
1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 14 de Maio de 2009:
Caro Vinhal
Com um abraço extensivo ao Luís, Briote e
pira M. Ribeiro, envio-te um novo
bilhete de
Viagem… que ficou no estaleiro da vontade à espera de transporte no escaler da disponibilidade para transbordo no grande
Paquete das Recordações que nos leva num cruzeiro ao Passado, com a vossa ajuda como
Timoneiros.
Um abraço também aos
Passageiros das Recordações
Luís Faria
Bula – Um mês complicado (3)
O "osso"
Conforme já tinha referido, o mês de Fevereiro de 1971 foi complicado. Para além do trabalho do 2.º GCOMB, de ter assumido durante uns dias o comando do 1.º GCOMB por o Alf Mil Op Esp Quintas ter saído da Companhia e o novo Alf Mil Freitas Pereira ainda não se ter apresentado, também me calhou, a par com operações, serviço
rotineiro de emboscadas e patrulhamentos, participar na montagem de armadilhas e minas ao longo da estrada Bula –S. Vicente, aumentando o campo instalado. Só serviço ao quartel é que o meu grupo, ao que recordo não fez. Andávamos um bocado estourados e perguntávamo-nos porque éramos quase sempre os mesmos a
chuchar os ossos em vez de também
comer carne!!
Assim, a 26 do mês fomos de novo
chuchar ossos à zona de P. Matar, só que desta vez, a
chucha foi-nos mais madrasta e o
osso comeu-nos carne e bebeu-nos sangue !
Talvez devido a informação que desconheço, tomaram parte os 1.º e 2.º GCOMB da
Força e um Grupo de Milícias, dando a perceber que o
osso podia ser duro para chuchar. O 3.º GCOMB estava na
emboscada rotineira à estrada de S. Vicente, na que chamávamos
curva do café (não faço ideia da origem do
apelido) lá pelo Km 10, sob o comando do Alf Gomes (indiano) e dos Furs Almeida e Ferreira.
O amanhecer não tardaria muito quando deixámos a estrada e entrámos no desmatado, avançando em longa
bicha de Pirilau para a mata e continuando numa progressão atenta, ziguezagueante e tanto quanto possível silenciosa, atendendo ao número de elementos, com o objectivo de detectar e interceptar um grupo IN presumivelmente numeroso, que por lá se movimentaria.
Não tardou muito que isso viesse a acontecer.
Atravessamento do desmatado da estrada em bicha de pirilau
Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados
Ao que recordo, ainda cedo da manhã e a relativa pouca distância em linha recta da estrada, rebenta o fogachal danado. O matraquear das Kalash, as chicotadas, as explosões dos RPG e morteiro, sucedem-se. A
zona de morte parece extensa e apanha-me(nos) em sítio arborizado alto e de pouca folhagem. A potencialidade dos RPG acentua-se e mete medo, tal a quantidade de explosões, denotando que havia de certeza mais do que duas dessas armas - para mim temíveis – o que devia significar que o grupo IN seria bastante numeroso.
Respondemos com tudo o que tínhamos e é feito pedido de apoio aéreo. O comandante saíra a dar uma volta na DO que estava estacionada em Bula, deixando-nos sem PC durante uma boa meia hora e consequentemente sem qualquer informação útil à situação. O combate parecia não querer abrandar e muito menos terminar!
A meu lado está o Cancelo com o seu morteiro e por me aperceber que os turras estão a curta distancia, peço-lhe o morteiro e faço um disparo de ângulo elevado, que, não posso esquecer-me (nos), podia ter sido fatal, já que ao sair, a granada embate lateralmente na ponta de uns galhos secos… mas consegue
seguir viagem sem nos cair em cima, graças a Deus.
Os tiros e rebentamentos continuam, temos feridos, os Enfermeiros acorrem, a DO não aparece nem outro apoio aéreo.
Diz-me mais tarde o Fur Almeida que era tal e tão próximo o
foguetório, que quis vir em nosso auxílio com o 3.º GCOMB, mas não teve autorização. Posteriormente pensei se o objectivo IN não teria sido o 3.º GCOMB ?!!
Lá nos aguentámos. À minha beira e do Cancelo, cai ferido com gravidade um dos meus Homens que me pede para dizer aos Pais… ao que respondi, (apostando uma grade de cerveja) não ser preciso porque se iria safar! O 1.º Cabo Lopes, um pouco mais afastado, fica ferido e acaba por morrer, infelizmente. Há mais quatro feridos para além dos da Milícia, um destes com um estilhaços na cabeça.
O Alf Barros (guineense), no comando do meu 2.º GCOMB, perde momentaneamente o controlo, atira com a G3 para o chão e corre em direcção aos turras, chamando-lhes algo como f.d.p. e cabrões, sendo preciso correr para o ir buscar e acalmar. Sorte os turras já estarem em debandada! Entretanto o apoio chega, a contenda acaba.
Os Enfermeiros não têm mãos a medir. É feita a segurança para o héli aterrar enquanto o canhão e a DO volteiam sobre a zona.
A minha atenção recai nos feridos e nas evacuações a serem feitas. Uma destas tem uma história (com h) extraordinária que talvez venha a referir um dia mais tarde, não sei se com ou sem nomes. Se bem me recordo, o héli foi por duas vezes buscar feridos, transportando os menos graves para Bula, (a três ou quatro minutos) e os restantes para Bissau.
Não sei se para defesa da nossa estabilidade emocional (talvez o Luís Graça possa dar uma achega), no meio do caos aconteciam por vezes situações que, sem razão aparente, nos captavam a atenção, talvez por parecerem surreais no contexto e no momento, mas que de certo modo nos aliviavam e distraíam, acabando por ficar armazenadas no subconsciente, aflorando por via de um qualquer estímulo.
Recordo o milícia com estilhaços na cabeça a ser tratado pelo seu Enfermeiro que, para o desinfectar (?) lhe esfregava a cabeça com tal sem parcimónia que me fez intervir chamando-lhe a atenção para o facto, ao que me respondeu algo do género, de não doer!!
No meio de todo este cenário sombrio não esqueço o
quadro de Esperança
pintado pelo João, natural de Braga (dizia ser meu vizinho, por eu morar no Porto!!) que, subindo para um bagabaga, abre os braços em toda a extensão e com a G3 segura na mão, dirige-se em voz bem alta à sua namorada distante dizendo “… (não recordo o nome)
Amo-te do fundo do curaçom “ !!! . (A imagem parecia a do
Apocalipse now na cena de despedida quase no final).
Lembro a Enfermeira Pára (gostava de saber o nome), que mais me pareceu uma Deusa do Olimpo a descer do héli da Esperança, morena, com calças camufladas e T-shirt branca, começar a fazer a triagem de embarque aos feridos que lhe eram levados, já que dado o número, tinha de haver prioridades no transporte.
Inspeccionada a zona de emboscada que nos indicou termos de certeza
comido carne IN e bebido do seu sangue (informações posteriores confirmaram 4 mortos e alguns feridos) e feitas as evacuações, regressámos a Bula, cansados mas não desmoralizados e preparados para a certeza de em breve nos darem mais uns
ossos para chuchar!
Para a Tertúlia, um abraço
Luís Faria
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2009 >
Guiné 63/74 - P4218: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (13): Um mês complicado (2) Emboscada bem montada