1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade
2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"
3. O movimento de concentração hospitalar
II Parte
4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar
4.1. O provedor
4.2. O almoxarife
4.3. O hospitaleiro e o vedor
4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira
5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar
Artigo originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor,
4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar
4.1. O Provedor
À frente do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS) (também conhecido na cidade pelo Hospital dos pobres) estava o provedor, o official principal, que deveria ser "pessoa honrada, e de bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" (Regimento...,1984: 35).
De facto, por ser "couza tam grande, e de tão grande maneo" (sic), o hospital deveria ser administrado com "muy grande recado", tanto no que tocava ao "serviço de nosso Senhor", como no que dizia respeito à "conservação da mesma Caza" que - sublinha enfaticamente o outorgante do seu regimento - foi "feita para obras de piedade, e de serviço de Deoz " (Regimento...,1984: 35). Daí o provedor dever "ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos".
A avaliar pelo menos pelo espírito e letra do citado regimento as principais funções do provedor (Quadro 2, em baixo) não seriam então muito diferentes daquelas que hoje em dia são atribuídas à actual figura do presidente do conselho de administração dos nossos hospitais.
Repare-se que a preocupação em atribuir explicitamente ao provedor a função de zelar pelo cumprimento da missão do HRTS enquanto instituição. Mais concretamente:
- Assegurar a realização da triagem dos doentes, de modo a que no hospital não fossem admitidos doentes incuráveis ou vítimas da peste (estes últimos serão posteriormente referenciados para a Casa da Saúde, em Alcântara, nos arredores da cidade);
- Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não pudessem deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios;
- Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas (um problema que se vai agravar na Lisboa das Descobertas);Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes.
A partir de 1564, com a passagem da administração do hospital para a Misericórdia de Lisboa, o título de provedor passa a ser substituído pelo de enfermeiro-mor:
Essa tradição irá manter-se até 1913, ano da criação dos Hospitais Civis de Lisboa e da extinção do cargo de enfermeiro-mor;
Em 1913, a nova primeira figura do hospital passa a chamar-se director.
Em 1927, em plena ditadura militar, o cargo de enfermeiro-mor é restabelecido e manter-se-á durante o Estado Novo (Graça, 1996).
O mesmo Capítulo III do Regimento do HRTS define a área de influência do estabelecimento, o qual devia cobrir a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".
Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo terror da peste.
4.2. O Almoxarife
O almoxarife - que devia ser "homem de bem, e de fiança, e bemcriado" (Capº VIII, pp. 57 e ss.) estava encarregue fundamentalmente dos seguintes funções:
- Contabilidade e tesouraria (cobrança de receitas, em dinheiro e em géneros, pagamento de despesas, incluindo os vencimentos e salários, ou seja as "tenças, e mantimentos dos Officaes e Capellaes, e mercieiros e todas as outras pessoas q no dito Esprital servirem", p. 58), no que era auxiliado por um escrivão;
- Aprovisionamento do hospital, ou seja, o "carrego de (...) comprar todas aquelas couzas q se houveremm de comprar por grosso, e em quantidade".
O regulamento vai ao pormenor de estipular que o almoxarife "não faça despesa de nenhuma couza grande nem pequena, salvo por assinados (...) e mandados do Provedor" e na presença do "Escrivãoq temos ordenado da receita e despeza do dito Almoxarife" (p. 58), "sob pena de perdimento do Officio e mais qualquer outra q for nossa merce" (p. 57).
Este escrivão seria já um precursor do moderno contabilista. Competia-lhe fazer a escrituração de três livros diferentes:
- "Terá livro bem decracrado de todas as rendas, bens propriedades, e fazenda qualquer outra" do hospital bem como o nome daqueles "a quem sam aforadas, e emprazadas", etc. (Capº VIII, p. 61);
- Terá ainda um livro da despesa diária;
- Bem como um livro de registo anual de "todolos meninos Engeitados" (p. 62).
Esta figura é distinta do outro escrivão (tabelião ou protonotário) a que se refere o Capº I, "que ha de haver (...) dante o Provedor do dito Esprital". Não era residente no hospital e nem sequer tinha direito a remuneração:
"Este não hade haver mantimento algum pelo Proveito do seu Officio, hade escrever em todolos feitos q se tratarem perante o Provedor, fara as Escrituras demprazamentos das propriedades e todo o mais q a isto pertencer, segundo q agora já o faz" (p. 20).
4.3. O Hospitaleiro e o Vedor
A minúcia do regulamento é de tal ordem nem sequer deixou de fora as funções de categorias de pessoal que corresponderiam hoje ao agrupamento do pessoal operário e auxiliar dos nossos estabelecimentos hospitalares, tais como:
- o despenseiro (Capº VI),
- a costureira ( ou alfayata ) (Capº XIII)
- e a lavadeira (Capº XIV).
Ainda ao nível dos serviços de apoio, havia a figura do vedor (Capº V, p. 51) a quem cabia "a principal parte do Governo do dito Espitral, e da boa Ordem e Conservação das couzas delle". As suas funções seriam, pois, de intendência e supervisão dos serviços hoteleiros (e, em particular, da alimentação dos doentes e do pessoal).
Parte das tradicionais funções da gestão hoteleira também eram da competência do hospitaleiro (ou espritaleiro) (Capº XI) e da hospitaleira (ou espritaleira) (Capº XV).
Essas funções eram basicamente as de administrar o serviço de rouparia e de limpeza, mas também de supervisão e avaliação do serviço de enfermagem:
"O dito Espritaleiro he obrigado a prover muy a meude e ao menos duas vezes no dia se os Enfermeiros cumprem o q por bem de seus Officios devem, e se fazem de dia, e de noute as piedades, e serviço dos doentes, q por bem de seus Regimentos sam obrigados, segundo a necessidade, q a cada hum tever, e na quello q vir, q não cumprem segundo sua obrigaçam os amoestará, q se emmendem, e fará saber ao Provedor o que não fizerem bem feito, ou de todo não cumprirem para nisso prover, e fazer como o cumpram, e fação o q nisso são obrigados" (pp. 78-79).
O hospitaleiro tinha ainda o "carrego da Caza dos pedintes, andantes, q se hamde recolher na Caza q para elles he ordenada no dito Esprital" (p. 80).
4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira
Quanto aos praticantes da arte de curar, ou prestdaores de cuidados de saúde (como diríamos hoje), o regulamento do hospital previa originalmente as seguintes categorias:
- Um físico
- Dois cirurgiões
- Dois ajudantes de cirurgião
- Um boticário
- Três ajudantes de boticário
- Doze enfermeiros (dos quais três com a categoria de enfermeiro-mor)
- Um barbeiro-sangrador
- Uma cristaleira (mulher encarregue de ministrar clisteres)
Todos eles deveriam residir no Hospital, à exceção de um dos cirurgiões e do barbeiro-sangrador.
Ao físico cabia fazer a "visitaçãode todos os doentes (...), duas vezes no dia (...), pela menhã em sahindo o sol, e à tarde até às duas" (Capº IV, p.47), tanto nas enfermarias como nas "outras casas".
Este capítulo é notável pela concepção que já havia na época do que deveria ser a organização do trabalho em equipa no hospital. Na prática, não sabemos como as coisas funcionavam. Em todo o caso, na visita diária aos doentes internados, o enfermeiro-mor (categoria equivalente ao actual enfermeiro-chefe) levava uma "taboa" donde constava o nome e o número da cama dos enfermos:
"Feita a vezitação dos pulsos dos doentes" e vistas "as agoas [ urina ] de cada hum q lhe serão dadas pelos Enfermeiros pequenos" (prática a que se resumia, então, e no essencial, o diagnóstico clínico), o físico "bem considerando (...) sobre o remedio de cada hum paciente, ordenará as mezinhas de cada um, segundo q lhe melhor parecer, e as mandará compoer, e ordenar ao Boticário ".
Este último, por sua vez, "traerá consigo huma imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada" na qual o Físico (ou o boticario, se "for melhor Escrivão, e mais despachado" do que aquele) "assentará as receptas e mezinhas, q ordenar para cada hum doente em titulo apartado", isto é, "purgas apartadas por sy e de todas outras qualidades de mezinhas, debaxo doutro titutlo", por "serem tam desvariadas (umas) das outras". De qualquer modo, o físico devia "assinar (...) na dita imenta as ditas receptas" (p. 48).
O enfermeiro-mor, por sua vez, registava na respectiva "tavoa (...) debaixo do titulo" de cada doente, a dieta prescrita pelo físico, "para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador". Esta prescrição era igualmente assinada pelo físico ou pelo cirurgião.
O físico tinha ainda que fazer o que hoje chamaríamos o serviço de banco de urgência (ou, talvez melhor, de consulta externa), nomeadamente "ver todolos enfermos q á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, q para suas curas lhe parecer compridouro". Devia ainda "vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, q á Fizica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor q poder na casa apartada, q para oz ditos doentez hordenamos no dito Esprital" (p.49).
Notável é também, para a época, a preocupação do legislador com a eficiente utilização dos recursos, e nomeadamente dos medicamentos, obrigando o físico a "sempre prover a imenta das receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, por q ás vezes se manda fazer huma mezinha, e o paciente a não toma". Ou seja, já na época se punha o problema da aderência à terapêutica e da sobremedicação. Ora, para que tal não aconteça, o médico "proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor q se possa fazer e falloha de maneira q se não possa fazer couza indevida e seja tudo aproveitado como devem " (p. 49).
O regimento do físico aplicava-se igualmente ao cirurgião (Capº XII). No hospital estava prevista existência de dois celorgiaes, um dos quais residente e com funções de ensino:
Que "o dito Celorgiam q hade viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mossos q hade ter, e q hamde ser pagos das rendas do Esprital, para aprenderem theorica, e pratica , e poderam ficar ensinados para o serviço do dito Esprital" (p. 83). Esta disposição prefigura já a criação da primeira escola de cirurgia do país e do internato complementar de cirurgia.
Os dois cirurgiões eram, tal como o físico, obrigados a visitar duas vezes ao dia "todos os enfermos (...) q de Cilurgia ouverem de ser curados" (p. 83).
O enfermeiro-mor (Capº X), que chefiava cada uma das enfermarias, tinha "cuidado principal da cura, e da vizitação dos doentes", devendo ser "homem caridoso, e de boa condição, e sem escândalo". Na época, e durante muito tempo, os enfermeiros eram recrutados entre o pessoal religioso, nomeadamente das ordens hospitaleiras.
Os enfermeiros tinham o "carrego de todo o serviço dos doentes" (que deviam servir "com toda caridade , e amor q devem por Deoz, e por os proximos"), incluindo a higiene pessoal do doente, a muda das camas, a limpeza das enfermarias e dos "ourinoes". Esta última (duas vezes por semana no verão e uma por semana, no inverno) era sobretudo uma tarefa dos seus ajudantes (ditos enfermeiros pequenos ), bem como dos escravos (que, trazidos de África, chegaram a constituir 10% da população de Lisboa da época).
Nesta altura, já existia (ou estava previsto) o trabalho nocturno e por turnos em enfermagem, tal como se depreende deste capítulo: "Item sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos (...) de Vellarem todas as noutes agyros todos os Enfermos de suas Enfermarias" (p. 71).
Além disso, retirar, amortalhar e enterrar os mortos com discrição e dignidade era uma responsabilidade da enfermagem.
A administração aos doentes das "purgas, lamedores, unções" e demais mezinhas, prescritas pelo médico (a que se resumia, no essencial, a panóplia terapêutica da época), também era tarefa dos enfermeiros.
O fornecimento desses produtos ("couzas do repairo dos doentes") era decidido pelo provedor e pelo físico, de acordo com o que era de "mais proveito para os doentes, segundo as suas paixões, e Enfermidades" (p. 75).
Competia ainda ao enfermeiro estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).
A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937. 21-22).
Por fim, era esperado que o enfermeiro cumprisse as suas tarefas, não apenas com "muy grande cuidado", como também "com toda boa vontade, e mansidam, e sem escandalo dos doentes, e com toda a caridade, e consolando-os em suas paixões, e muy ameude lhe lembrando, q se encomendem a Nosso Senhor e a nossa Senhora" (p. 76).
Pelo perfil exigido a alguns dos oficiaes do esprital, presume-se que, pelo menos, o hospitaleiro, a hospitaleira, os enfermeiros e as enfermeiras fossem originariamente recrutados entre o pessoal das ordens religiosas. O restante pessoal seria laico.
Noutros estabelecimentos hospitalares de menor dimensão e importância, o número de oficiais (grandes e pequenos) era mais reduzido (caso de Coimbra, Porto, etc.)
Na cidade de Coimbra, e antes da fundação do primeiro hospital geral, em 22 de Outubro de 1508, na sequência da política de centralização de D. Manuel I, terão existido pelo menos 17 pequenos estabelecimentos assistenciais (na maior parte, hospícios e albergarias), segundo a pesquisa documental feita por Ferrão (199?). Coimbra era então uma cidade que, após a reconquista cristã, em 1064, se irá desenvolver à sombra do Mosteiro de Santa Cruz (fundado em 1130) e, mais tarde, da Universidade (que se instala definitivamente nas margens do Mondego em 1531)
O Hospital da Conceição e da Convalescença, em Coimbra, que resultou da fusão dos demais estabelecimentos assistenciais até então existentes, com excepção do Hospital e da Albergaria de Milreus e da Gafaria de S. Lázaro, situava-se na Praça Velha. Com portal virado para poente, sobrepujando uma varanda de parapeito, possuía três naves. Mais tarde, começou a ser conhecido por Hospital da Praça (Ferrão, 199?, p. 73).
De menor dimensão do que o HRTS, regia-se por um regulamento semelhante, embora as necessárias adaptações. Dirigido por um provedor, de nomeação régia, o hospital de Coimbra tinha também menor número de oficiais do que o de Lisboa (Ferrão, 199?):
- O hospitaleiro exercia as funções inerentes à enfermagem, além de ter a seu cargo a despensa e a tesouraria;
- Ao escrivão competia a contabilidade hospitalar e a fiscalização património;
- Quanto ao capelão, além da assistência religiosa, tinha também a seu cargo o registo dos doentes.
"O tradicional arcão ferrageado, onde se arrecadavam os dinheiros da instituição, possuía três chaves das quais, uma, estava nas mãos do Provedor e as restantes, uma nas mãos do Hospitaleiro e a outra nas do Escrivão" (Ferrão, 199?74).
O hospital tinha, pelo menos, um físico que, durante o dia, devia visitar os doentes, pelo menos duas vezes. O recurso ao barbeiro-sangrador e ao cirurgião era feito de acordo com as necessidades. Também não havia botica própria.
Em 1548, por provisão régia de 24 de Junho, a administração do hospital geral de Coimbra é confiada aos cónegos seculares de S. João Evangelista (ou Lóios, como eram popularmente conhecidos). O seu provedor passou então a ser recrutado entre gente desta congregação. Vinte e cinco anos depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra, o Hospital da Conceição e da Convalescença passa a funcionar como hospital escolar.
Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ainda em 1830 existia a figura da cristaleira, no Hospital de São José, e durante muito tempo foi um ofício mecânico exercido cumulativamente com o de parteira. No Séc. XVIII uma cristaleira chegava a fazer 400 clisteres por mês!5. Diferenciação Sócio-Económica do Pessoal Hospitalar
As diferenças de estatuto do pessoal hospitalar eram já visíveis ao nível remuneratório (vd. Quadro I, em anexo):
- No ano de abertura do HRTS, em 1504, o leque remuneratório, em dinheiro, seria originalmente de 15 para 1;
- A remuneração média anual rondaria os de 3$800 réis (Máximo 30 mil, mínimo 2 mil);
- E o total dos encargos com os seus mais de cinquenta oficiais grandes e pequenos ultrapassava os 250$000 por ano, não contando com outros custos com o pessoal que incluíam formas de pagamento indirecto, em géneros (alojamento, alimentação e até vestuário).
De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal do HRTS deveriam representar cerca de 15 por cento do total.
O orçamento global deste hospital deveria, pois, ser superior a 1600$000 réis; e mais de 60% das receitas seriam muito provavelmente consagradas a custear os encargos com a alimentação tanto dos doentes como do pessoal. Sabemos que, com o tempo, as despesas aumentaram exponencialmente, e o nº oficiais grandes e pequenos terá atingido as 8 dezenas em meados do séc. XVIII (Alberto et al, 2021).
De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:
- A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
- A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS;
- Refira-se ainda a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, que exercia funções de ajudante de lavadeira e que tinham apenas direito a pagamento em géneros (alimentação, alojamento e vestuário).
O provedor (o equivalente hoje ao presidente do conselho de administração do hospital) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito nem a alojamento nem a alimentação, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira, os quais eram pagos à jorna)
O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).
Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).
O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.
No que respeita ao pessoal médico e paramédico, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião, em termos de estatuto remuneratório. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o primeiro capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador. Estranha-se, por outro lado, a não existência de um cristaleiro.
O regimento também é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).
Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.
Referências Bibliográficas (a rever)
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CORREIA, F.S. (1981) - Misericórdias. In: Dicionário de História..., op. cit.. 1981. Vol. IV, 1981. 312-316.
CORREIA, F.S. (1984) - Prefácio. In: Regimento..., op. cit. 1984
Dicionário de História de Portugal (Dir. de J. Serrão) (1981). Porto: Figueirinhas.
Dicionário da História de Lisboa (Dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena). Lisboa: 1994.
FERRÃO, A. S. S. (199?) - Os hospitais de Coimbra. Gestão Hospitalar. 199? 73-79.
FERREIRA, M. E. C. (1981) - Capital. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 462-465.
FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa (Textos, T 1238 a T 1242).
LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, 2 Volumes. Lisboa: D. Quixote; Ordem dos Médicos (1ª ed., 1899).
NETO, M. L. A. M. C (1981) - Assistência Pública. In: Dicionário de História..., op. cit., Vol. I. 1981. 234-236.
PINA, L. (1938) - Aspectos da vida médica portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Casa Holandesa.
Regimento do Hospital de Todos-os-Santos (1984). Lisboa: Hospitais Civis de Lisboa (facsimile da 1ª edição, 1946).
(Importante, para a revisão que estou a fazer, o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia. Estamos ainda a lê-lo.)
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(a) Fonte / Source: Versão adaptada e actualizada de: GRAÇA, L. (1994) - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994) 26-31.
Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional
|
Unidade | Total | ||||
Pessoal dirigente | |||||
Provedor | 1 | 30$000 | 30$000 | A | "Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo" |
Almoxarife | 1 | 12$000 | 12$000 | A | "Homem de bem, e de fiança, e bemcriado" |
Escrivão | 1 | 12$000 | 12$000 | A | |
Protonotário | 1 | ? | ? | ||
Hospitaleiro | 1 | 12$000 | 12$000 | A+B | "Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança" |
Hospitaleira | 1 | ? | ? | A+B | "Muito diligente, e destra no serviço" |
Vedor | 1 | 8$000 | 8$000 | A+B | "Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber" |
Sub-total | 7 | 74$000 | |||
Pessoal de capelania | |||||
1º Capelão | 1 | 6$300 | 6$300 | A+B | |
2º Capelão | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Ajudante | 2 | 2$000 | 4$000 | A+B | |
Sub-total | 4 | 16$300 | |||
Pessoal médico e paramédico | |||||
Físico | 1 | 18$000 | 18$000 | A | |
Cirurgião interno | 1 | 12$000 | 12$000 | A | |
Cirurgião externo | 1 | 6$000 | 6$000 | ||
Ajudante de cirurgião | 2 | 2$000 | 4$000 | A+B | |
Boticário |
| 15$000 | 15$000 | A | "Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado" |
Ajudante de boticário | 3 | 3$000 | 9$000 | A+B | |
Enfermeiro- mor (ou chefe) | 4 | 6$000 | 24$000 | A+B | "Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo" |
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar) | 7 | 2$000 | 14$000 | A+B | |
Enfermeira-mor (ou chefe) | 1 | 3$000 | 3$000 | A+B | |
Enfermeira auxiliar | 1 | 2$000 | 2$000 | A+B | |
Barbeiro-sangrador | 1 | 3$000 | 3$000 | ||
Cristaleira | 1 | 3$000 | 3$000 | A+B | |
Total | 25 | 113$000 | |||
Pessoal operário e auxiliar | |||||
Despenseiro | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Cozinheiro | 1 | 6$000 | 6$000 | A+B | |
Ajudante de cozinheiro | 3 | 3$000 | 9$000 | A+B | |
Porteiro | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Costureira | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Lavadeira | 1 | 4$000 | 4$000 | A+B | |
Ajudante de lavadeira | 1 | (a) | (a) | A+B+C | |
Atafoneiro | 1 | (b) | (b) | ||
Amassadeira | 1 | (b) | (b) | ||
Forneira | 1 | (b) | (b) | ||
Outros (eventuais) | 4 | 3$000 | 12$000 | A+B | |
Sub-total | 16 | 45$000 | |||
Total geral | 52 | 248$300 |
Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário
Quadro 2 - Funções do provedor do HRTS
Funções | Descrição |
Gestão financeira | Gerir as receitas (rendas, doações, exploraçãodirecta) e as despesas (tenças, alimentação, mesinhas) |
Gestão patrimonial | Arrendar, aforar e emprazar o património Reparar e conservar os equipamentos e instalações |
Controlo contabilístico | Autorizar, assinar e fiscalizar todos pedidos de despesa, e nomeadamente os do almoxarife Conferir e assinar semanalmente os respectivos livros |
Poder hierárquico e disciplinar | Exercer o poder hierárquico ("ter toda a superioridade, e mando sobre todos os Officiaes, grandes e pequenos") Admitir, avaliar, suspender e substituir os funcionários Manter a ordem e a disciplina, bem como controlar a assiduidade do pessoal |
Triagem dos doentes | Assegurar que seja feita a triagem dos doentes, de modo a que no hospital não sejam admitidos doentes incuráveis, de acordo com o exame médico |
Garantia de acessibilidade | Assegurar a acessibilidade dos doentes que, por dependência, abandono ou pobreza, não possam deslocar-se ao hospital pelos seus próprios meios Receber, proteger e mandar educar as crianças abandonadas |
Qualidade dos cuidados | Garantir e avaliar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes ("de modo a que sejam muy curados, e providos em suas necessidades, e consolados com boas palavras ") Participar na visita diária aos doentes |
Prevenção dos riscos | Prevenir as infecções hospitalares, através nomeadamente da permanente limpeza e asseio das enfermarias |
Eficiência | Assegurar a eficiente utilização dos recursos (incluindo os medicamentos e outros materiais consumíveis) |
Fonte: Adapt. de Regimento do HRTS (1984)
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Último poste da série > 12 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (252): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - Parte I
3 comentários:
O HRTS, um dos maiores hospitais da cristandade de então, antecipa, em 300 anos, a criação do "Hospital Colonial", criado em 1902 por carta régia de Dom Carlos I (a par da "Escola de Medicina Tropical" com o qual se articulava; ambos conmeçaram a funcionar numa ala poente da Cordoaria). Mais tarde, "Hospital do Ultramar", chama-se hoje... Egas Moniz,
O HRTS devia acolher "todos os doentes do mar" (sic). Em terra, a sua área de influência era Lisboa e arredores (num raio de ação de 5 léguas, o que na prática queria dizer que se estendia da região Oeste até à península de Setúbal).
Notável e absolutamente pioneira visão: estamos em 1504, em plena época da expansão marítima portuguesa!
Dez léguas e não cinco... Não sei exatamente se eram léguas marítimas... e qual a sua equivalência hoje...
Sobre o "Hospital Colonial"... Vd.:
2 de novembro de 2015
Guiné 63/74 - P15316: Historiografia da presença portuguesa em África (65): Do Hospital colonial (1902) ao Hospital do Ultramar (1958) e ao Hospital Egas Moniz (1974)
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