1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 11 de Dezembro de 2011:
Caro amigo Carlos Vinhal, camaradas, amigos,
No dia 24 de Dezembro de 1972, num presépio chamado Guiné, eu marquei encontro com o Pai Natal. Aqui fica a história desse encontro, que também seria o último que teria com Ele em terras africanas.
Por muitas razões da vida que vivi, eu acredito que há um velhote simpático de barbas brancas, chamado Santa Claus, que faz os possíveis para me acompanhar todos os dias. Ele também vos tem no coração, disso tenho a certeza.
Quando ele bater à vossa porta, deixem-no entrar e descansar um pouco no seio da vossa família. Ele, depois de passar por aqui e de atravessar este Atlântico imenso que nos une, apenas quer desejar-vos um Feliz e Santo Natal.
Um grande abraço do
José Câmara
Guiné, um presépio de Natal
Na linda ilha das Flores, terra que me viu nascer e crescer, as celebrações do Natal tinham como atenção o nascimento do Menino Jesus em Belém e as prendas que Ele, no seu infinito amor, distribuía pela pequenada.
Como criança que era não percebia porque é que o Menino gostava tanto dos meninos mais ricos e, muitas vezes, se esquecia de mim, dos meus irmãos e de outros meninos tão pobres como eu. Levei alguns anos para me aperceber que o Menino também me amava como aos outros. A verdade era que a minha pequenina casa não tinha chaminé por onde Ele pudesse entrar e, mesmo que arranjasse outra forma de se infiltrar, nunca poderia encontrar os meus sapatinhos porque eu não os tinha. Apesar de todos esses problemas, na sua infinita bondade, às vezes arranjava maneira de deixar debaixo do travesseiro um saquinho com figos passados. Quando isso acontecia, o Natal era enorme no meu coração de criança.
No Faial, para onde fui com a idade dos 10 anos, talvez por influência das companhias estrangeiras de cabos submarinos (americana, inglesa e alemã), de algum consumismo já evidente na pequena cidade da Horta e mesmo dos emigrantes resultantes da erupção vulcânica dos Capelinhos, o Menino era mais rico e, por isso mesmo, costumava contratar um ajudante, o Pai Natal, por altura dos festejos natalícios. Era este Ajudante que trazia as boas novas do Menino.
O meu alfinete de gravata, homenagem ao meu Menino Jesus
De nós para vós, um Santo Natal
©Foto de J. Câmara
O Pai Natal, o Santa Claus como alguns lhe chamavam, viajava por entre estrelas, vindo das zonas frias da Lapónia. Talvez porque o trenó, puxado por renas de nariz vermelho, tinha mais espaço para sacos de prendas o Natal, na minha casa passámos a contar com algumas alegrias extras, entre as quais, há um alfinete de gravata que ainda hoje é o único que uso em homenagem ao grande amor e sacrifício do meu Menino Jesus.
Todavia, para compreender o Natal em toda a sua beleza humanística faltava, de facto, ter um encontro com o Menino Jesus, com o Pai Natal. A oportunidade aconteceu a meia tarde do dia 24 de Dezembro de 1972.
Ao tempo eu era, com muita honra, militar no Exército de Portugal, em fim de comissão de serviço na Guiné.
O presépio, devidamente preparado para essa efeméride, era completamente diferente daqueles a que estava acostumado na minha meninice. Este fora desenhado e construído com belas bolanhas e matas esplendorosas de palmeirais, cajueiros, capim, às quais não faltavam javalis, veados, pombos verdes, cobras, lagartos, sapos, mosquitos, formigas e os demais requintes da flora e fauna tropicais. A completar todo esse quadro maravilhoso que extasiava os corações mais sensíveis, as cascatas das ribeiras da freguesia deram lugar a um espelho imenso de um rio calmo que reflectia o sorriso quente do astro-rei. Era na verdade um presépio que deixaria imensas recordações, alegres umas, bem tristes outras, porque não saudades das boas, vida fora!
O Pai Natal da CCaç 3327 fazendo a aproximação à margem do Enxudé, Zona de Tite
© Foto de J. Câmara - Dezembro 24, 1972
Foi nesse ambiente que o Pai Natal, ansiosamente esperado, apareceu por detrás de um pequeno ilhéu colocado no meio do rio. Era diferente de tudo o quando imaginara até então. Vinha vestido de cinzento. Conduzia, com mestria, as renas que mais pareciam peixinhos vestidos de muitas cores que, alegremente, puxavam nas águas mansas do rio um trenó em forma de barquinho. Graciosamente, com lentidão cautelosa, aproximou-se da terra e aos poucos foi abrindo os seus braços até descansá-los na margem do rio. De peito bem aberto, deixou ver o seu imenso coração onde caberiam todos aqueles que o esperavam e que não se fizeram rogados em entrar nele.
Descansou o suficiente para receber a sua preciosa e alegre carga. Depois, talvez imitando Santo António, segredou algo aos peixinhos que, por ali, se mantinham em alegres brincadeiras. Fechou os seus enormes braços num amplexo imenso àqueles que acabara de receber junto do seu coração. E partiu. Tal como chegara, sem alaridos, havia que cumprir o final da sua nobre missão. Havia que levar a bom porto todos aqueles que confiaram no seu convite.
Aos poucos as margens do Enxudé foram-se perdendo no entardecer do dia para dar lugar à noite que se aproximava. Tite, Bissássema e as suas gentes passavam a ser nomes guardados na neblina da memória. Bissau foi o porto de acolhimento.
Encostado ao cais, exausto pelo cansaço, aquele Pai Natal ainda teve forças para um último aceno. Foi a última vez que o vi em terras da Guiné. A CCaç 3327 regressava à casa e às barracas que a receberam vinte e três meses antes, o Depósito de Adidos, em Brá.
A partir da esquerda: 1.º Sarg. Baltazar Lopes e Fur. Mil. Fernando Silva (ambos já falecidos), Fur. Mil. Pinto. A foto não oferece condições para identificar os outros com segurança. De costas, a ser servido, o Fur. Mil. Câmara
© Foto cedida pelo Fur. Mil. João Cruz, Natal de 1972
Nessa noite de Natal, alguns de nós ainda conseguiram desenfiar-se para a cidade. O Coelho à Caçador andou às correrias pelas mesas que juntámos no restaurante que nos acolheu. Uma noite diferente e alegre para nós. Só possível pelo amor e amizade de um Santa Claus que quis que, nesse ano de 1972, tivéssemos um Feliz e Santo Natal.
Porque ainda acredito na existência do Pai Natal, hoje, tal como ontem, que a Amizade e o Amor, a Paz e a Esperança do espírito do Natal, sejam companheiras diárias das vossas vidas e da dos vossos familiares.
Deste lado do oceano, um abraço enorme, quente e amigo do
José Câmara
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Novembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira
Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9213: O meu Natal no mato (34): Empada, 24 de Dezembro de 1969, em tempo de guerra (José Teixeira)