Guiné > Zona leste > Subsector de Galomaro >
Dulombi > CCAÇ 2405 > 1970 > Construção de abrigos. À esquerda, o Al Mil Paulo Raposo. Foto: ©
Paulo Raposo (2006)
Guiné > 1968 >
Mansoa > CCAÇ 2405 > Os Alf Mil Raposo e Felício, dois dos futuros
baixinhos de Dulombi. Foto: ©
Paulo Raposo (2006)
Texto do
Rui Felício, enviado por e-mail de 29 de Agosto de 2006:
Meu Caro Luis Graça,
Há longo tempo que não intervinha no teu blogue. Mas tenho lido com alguma frequência o que por lá vai aparecendo.
Aí vai mais uma
estória engraçada (1) que publicarás se assim o entenderes.
Espero que o encontro sugerido pelo Paulo Raposo [no próximo mês de Outubro, em Montemor-O-Novo] se concretize. Vale a pena estar umas horas no agradável Hotel que ele possui em Montemor-O-Novo.
Um abraço
Rui Felício
Alf Mil, CCAÇ 2405 (1968/70),
Dulombi, Junho de 1970 (2)
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TRANSFERÊNCIA DE CARGA (ou a arte do desenrascanço que a tropa afinal nos ensinou)...
Daí a poucos dias íamos finalmente embarcar em Bissau no Carvalho Araújo para o ansiado regresso…
Tinhamos acabado de receber no Dulombi a Companhia de atónitos
periquitos que, durante uma semana, iam ficar em sobreposição connosco.
Acolhemo-los com o aquele ar superior de guerreiros invencíveis, calejados pelos combates, a pele tisnada dos sóis tropicais, e além das costumadas praxes, meio inofensivas, que exercemos sobre eles, dedicámos-lhes, com a proverbial simpatia característica dos
Baixinhos do Dulombi, um hino de recepção ao
periquito que ainda hoje cantamos em todos os almoços anuais de comemoração que realizamos.
Fui eu o autor da letra (perdoem-me o orgulho ) que, em versos decassilábicos, procurava transmitir aos novatos o que era o dia a dia que os esperava nos confins do mato onde iriam passar dois anos.
O Alf Mil Rijo sacou dos seus dotes musicais até aí ocultos e plagiou uma música que se adaptasse à versalhada que em momento de suprema inspiração eu tinha produzido. É ele que hoje guarda religiosamente essa letra que eu, embora seu autor, não sou já capaz de reproduzir na íntegra (3).
...Mas urgia transferir o espólio da Companhia aos novos... Formou-se então uma equipa para conferir e entregar aos novos as cargas que oficialmente estavam a cargo da Companhia. E por parte dos
periquitos procedeu-se de igual modo para as receber, assinando os respectivos recibos de quitação.
A mim e ao furriel Veiga coube-nos a tarefa, entre algumas outras mais simples, de entregar aos
periquitos os materiais de construção que a nossa Companhia tinha (ou devia ter…) em armazém e que recebera com a exclusiva finalidade de serem usados na edificação de casas para a população que foi deslocada no âmbito do programa de reordenamentos.
No essencial, os materiais de construção a que me refiro eram constituídos por sacos de cimento, chapas de zinco, barrotes de madeira, pregos, ferramentas diversas, etc.
O problema é que os mapas de existências e de movimentação de
stocks exibiam quantidades muito superiores (!!!) às que efectivamente existiam…
E eram mapas assinados pelo Capitão, pelo Sargento Silvano e por mim próprio, regularmente enviados superiormente para os Serviços de Adminsitração Militar em Bissau e, quiçá, em Lisboa.
Estava portanto fora de questão a sua falsificação!
A verdade é que, se os não entregássemos à nova Companhia e esta, como seria natural, se recusasse a ignorar as diferenças, isso redundaria por certo num demorado e complicado processo de inquérito para apuramento de responsbilidades, seguido de um outro de cariz disciplinar para punição dos responsáveis.
Resumindo: Uma grandessissima chatice a meia dúzia de dias do embarque!
Sei que vos baila no pensamento a natural pergunta:
- E como foram gastas tão significativas quantidades de materiais de construção, se não foram aplicadas na totalidade nos tais reordenamentos?
Os meu queridos amigos Vitor David e Paulo Raposo, ambos alferes dos Baixinhos do Dulombi, se estiverem a ler isto, são dos poucos que não fazem essa pergunta. O primeiro porque sabe o destino dos tais materiais em falta. O segundo porque foi ele mesmo quem lhes deu o (in)devido destino…
Fez ele bem, comento eu!
O Raposo, como já tive ocasião de dizer noutros escritos semelhantes a este, era uma pessoa desenrascada, que não abdicava do mínimo de conforto que as circunstâncias lhe permitissem.
Combater sim, mas confortavelmente, se possível…
Quando começámos a receber o cimento e as chapas de zinco em apreciáveis quantidades, destinadas ao reordenamento da população e também à construção de um heliporto, o Raposo, indiferente aos reparos do Capitão Jerónimo, mobilizou os seus soldados para cimentarem o seu abrigo e para revestirem o respectivo tecto, por baixo da terra que o cobria, com chapas de zinco na tentativa de o impermeabilizar às águas da chuvas que nos restantes abrigos inundavam por completo o interior.
Não seria, porém, na altura da transferência das cargas que iriamos falar disso. Era assunto tabu!
Importante era descortinar uma forma de entregar
sem falhas os materiais que constavam dos papéis. Embora sabendo-se que já só existiam em pequena parte…
A noite é boa conselheira e em África acho que ainda mais. E por isso, quando acordei no dia seguinte já tinha mentalmente encontrado a solução.
Contando obviamente com a inexperiência do alferes
periquito ( seja me desculpado tratá-lo assim, mas o seu nome já se me varreu…), que me iria assinar os recibos de quitação da entrega, libertando-me de responsabilidades.
Chamei o Veiga, furriel de transmissões e matosinhense muito vivo e desenrascado, e segredei-lhe:
- Oh Veiga, eu vou chamar o alferes
periquito e começarei por lhe dizer que os materias de construção que lhe vamos entregar estão dispersos por variados lugares da tabanca.
E continuei:
- Depois digo-lhe que temos que ir anotando num caderno as quantidades que contarmos em cada um desses locais, somando tudo no final e conferindo com os mapas oficiais da Companhia.
Prossegui, perante o olhar atento do Veiga, que ia abanando a cabeça em sinal de assentimento:
- Para que as coisas resultem como eu quero, é necessário iniciarmos este trabalho à hora de maior calor, digamos que por volta da uma da tarde, a seguir ao almoço.
De sobrolho franzido, o Veiga interrompeu-me:
- Porquê? Não entendo o motivo…
Retorqui-lhe, sorrindo:
- Mais adiante você vai compreender!
E continuei, descrevendo o plano:
- Agora você pega em meia dúzia de soldados e manda carregar em cima de um Unimog os poucos sacos de cimento e chapas de zinco que temos fechadas na tabanca que serve de armazém improvisado.
Sem perder o folego, acrescentei:
- De seguida manda-os descarregar num sítio qualquer, de preferência meio escondidos entre as tabancas, por forma a não serem visíveis de longe, e depois vem me chamar à messe onde estarei com ele, para nos deslocarmos ao sítio onde você despejou os materiais.
E porsseguindo:
- Depois de anotarmos no tal caderno as quantidades que tivermos contado, e perante o insuportável calor que estaremos sentindo, eu convido-o a si e ao alferes a virem beber uma cerveja. Você inventará um desculpa e recusará o convite. Logo que eu e ele nos afastarmos, você volta a carregar os materiais e colocá-los-á noutro sítio da tabanca afastado daquele, enquanto o alferes
periquito se encharca em cerveja para vencer o tórrido calor da uma da tarde…
O Veiga sorriu e interrompeu-me de novo:
- Agora entendo porque é que o meu alferes disse que mais adiante eu ia perceber a razão da hora do calor para se fazer este trabalho! O homem a cada caminhada que fizer não vai querer outra coisa senão abrigar-se do calor e matar a sede…
- Para mais,
periquito transpira como o caraças!...
- ... Enquanto me dá tempo para eu mudar os materiais de um sitio para outro - concluiu o furriel com uma sonora gargalhada.
Epílogo
O alferes
periquito sucumbiu ao truque. E encharcou-se com alguns litros de cerveja que eu magnanimamente lhe fui oferecendo ao longo daquela tarde.
Acho que nas últimas duas contagens ele já via tudo a dobrar, o que, se assim foi, acabou por me beneficiar nos cálculos finais…
Lamento dizê-lo mas há uma regra básica que o próprio exército nos ensinou:
A tropa manda desenrascar…
Tenho a certeza que ele acabou por fazer algo parecido quando acabou a comissão.. e isso alivia-me os remorsos…
Sim, porque tenho muitas dúvidas que as existências das Companhias do mato alguma vez conferissem com os papéis que constavam das secretarias.
O resultado das contagens acabou por dar no seguinte:
(i) Os mesmos sacos de cimento foram contados 4 vezes;
(ii) As mesmas chapas de zinco, 5 vezes
(iii) Os mesmos pregos, 2 vezes
Tudo somado deu um total praticamente igual ao que constava nos papéis oficiais do Sargento Silvano.
E tudo acabou em bem!
Se isto fosse um romance côr de rosa e se em vez do alferes
periquito eu estivesse a transferir as cargas para a enfermeira paraquedista Rosa, podia terminá-lo à laia dos filmes da década de 50:
... e casaram, foram muito felizes e procriaram belos e rechonchudos rebentos…
The End
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405 (1968/70)
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Notas de L.G.
(1) Estórias anteriores: vd posts de
19 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
14 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
9 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
Vd. também post de 31 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)
(2) Vd. post de 7 de Agosto de 2006 >
Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi
(3) Meu caro Rui: Ficamos à espera desses famosos versos...para que não se perca o Cancioneiro de Dulombi.