quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25978: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (9): a última foto do cap art Manuel Guimarães, cmdt da CART 1690, tirada instantes antes de morrer, na estrada Geba-Banjara, vítima de uma mina A/C, em 21 de agoto de 1967


Guiné > Região de Bafatá > Estrada Geba-Banjara > 21 de agosto de 1967 > A última foto do capitão: "A mina rebentou. O capitão e o Domingos Gomes, à esquerda, morreram.  Eu (de faca) e o Laminé Turé (à direita) ficámos feridos". Foto de um furriel da companhia.  



Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > O cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães, primeiro comandante da CART 1690 (Geba, 1967), então com 29 anos. Morreu, em combate, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C. Foi um dos 26 capitães que morreram no TO da Guiné. (55,3% do total dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar. mortos nma guerra do Ultramar.) (*)

Entrou para a Escola do Exército (hoje Academia Militar), ni último trimestre  de 1954. Esteve na Índia como alferes e depois tenente, entre maio de 1959 e março de 1961. (Esteve, pois, também como prisioneiro de guerra na Índia). Tinha chegado ao CTIG em 15 de abril de 1967. Era a sua primeira comissão em África, como capitão.

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  A foto de cima é a última do cap art Manuel Guimarães (1937-1967), tirada uns minutos ou uns instantes antes  de morrer, em 21 de agosto de 1967. O nosso saudoso A. Marques Lopes fez dele (o "capitão Mendonça")  uma das principais personagens do seu livro de memória, "Cabra Cega" (2015).  

Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes nos deixpou escrito, nomeadamente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (**).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 11 de maio de 2023, às 23: 45.
 
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes.

No livro, na edição de 2015,  o alf mil Domingos Maçarico é o Zé Pedro. O alf mil A. Marques Lopes é o Aiveca. O cap Manuel Guimarães é o Mendonça. O seu guarda-costas, o Calmeiro, é o Domingos Gomes. O guarda-costa do Lopes, o Laminé Turé, é o Carmelita. 

O comandante do batalhão a quem o cap art Manuel Guimarães "queria oferecer" a mina A/C, levantada por ele, não vem identificado. A CART 1690 pertencia ao BART 1914 (que teve  três comandantes: Ten cor art Artur Relva de Lima; ten cor inf Hélio Augusto Esteves Felgas: e ten cor cav António Maria Rebelo. Mas no setor de Gaba, de abril de 1967 a novembro de 1968,  ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1877 e depois do BCav 1905 e ainda do BCaç 2856.
 
Mas em agosto de 1967 a CART 1690 dependia do BCAÇ 1877, sediado em Bafatá, e tendo como comandante o ten cor inf Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas. O Comando de Agrupamentpo era o nº 1980  (Bafatá, fev67/nov68) (cmdts: cor inf José Frederico Porto Assa Castel-Branco; e ten  inf Hélio Augusto Esteves Felgas).
 
O A. Marques Lopes, na sua página do Facebook, transcreveu este episódio, por duas vezes, em 15 de maio de 2019, e uns meses antes de morrer (de cancro no estômago), em 21 de agosto de 2023 (56 anos depois!).

O excerto que transcrevemos corresponde, grosso modo, às pp.  434-439 (com algumas alterações e pequenos cortes: em 2015, no livro, as personagens sáo identificadas por nomes fictícios; nos  excertos publicados no Facebook, a narrativa é feita na primeira pessoa do singular).


A Mina , 21 de Agosto de 1967

por A. Marques Lopes (1944-2024)

 
(... ) O  [Domingos] Maçarico saiu com a coluna no dia seguinte, logo de manhã muito cedo. Eu e o Guimarães ficámos no bar-barraco a tomar o pequeno-almoço juntamente com dois furriéis. O do capitão era a habitual fresquíssima garrafa de vinho verde e uns cachorros. Maravilha, dizia ele, o frigorífico a petróleo até estava a funcionar. E ele, assim fresquinho, bebia-o mesmo bem. Eu estava agarrado a uma sandes de queijo que acompanhava com uns goles de café.

Eis se não quando chega um Unimog e vimos o Maçarico saltar dele todo agitado:

− Meu capitão, encontrámos uma mina  comunicou, ainda afogueado.

 Deflagrou? 
− perguntou o capitão.

− Não. Os picadores detctaram-na e agora está tudo lá parado.

 
− Então vou lá ver isso aqui com o Lopes. Vamos.

Nem me perguntou se queria ir ou não. Chamou o seu guarda-costas. Fiz o mesmo. Fomos no mesmo Unimog até para lá um bocado depois de Sare Banda, a tabanca dos milícias. Quando chegámos vimos a coluna parada. Os furriéis, alguns soldados e os milícias picadores estavam à volta da mina. Era outra TMD. O capitão ficou excitado, parecendo uma criança a quem deram um brinquedo desejado. Deu ordem para se afastarem todos para longe.

− Só eu e o alferes Lopes mais os guarda-costas é que ficamos aqui. Vamos ver isto.

Ajoelhámo-nos os quatro à volta da anticarro.

− Lopes, esta vamos levantar e vamos oferecê-la ao nosso comandante de batalhão. Além disso isto dá dinheiro.

Estava todo entusiasmado mas eu não sabia quanto é que dava e não estava nada interessado em ganhar dinheiro dessa maneira. Como estava lixado com os mandões do batalhão e do Agrupamento, porque me estavam sempre a mandar para a boca do lobo, também não estava nada virado para lhes oferecer prendas.
Mas, enfim, a prenda era dele, que se lixasse. Peguei na minha faca de mato e comecei a escavar à volta da mina. Era uma TMD, soviética.

Chegou-se, entretanto, um furriel ao pé de nós e tirou uma fotografia. O capitão enxotou-o:

 Já disse para saírem daqui!

Continuei a escavar. Quando já não havia terra nenhuma à volta da mina, achei por bem dizer:

− Não vejo nada aqui à volta, meu capitão. Mas eu não sou especialista nestas coisas e parece-me que é melhor rebentá-la com uma granada ou puxá-la de longe com uma corda. É melhor não arriscar.

−  Nada disso, pá. Vai ser um ronco e quero oferecê-la ao comandante de batalhão. Vamos levantar isto.

Estava obcecado pela prenda ao comandante e devia estar arrependido de não ter feito isso com a outra. Aquilo podia estar mesmo armadilhado, até me tinham dito que, muitas vezes, só quem montou a armadilha é que sabe como está. E eu, ainda por cima, não percebia nada daquilo. Tinha de o avisar novamente.

− Ó meu capitão, não faça isso. É um grande risco que é melhor não correr. Atamos uma corda e puxamos de longe com um Unimog.

 Deixe-se disso. Vamos levantar.

− Então, não sou eu que pego nisso  − disse decididamente, levantando-me.

Lamine Turé, o meu guarda-costas, já se tinha levantado também, estava agora ao pé de mim e olhava-me com aprovação.

Ficou o capitão e disse ao Domingos Gomes, guineense de Bissau e seu guarda-costas, para pegar na mina. Foi quando eu e o Lamine recuámos uns passos.

Foi outra dimensão. O trovão e a faísca rápidos que me lançaram no vazio, sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não senti dor ou sofrimento, nem tive qualquer pensamento. Era a forma rápida de sair da vida para o nada.

Não soube nem deixei de saber o que se passara, não soube se morrera ou se ficara ferido, não soube se fui para o inferno ou para o céu, não vi o velho das barbas nem o cornudo de rabo comprido. Houve momentos em que não existi. 

Nem soube quanto tempo tinha sido quando deu por mim deitado no chão da mata, fora da picada.

Levantei-me e vi ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegada ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos. Mais à frente estava o Laminé, que se tinha levantado e parecia não ter nada. Perguntei-lhe como estava. Disse-me que só tinha uns estilhaçositos. Fui até ao buracão da mina, olhei para o fundo e viu lá bocados de uma granada de morteiro. Tinha sido assim, um rebentamento por simpatia. Vários elementos da coluna tinham-se aproximado. O Maçarico olhou para ele estarrecido.

− Estás a deitar sangue dos ouvidos.

Ouvi-o mal mas ainda percebi e levei lá as mãos. Vieram cheias de sangue. Vi também que o poncho que envergara tinha desaparecido, só tinha um bocado à volta do pescoço.
 
− E o guarda-costas do capitão? − perguntei-lhe.

− Já o procurei mas não o encontro 
− respondeu o Maçarico

Decidimos colocar o capitão em cima dum poncho e levá-lo para a sede do batalhão, onde havia um médico. Na nossa companhia não havia. Ainda pensámos que podia estar vivo. Por isso vimos que não havia tem po de procurar o homem que levantara a mina, o qual, concluímos, devia ter os bocados espalhados no meio da mata. Depois se veria.

Ouvia-me ao longe, mas sei que fui todo o caminho a chamá-los turras filhos da puta, cabrões, hei-de fodê-los… e montes de impropérios, misturados com várias lágrimas.

O médico do batalhão disse que o capitão estava morto. Viu o meu guarda-costas e confirmou que tinha dois pequenos estilhaços, retirou-os e tratou dele. Com dificuldade, mas ouvi-o a dizer-me que tinha dois estilhaços no peito, tirou-mos e olhou-me:

Estes não têm importância. Mas olhe que você teve uma sorte do caraças. Há um que lhe passou na virilha direita, deixou aí um traço mas não atingiu nada de importante. 

Sorriu-se mas eu não achei piada nenhuma.

− De qualquer modo tem de ser evacuado porque tem os dois ouvidos furados.

E fui. Veio um helicóptero e levou-me para o HM241, em Bissau. Fiquei lá uma semana, tratado a mais de 15 comprimidos por dia. Hão-de ter-me feito bem a alguma coisa, não duvido, mas ao fim de alguns dias o meu estômago nem a água aguentava. 

No fim dessa semana fui evacuado para o HMP, para Lisboa. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

_____________

Notas do editor:

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Esta história tirou-me o sono... Havia pormenores que eu desconhecia ou de que já náo estava lembrado quando li o livro "Cabra-cega", em 2015...

Não vou (nem posso, face ao nosso "Livro de Estilo") fazer "juízos de valor" sobre o comportamento de um camarada nosso, comandante operacional, oficial do QP, antigo prisioneiro de guerra na Índia...

Mas se eu fosse professor de gestão de comportamento organizacional na Academia Militar, eu faria um "case study", um "estudo de caso", com este precioso material que o A. Marques Lopes nos deixou, incluindo esta arrepiante foto que um furriel da CART 1690, desconhecido, tirou, antes da deflagração da mina A/C, armadilhada, e que matou dois militares e feriu gravemente um outro...

Convido, entretanto, os nossos leitores a enriquecerem a leitura deste poste... Já não podemos ressuscutar os mortos, é verdade, mas podemos, isso sim, homenager a sua memória e ajudar os vivos, e nomeadamente os jovens militares que se estão a formar hoje...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ezxcerto da ficha de unidade (CART 1690 / BART 1914, Geba e Bissau, 1967/69):

(...) A CArt 1690 seguiu em 17Abr67 para Geba, tendo assumido em 20Abr67
a responsabilidade do subsector de Geba, com destacamentos em Cantacunda,
Camamudo, até finais de Mai68, Banjara, até princípios de Out68, Sare Banda,
a partir de princípios de Jan68, Sare Gana, a partir de finais de Abr68 e Sinchã
Sutú, de princípios de Jan68 a finais de Abr68, ficando sucessivamente integrada
no dispositivo e manobra do BCaç 1877 e depois do BCav 1905 e ainda
do BCaç 2856.

Em 04Nov68, foi rendida pela CCaç 2437, por troca, e seguiu para Bissau
a fim de integrar o dispositivo do BCaç 1911, com vista a efectuar a segurança
e protecção das instalações e das populações da área." (...)

Chegou apo CTIG em 15Abr67; regressou à metrópole em 03Mar69. O cap art Manuel Guimarães foi substituído pelo cap mil art Carlos Manuel Morais Sarmento Ferreira. E o alf mil A. Marques Lopes, depois de tratado no HM 241 (Bissau) e HMP (Lisboa), regressou ao CTIG, sendo integrado na CCAÇ 3, em Barro, onde completou a sua comissão de serviço.

A CArt 1690 tem História da Unidade (Caixa n." 82 - 2ª Div/4ª Sec. do AHM).

Alberto Branquinho disse...

Apesar de lhes ter ouvido repetidas vezes referências à morte do capitão, desconhecia as circunstâncias da sua morte, que ela tinha sido causada por rebentamento de mina e somente depois de 4 meses de comissão. Ao que parece, não foram cumpridas as normas mínimas para levantamento de minas.

Carlos Vinhal disse...

Quatro pessoas à volta de uma mina IN é uma multidão.
Eu que levantei uma anticarro TM46, de longe mais "segura" do que estas em madeira, mandei afastar toda a gente, ficando só eu e o Sousa, também especialista em minas e armadilhas, para a neutralizar. Só depois de levantada e de eu remover a espoleta é que o pessoal se acercou de nós.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art Minas e Armadihas

Anónimo disse...

Mais do que o respeito é a admiração pela "coragem" destes homens. Eu não seria capaz de fazer. Estive uma vez numa situação parecida, ( era uma mina anti-pessoal ) e acabei por dar ouvidos aos meus soldados que de longe me tentavam convencer a resolver a situação com um tiro de G3. Ainda bem que o fiz. Olhando para trás penso que o tentar levantar minas era uma estupidez. Mas ... quem sou eu para dar opiniões . Acredito que cada um tirava as decisões que lhe pareciam mais sensatas, penso eu.
João Crisóstomo

Joaquim Costa disse...

Dá que pensar!!!
Levantamos 30 minas (anticarro e antipessoal).
Nenhuma foi levantada a braço.
Uma corda com muito “lastro”, quanto mais longe melhor.
Mesmo assim sempre fui da opinião que nada melhor do que a fazer explodir.
Não há dinheiro que justifique uma vida.
Diz o ditado popular: “O seguro morreu de velho”
Joaquim Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É uma frase lapidar, definitiva e brutal de um outro nosso camarada artilheiro...

9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21435: Fotos à procura de... uma legenda (132): O sapador só se engana três vezes: a primeira, a única e a última (António J. Pereira da Costa)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em 21 de agosto de 1967, uma mina A/C detetada e levantada valia a miserável quantia de 1 conto de reís (ou melhor, mil pesos, que valiam 900 escudos na Guiné)... Depois, a partir de setembro, 2 contos de réis....(mas o prémio não era individual).

13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24063: Roncos que davam prémios (em dinheiro)... mas podiam custar a vida: a deteção e levantamento de minas...

Valdemar Silva disse...

Como é que um Capitão do QP comete um erro destes, primeiro por não dar ordens de como se devia proceder para eliminar uma mina a/c detectada na picada e segundo ser ele próprio a actuar no levantamento da mina para a oferecer.
Com as minas não se brinca, e o resultado foi haver mortos e feridos com a uma parva teimosia.
Estes casos foram considerados mortos e feridos em combate ou em desastre com arma
de fogo?

Valdemar Queiroz