela conversa da sua médica, ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, para mais sabendo que ele era um narcisista ?!…

Não o desencorajaste, acabaste por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a miss ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais e cronológicos... Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria ainda  saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante, encontrar um editor… E restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. 
Mas, que, não senhor,  não devia de desistir, escrever só lhe podia continuar a fazer bem, blá, blá, etc., etc.

Tu fazias questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era, de resto, uns largos anos mais velho do que tu. E havia um lado da sua humanidade que te causava asco...

Claro, nunca te chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, algo megalómano e mitómano, do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira, ao que tu sabias, de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheceste, a não ser de fotografia: teria idade para ser filha dele. (Confessou-te que sempre tivera atração pelas raparigas mais novas, e de "cor".)

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo divorciado, o Jota Jota era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado, casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava… quando ainda tinha forças para tal… "Nunca perdia a feira da Golegã"... Mas nos últimos meses a sua decadência física fora galopante.

Às tantas tiveste pena daquele teu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, a começar por jovens mulheres que ele seduzira, e que era incapaz de autocrítica, compaixão e arrependimento…

O mais patético foi vê-lo, poucos meses afinal antes de morrer, contar-te, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa. Os dois faziam horas. Tu ias adiando o clique de telemóvel para a tua boleia. Talvez por não quereres perder o final daquela história de um homem a lutar contra o tempo e contra a morte. 

Não sabes se não ficaste ali apenas por caridade (a palavra repugnava-te). Ou por compaixão… Ou solidariedade. Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo tu não querias desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em ti, que só te conhecia do IPO… (Como costumavas dizer, nesse dia fizeste a tua boa ação de escoteiro.)

Já antes te confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!... Com tratamento VIP!

Nunca tinhas ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias, gente de todas as classes sociais, género e idade...

− Tratamento VIP ? – interpelaste-o tu, para logo a seguir acrescentares:

− Mas é um direito, que o meu amigo J... tem, o direito à saúde, aos melhores cuidados de saúde possíveis,  um direito consagrado na Constituição… Há quarenta anos atrás já estávamos os dois na quinta das tabuletas.

Não sabes se ele terá entendido  a tua observação, tanto mais que ele não deveria conhecer, pelo que tu deduzias, os princípios em que se  apoiava a criação do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebeste onde ele queria chegar: de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem te explicar como é que ele teria apurado esse valor, absolutamente exorbitante no seu caso).

− Dava para comprar um Ferrari ! – asseverava ele, quase orgulhoso.
 
Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial fanfarronice, garantia-te que a “menina da farmácia” (sic) já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

− Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta um milhão de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço no último espetáculo  do circo que, no dia seguinte, vai ser desmontado, com a trupe a abalar para outra terra...  

Ao mesmo tempo, ele provocava-te compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…)"quanto mais caros melhores!"). Era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo, afinal, de certos ricos e poderosos com quem ele se gabava de ter privado e com quem, afinal,  se identificara "nos bons velhos tempos"...

Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista, por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado, ou melhor aos contribuintes.

Tu duvidavas que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro”, por detrás do seu guiché, lhe tenha dito, textualmente, essas palavras... E muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica oncologista a dar-lhe essa informação, embora muito por alto e em tom de brincadeira. 

Logo que a ambulância partiu com o teu companheiro de infortúnio, tiveste o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltarias a ver. E, confessaste, com algum alívio… A sua história acabrunhava-te. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele. Estaria talvez já em adiantada fase do seu processo de luto, o da resignação, quando o homem,  que sabe que vai morrer,  aceita a fatalidade e desiste de lutar...

Recordas-te ainda de, logo no princípio da ida ao IPO, ele te contar-te a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! ( Refiria-se ao sangue dele, entenda-se!)

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic). Foi protelando a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, que o deixou prostrado,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde "caríssimo" (sic), que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, com outros doentes aos berros, no corredor, e por aí fora.
Mas em boa hora lá o levaram ao sítio certo:

−  Mas, primeiro, dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha grande surpresa. Pensava que os urologistas eram todos homens. A princípio, confesso, senti-me intimidado e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma vulgaríssima eco prostática ? – quiseste saber tu, evidenciando algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus!

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota, porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E, depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu, não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora. Até tem dedos de fada!

− E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só lamento o sr. Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia, em observação e para, logo amanhã de manhã,  fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico, que é reservado.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando, àquela hora da noite, aquela conversa algo surreal (para o doente):

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo, estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ta contou, com graça, pondo-se na pele da médica (que passou a ser o seu "anjo da guarda"):

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano, do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, transmontano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali. Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas e botas de montar. Um mulher de arma em punho, está a ver ?!... Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre, à perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns pigarreavam ou fingiam que tossiam para disfarçar o desconforto. Outros puxavam grandes fumaças dos cigarros ou charutos… E antes que se avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia) fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito educada, fina e de boas famílias, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… 

E, por fim, a urologista arrematou:

− Fez-se um silêncio, quase sepulcral, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão, exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, senhora doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota, ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, de belo porte,  assertiva, superiormente inteligente, de personalidade dominadora, e para mais "doutora"… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida com o seu trocadilho, à boa maneira marialva:

− Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


[ Obs. - Nesta série, "Contos com mural ao fundo", a realidade e a ficção misturam-se. Muitas vezes. E ainda bem. Ainda bem  que temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a vida e a morte, o prazer e a dor, a verdade e a mentira, o céu e o inferno, o amor e o ódio, a sordidez e a beleza humanas...]


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. Revisto em 19 de novembro de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

5 comentários:

Eduardo Estrela disse...

" ainda bem que temos a literatura, uma forma de arte...."

Obrigado Luís e grande abraço.
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

Luís, isto de ter jeito pra escrever tem que se lhe diga, e este «Conto com mural ao fundo» é escrita da boa, como nos tens habituado.
Nos meus tempos de estudante, em análise a textos na "Antologia dos Escritores Portugueses", tinha dificuldade em explicar quando o prof. pedia 'Queiroz explique o que é que o escritor quer dizer com este texto'.
Eu entendia que apenas seria um jeito para escrever, mas na realidade o escritor com o que escreve quer dizer sempre qualquer coisa que está implicitamente no texto.
Pedro Homem de Mello escreveu '...dormi com eles na cama tive a mesma condição..' e queria dizer que quando ia às festas de S. João d'Arga também dormia no chão como o povo.
Assim, Luís, apenas aprecio este belo texto, sem outra análise que seja para além do que está realmente 'contado' de quem padece da próstata
E sobre o tema do conto e continuando a parte da brincadeira, o "Fado da Próstata", de Emanuel Moura, é uma história com piada.

E quanto a hienas.
Em Nova Lamego, quando fazíamos segurança noturno fora da cidade, passaram próximo de nós dois ou três canzarrões que se deslocavam para os lados donde se juntava o entulho local. Eram lobos, explicavam os nossos soldados fulas, que afinal eram hienas que vinham de longe dumas grutas que havia para os lados de Canjadude.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Ele há coisas do arco da velha. Tu, Luís, acordas e acordas-nos com um conto que parece urdido numa hora de imaginação e criatividade prodigiosas. Mas um conto grande, feito de verdade e ficção, quase um livro. E eu ando para aqui envolvido a tentar escrever um romance, há mais de um ano, sem saber se o consigo envernizar de graça e chama ! Parabéns.
Um grande abraço

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É bom lembrar aqui o Colégio Nuno Álvares, por onde também passaram os nossos camaradas da Guiné Carlos Matos Gomes e Salgueiro Maia...

(...) "Fundado em 1932 na cidade de Tomar, foi tido como um dos mais prestigiados e frequentados estabelecimentos de ensino particular de Portugal à época.

Raul Lopes e Ilídio Correia da Silva Dias foram os dois principais sócios-fundadores e directores do Colégio Nun´Álvares de Tomar que muito contribuiu para a cidade de Tomar, Portugal. Instituição esta assente na firma Sociedade Lopes, Correia e Cia., Lda, liderada pelos dois.

Este estabelecimento de ensino privado era na verdade composto por dois colégios: O Masculino e o Feminino.


(...) Raul Lopes dirigiu com carisma a secção masculina do mesmo, enquanto a Olga Marçal Correia da Silva (...) fez o mesmo na secção feminina do Colégio - Com rigor e autoridade que souberam impor.

"É preciso lembrar que até 1975 o ensino em Portugal segregava os discentes por sexo, além de outros factores socio-economicos e políticos.

"Sendo considerado um dos melhores estabelecimentos de ensino particular de Portugal, os métodos pedagógicos empregues nos Colégios, eram austeros. A sua reputação não se ganhou pelo facto de muitas vezes ter sido o último reduto e tábua de correcção (e até de salvação) para muitos alunos, mas tinha a valia mais de poder receber em regime de internato muitos alunos da ex-colónias e dos países da Diáspora portuguesa.

Os Colégios Nun'Álvares de Tomar, Masculino e Feminino, por meio da sua firma Sociedade Lopes, Correia e Cia., Lda foram pioneiros na internacionalização e globalização, recebendo ao longo de mais de 53 anos milhares de alunos de todo o mundo. E o fruto do seu labor encontra-se espelhada em toda a sociedade portuguesa e no estrangeiro, havendo figuras de destaque em praticamente todos os sectores, desde o político ao militar, passando pelo jurídico, artístico, cultural e científico: Vasco Pulido Valente; Manuel Peralta Godinho e Cunha; Camacho Costa; entre outros.

Em Novembro de 1959, o Colégio fundou a sua própria Revista, intitulada CNA, das Artes, Letras, Ciências e Cultura, aberta à colaboração de professores (...) e alunos."...)

Fonte: Wikipedia > Colégio Nun'Álvares de Tomar

https://pt.wikipedia.org/wiki/Col%C3%A9gio_Nun%27%C3%81lvares_de_Tomar

Tabanca Grande Luís Graça disse...

António, obrigado pelo teu comentário... Mas deixa-me que te diga que escrever um conto, bom ou mau, não é difícil, está ao alcande de qualquer um de nós. O desafio é, como no teu caso, um gajo abalançar-se a escrever um romance, construir enredos e personagens complexas, documentar-se (como tu estás a fazer), etc....

A nossa imaginação e a criatividdae são limitadas. A mim falta-me o tempo, a disciplina e a perseverância que tu, felizmente, tens. Confio em ti, confio nesse livro que está na forja. Tens talento, motivaçáo e garra. Um alfabravo. Luis

PS - Sou muito perfeccionista. Todos estes contos que aqui têm saído, tèm sofrido muitas revisões. Contista, romancista, poeta, etc., nunca está contente com a "versão final" (o que às vezes pode ser paralisante).