quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20608: Roteiro de Bissau: fotos de c. 2010, de um amigo do Virgílio Teixeira, empresário do ramo da hotelaria - Parte III














Guiné-Bissau > Bissau > Atual Coimbra Hotel & SPA, fundado em 2001, sito no edifício do antigo estabelecimento Nunes & Irmão Lda, na Av Amílcar Cabral (, antiga Av República). É o mais imponente edifíco comercial do centro histórico de Bissau, da época colonial.


1. Continuação da publicação de uma seleção de fotos, na posse do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).

Foram-lhe enviadas, há uns anos, sem legendas, por um português (ou descendente de portugueses), das suas relações, empresário do setor hoteleira, que ele de momento não está autorizado a identificar.

São fotos,  com interesse documental para aqueles, como nós, que conheceram Bissau, que continuam a lá ir ou querem ainda lá ir. Algumas das fotos que já publicamos, tinham o interesse adicional de serem "vistas aéreas" da atual capital da Guiné-Bissau... As fotos devem ter sido tiradas na última década (c. 2010) e algumas serão mais antigas. Mas são de alguém que ama muito a cidade de Bissau...onde vive, e que é a sua terra.

As que publicamos hoje tem por objeto o atual Hotel Coimbra, uma referência da cidade. Trata-se do antigo estabelecimento Nunes & Irmão Lda, sito junto na Av Amílcar Cabral (antiga Av da República), antes da Catedral, para quem desce. O edifício é propriedade da família há 3 gerações. (Vd. página do Facebook de Hotel Coimbra.). Pelo aspeto da avenida, enlameada, as fotos foram na época das chuvas.

É de recordar aqui, a propósito das fotos de Bissau de hoje e de outros lugares da Guiné-Bissau, o que escreveu a nossa amiga Adelaide Barata Carrêlo, quando lá voltou em novembro de 2015: 

 "Gostaria de te contar uma conversa que tive com um colega do meu filho de Bambadinca - ele diz que os poucos turistas que vão à Guiné, gostam de tirar fotos ao que há de mais desagradável, explorando a imagem do lixo, da pobreza, etc. Pelo respeito que tenho a esta gente, pelo amor que tenho a esta terra, pelo sonho de lá voltar, não esperem de mim tais imagens. Eu sou assim!!!!"...


2. O Virgílio Teixeira mandou-me este lote de fotos (c. de 4 dezenas, de que fiz uma seleção), com a seguinte mensagem, em 18/11/2019:

(...) Fico satisfeito por ter oportunidade de mandar estas fotos que são memoráveis para nós todos, embora já se passaram tantos anos e quase tudo esteja diferente. Fiquei de certo modo mais motivado a mexer nisto e enviar mais fotos, depois de ver o trabalho que tens tido a identificar cada coisa, por isso mereces o meu mais alto respeito, sem favores.

Na Rua Eduardo Mondlane, que aqui já identificaste, eu não me lembrava exactamente onde era, foi onde fiquei na 3ª viagem à Guiné, em Junho de1985 , que estou a reescrever calmamente, numa casa ou Ppensão de alguém conhecido do meu 'sócio' Isidro.

Quanto à continuação das fotos, como me dava trabalho descarregar e passar tudo para o computador, porque talvez não saiba fazer de uma forma mais fácil, resolvi então enviar os emails, que o meu contacto em Bissau me mandou, são uns 20 ou mais, e cada um traz 30 a 40 fotos, e selecciona as que interessam, e guarda as restantes, são também teu 'espólio'. (...)



Seleção, edição e legendagem da responsabilidade do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. A numeração é feita poste a poste...


14 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20344: Roteiro de Bissau: fotos de c. 2010, de um amigo do Virgílio Teixeira, empresário do ramo da hotelaria - Parte I

Guiné 61/74 - P20607: (In)citações (143): O nosso natal, o dia em que nascemos, é algo transcendente, gravado no mais íntimo do nosso Ser (ex-cap eng trm, STM / QG / CTIG, 1968/70, João Afonso Bento Soares, hoje maj gen ref, nosso grã-tabanqueiro nº 785)

1. Mensagem, com data de ontem, às 22h41, do  nosso camarada, ex-Capitão Eng Trms, STM / QG / CTIG (1968/70), João Afonso Bento Soares [, hoje maj gen ref, nosso grã-tabanqueiro nº 785]: 

Caro Amigo:

Venho trazer-lhe um grande abraço de Parabéns, com uma lucubração sobre o feliz evento que é: Dia de Aniversário (*).

O nascimento de uma pessoa ou de qualquer Ser, é um prodígio, é uma bênção celeste, é uma manifestação do divino, é um momento sagrado. O nosso natal, o dia em que nascemos, é por isso algo transcendente, gravado no mais íntimo do nosso Ser. É uma mensagem inscrita na alma que inunda de alegria o coração. É a grata lembrança da nossa ligação ao Criador. É, em suma, o acontecimento mágico que nos lança no Tempo.

E sobre o Tempo, importa dizer:

O TEMPO E A MENTE

Sei que a vida pouco dura,
Pois do berço à sepultura
O tempo é curto demais.
Também sei que há horas mortas,
Que nos vêm fechar portas
Coarctando os ideais.

Tempo gasto, consumido
Sem um caminho escolhido,
Sem pensamento, nem reza.
É como ser vagabundo
Que se arrasta pelo mundo
Sem fruir a Natureza.

Se o tempo voltasse atrás
Teria de ser capaz
De dar-lhe outra ocupação:
Ousaria enfrentar medos

E compartir meus segredos
Com mais Amor que Razão.

Das voltas que dá a vida,
Fica a ilusão perdida
De que o tempo nos faltou…
Por dele não termos conta
É que a nossa mente tonta
Assim o desperdiçou!



O Amigo e sócio tabanqueiro, General João Afonso Bento Soares  (**)

______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20606: Fotos à procura de... uma legenda (117): ainda a marca e o modelo da pistola-metralhadora do "Manel Djoquim", o homem do cinema ambulante que, mesmo em plena guerra, tinha fama de ir a todos os sítios...



Mapa da Guiné > s/d > c. 1975 > Povoações, assinaladas com um retãngulo onde o Manuel Joaquim dos Prazeres teria ido, uma ou mais vezes, com o seu cinema ambulante, ao longo de 3 décadas (entre 1943 e 1970). 

Perguntei à autora qual o "signifiacado" deste mapa da Guiné (, pós.independência, pela toponímia: Cachungo, Quebo, Gabu...). As principais povoações estão assinaladas com um retãngulo... A minha hipótese era  seren sítios por onde o "Nequinhas" tinha passado com a sua carrinha... Mas será que ele chegou mesmo a ir a Cabuca e a Madina do Boé ? Esta última parecia-me de todo improvável, no tempo da guerra... Até porque só particamente tropa e meia dúzia civis... A tropa não o deixaria lá ir... A estrada era um cemitério de viaturas destruídas por minas e emboscadas... Até Nova Lamego e daí até à fronteira norte (, Pirada, por ex.) ainda vá, até meados de 60...


Fonte: Adapt de Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, pp. inumeradas [6-7].



Guiné > s/l > s/d > c. 1960 > Não há dúvida que se trata de uma "arma de guerra" e não de caça, uma pistola-metralhadora, talvez a portuguesa FBP m/948 ou m/963... Era uma arma para "defesa pessoal"...  Uma situação que a família desconhecia. De qualquer modo, as opiniões divergem sobre a marca e o modelo da arma:  a portuguesa FBP, as americanas M3 e Thompson, a belga Vigneron, a israelita Uzi... Já foram aventadas várias hipóteses... De qualquer modo, as fotos disponíveis, a cores, do arquivo da família não deixam ver a totalidade da arma e a sua resolução é fraca...

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Portugal > Caldas da Rainha > RI 5 > Janeiro de 1969 > Visita do então Presidente da República, Américo Tomás: na foto, passando revista a um guarda de ronda... Em primeiro plano, ao centro, o 1º cabo miliciano César Dias, membro da nossa Tabanca Grande, ex-fur  mil sap inf, CCS/ BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). Os cabos milicianos, Morais e Dias, empunham pistolas metralhadores Uzi, de fabrico israelita.

Foto (e legenda): © César Dias (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Comentários dos nossos leitores:

(i) Valdemar Queiroz (*):

(...) Tanto a FBP, a Uzi e a Vigneron com o percutor fixo na cabeça da culatra facilmente disparavam 'sozinhas'. Acontecia várias vezes, com um simples bater com a coronha numa mesa, haver rajadas descontroladas.

Na guerra da Guiné, julgo que não eram utilizadas em operações e apenas seriam utilizadas em desfiles militares.
´
Parece que estas armas, de pequeno porte e munições derrubantes,  de 9 mm, eram mais utilizadas por forças da polícia. (...)

(ii) César Dias (*):

Nas Caldas [, no RI 5,] os Cabos Milicianos usaram a UZI na guarda de honra ao Presidente da República [, Américo Tomás], em Janeiro de 69, mas não me lembro do modelo.


(iii) Luís Graça:

Aparentemente não há registo do mais pequeno "incidente", na estrada ou nas tabancas, com a velho Ford do Manel Djoquim nem com a sua pessoa... O Ford ostentava, nas portas, um dístico pintado, "Cine-Guiné" (, segundo o testemunho de Carlos Geraldes, carta de Pirada, 3/1/1965) (**).

Será que este "tuga" conseguiu passar incólume pela guerra ? Mas, é bom lembrar, as minas e as emboscadas não tinham "código postal"...

Há, naturalmente, algumas lendas e alguns mitos criados à sua volta... A verdade é que ele só baixou às "boxes" em 1971... Deve ter percebido que o seu tempo estava a chegar ao fim... Mas é um caso absolutamente notável de coragem física, de determinação, de resiliência, de amor à Guiné... Por isso lhe chamo o "último africanista".

Segundo os testemunhos dos amigos seu tempo e dos registos da família, em cerca de três décadas,  dos anos 40 a princípios de 70, o Manuel Joaquim dos Prazeres teria batido  toda a Guiné, de Norte a Sul e de Oeste a Leste... No mapa (adaptado) que a Lucinda Aranha publica, no seu livro, os sítios assinalados  (com um retângulo) vão de Varela a Campeane,  de Caió a Cabuca, de Pirada a Buba, de Bambadinca a Mansabá, de Farim  a Madina do Boé...

O nosso saudoso Carlos Geraldes (1941-2012), que conheceu em Pirada, na véspera do Natal de 1964, escreveu sobre ele:

(...) "Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu, completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado." (...)

O Carlos Geraldes, alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), não fala em nenhuma pistola-metralhadora, que o Manuel Joaquim  deve ter adquirido (, mas não sabemos como...) na altura o início da guerra... (Enfim, uma questão que a Lucinda Aranha nos prometeu elucidar, recrrendo à memória de amigos do pai, do tempo da Guiné,  que ainda estão vivos...).

Mas pode perguntar-se: qual então o significado da exibição de uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora, que não servia para caçar ?  Era também uma "insígnia" que podia  ter várias leituras: para a PIDE e a tropa e para o PAIGC... mas também para os amigos e até para a família em Lisboa..


2.Perguntei à autora qual o "signifiacado" deste mapa da Guiné (, pós-independência, pela toponímia: Cachungo, Quebo, Gabu, Boé...). 

As principais povoações estão assinaladas com um retãngulo... A minha hipótese era  serem sítios por onde o "Nequinhas"(, nomi ho ternurento pelo qual era tratado no seio da família em Lisboa...)  tinha passado com a sua carrinha...

Mas será que ele chegou mesmo a ir a Cabuca e a Madina do Boé ? Esta última parecia-me de todo improvável, no tempo da guerra... Até porque havia só particamente tropa e meia dúzia civis, até à sua retirada em 6/2/1969...

A tropa não o deixaria lá ir a sítios como Madina do Boé... A estrada era um cemitério de viaturas destruídas por minas e emboscadas... Até Nova Lamego e daí até à fronteira norte (, Pirada, por ex.) ainda vá lá, até meados de 60... A questão é que este mapa não aparece no livro com  uma legenda apropriada...

Resposta da Lucinda Aranha (15/1/2020):

(...) Luís, não sei se o meu pai ia, durante a guerra colonial , às localidades que mencionas mas várias testemunhas me disseram que ele até dava cinema aos guerrilheiros e, sobretudo, tenho o testemunho dele próprio segundo o qual podia andar por toda a Guiné que ninguém lhe fazia mal. Inclusivamente enfurecia-se com as diculdades que o governo da Guiné, militares, até a Pide, lhe punham no sentido de parar a sua actividade.

Quanto ao mapa, reconheço que é bastante impreciso até porque, por lapso da editora, saiu sem a legenda e confesso que não me apercebi atempadamente. Por outro lado, tive muita dificuldade em encontrar um mapa mais consentâneo com a época. Desconhecia então que a Tabanca Grande tem um bom acervo de mapas,  como me disse o Carlos Vinhal.


Efectivamente, os rectângulos assinalam os lugares por onde o meu pai andou, embora vários amigos pessoais- o próprio genro do Esteves, o sr Pereira - me tenham afiançado que praticamente eu devia assinalar todas as localidades do mapa. Optei por assinalar apenas as que me apercebi, pelos vários testemunhos, que eram fiáveis. (...).



Guiné 61/74 - P20605: Historiografia da presença portuguesa em África (196): Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
São documentos preciosos que se encontram na Biblioteca da Sociedade de Geografia, espelham a realidade da nova Província da Guiné, do estado em que se encontrava, o Governador não esconde ao Ministro as carências de toda a espécie e propõe medidas. Será governador por pouco tempo, era um oficial da Armada com larga experiência colonial, foi rapidamente destacado para Macau.
Sobre a sua governação sugere-se a leitura da obra de Armando Tavares da Silva "A Presença Portuguesa na Guiné", a partir da página 169, é neste tempo que fomos forçados a abandonar Zinguinchor, com muita dor da população local, Tavares da Silva relata com detalhe os muitos conflitos que se registaram nesta época.

Um abraço do
Mário


Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888

Beja Santos

O oficial da Armada foi surpreendido em Angola com a sua nomeação para a Guiné, daqui seguirá também como Governador para Macau. O seu documento é muito económico, revela uma limpidez de caráter, não se escusa a abordar as questões mais ásperas e a propor medidas de revitalização, fundamentais num período em que a presença francesa aparecia como um cerco ao enclave português. Não esconde no documento destinado ao ministro que lhe falta alguma informação e diz claramente que a presença portuguesa está altamente condicionada.

As primeiras páginas introdutórias levam-no a dizer que a Província compreende todo o continente africano entre o Cabo Roxo e a Ponta Repin, a superfície total da Província, incluindo as ilhas, seria aproximadamente de 40 mil quilómetros quadrados. Escreve que a população que se diz civilizada não ultrapassa as 10 mil almas. Estabelece as condicionantes, ocupava-se a ilha de Bolama; Bissau, Cacheu, Geba, Buba e Farim só a parte fortificada; Cacheu está sempre em armas; em Bissau, há quem proteste contra a destruição das muralhas da praça, com medo dos vizinhos; em Geba e Farim, todos temem o Mussá-Muló e em Buba desconfia-se de Mamadu Paté, chefe Fula, de Mamadu Jolá, chefe Beafada. E explica a natureza das tensões:

“Este mal-estar deve-se principalmente à política de intervenção nas questões indígenas e ao costume de lhes pagar tributos e dar presentes que mais provam vassalagem do que suserania. Hoje não se pagam tributos e dão-se-lhes poucos presentes”.

E procura fazer um retrato da capital da Província, dirá repetidamente que anseia por ver Bolama ascender a cidade:

  “A capital da Província é na ilha de Bolama na sua parte mais insalubre. Convinha dominar a entrada do Rio Grande – diz-se. Data este estabelecimento de 1879 e se não é hoje como Luanda que conta séculos de existência, não é inferior a São Tomé ou a Benguela em edificações públicas e particulares. Se me é lícito advogar uma causa que mais pertence à municipalidade, proporia que a sede da Província da Guiné na ilha de Bolama fosse elevada à categoria de cidade… Capital de uma Província não deve ser aldeia nem vila. O concelho de Bolama abrange toda a ilha. O poder judicial e administrativo não vai além da vila e aldeias próximas por ser difícil o seu exercício nas tabancas das diferentes raças cujos costumes temos respeitado”. E dá uma nota de franqueza para o estado da capital: “Em Bolama não há nem cemitério nem calcetamento das ruas, nem um edifício camarário que não seja alugado”.

E pronuncia-se sobre os administradores de concelho e chefes de presídio, os representantes do Governo nos pontos ocupados:

“Uns e outros acumulam a parte civil. Veem-se em cada passo embaraçados quando pretendem cumprir as ordens do Governo, e na parte política da administração têm de lutar contra a natural desconfiança dos indígenas, sempre excitada pelos habitantes da localidade, políticos a seu modo, intervindo em todas as questões gentílicas com o fim principal de promover os seus interesses que não os do país que lhes deve o seu atraso, as suas discórdias, as suas guerras e o seu mau estado financeiro”.

Depois de dizer abertamente que vota pela extinção das câmaras municipais em Bissau e Cacheu, e depois de informar que Buba já tem comissão municipal, pronuncia-se sobre a gestão das questões gentílicas:

“É simples a minha política: é a de não interferência nos negócios indígenas, a não ser a de bom conselho dado sem interesse. É o castigo pronto ao morador, ao grumete do presídio que comete extorsões nos territórios gentílicos ou nos mercados públicos à sombra da autoridade. É a exigência da amarração de qualquer gentio por crimes contra cristãos ou moradores e grumetes, tomando reféns até que se faça a troca. É não dar presentes aos chefes das tribos, nem aceitá-los. Os presentes constituem hoje uma obrigação, a que eles dão o nome de daxas ou tributos”.

É favorável a que se arrasem todas as muralhas e paliçadas, não obstante havia que conservar em bom estado as fortalezas, era a melhor maneira de mostrar aos indígenas que não tinham medo deles.

É severo num conjunto de apreciações quando fala da administração, da justiça, da missionação, etc. Recorda ao ministro que há situações do mais flagrante atentado à saúde, é o caso de Bissau: “Tem 80 casas, se tanto, apertadas por uma muralha de três metros de altura torneada por um fosso que serve de despejo. Limpa-se o fosso, dá-se-lhe vazão para a praia, entulham-no outra vez”. A justiça estava pela hora da morte: “Crimes, quem é que os paga, se não há quem os julgue? Os juízes ordinários ali dizem que não têm escrivães. Não há administrador de concelho, delegado de saúde: não há quem ali vá com eles com olhos de ver que se não ria daquela muralha e de quem pede a sua conservação. E a muralha fica de pé, devendo eu também entrar no número daqueles que não toma uma deliberação”.

Pronuncia-se meticulosamente sobre obras públicas, correio, administração da Fazenda, da Alfândega e volta ao tema da justiça e não se coíbe de tecer observações sobre a administração eclesiástica:

“O vigário-geral é o único sacerdote que há hoje em toda a Guiné Portuguesa. A Diocese de Cabo Verde compreende as cristandades da Guiné sobre a direcção do Vigário-geral. A diocese tem um seminário na ilha de São Nicolau que, se dá padres, não chegam à Guiné. No reino não se ordenam em número proporcional às necessidades das províncias africanas. Vêm do Oriente, espalham-se por todas as colónias como se têm espalhado os cirurgiões da Escola de Goa”.

Sempre objetivo, sem teias numa narrativa de verdade, diz o que pensa sobre as velhas fortificações em ruínas, o estado degradado em que se encontra a artilharia, as necessidades prementes de manter unidades da Armada na Guiné.

E termina o seu relatório relembrando várias propostas:

“mostrei a conveniência de elevar Bolama a categoria de cidade;
disse que o concelho de Bolola não tinha hoje razão de ser;
provei que Cacheu não tem elementos de vida municipal;
pedi a reorganização da Secretaria Geral do Governo;
que os chefes dos presídios sejam gratificados com 300 mil reis anuais;
que a despesa com a instrução primária passe a cargo das câmaras e comissões municipais;
que se crie na capital da Província uma escola principal;
que venham de Angola cinco pretos resgatados para servirem nas obras públicas como aprendizes de ofícios;
que, quando os portos da Guiné Portuguesa estiverem suspeitos ou sujos, haja carreira directa de vapores para a metrópole;
que se arrasem as muralhas de Bissau e se destrua a paliçada de Cacheu;
que se mande vir de França o material preciso para construções na Província e principalmente em Cacine, etecetera, etecetera".

O relatório é assinado na ilha Brava em 26 de outubro de 1888, nessa altura Francisco Teixeira da Silva é ex-Governador da Guiné nomeado Governador de Macau.


Ruínas do BNU de Bolama, posteriormente Hotel do Turismo, 
Imagem de Bruno Kestemont, retirada do blogue Rio dos Bons Sinais, com a devida vénia.




(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20539: Historiografia da presença portuguesa em África (195): A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20604: Parabéns a você (1751): Parabéns Luís Graça pelos teus 73 anos e pelos 15 anos deste Blogue que em boa hora criaste (João Crisóstomo)

PARABÉNS A VOCÊ

LUÍS GRAÇA




1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), com data de 17 de Janeiro de 2020, a propósito do aniversário do nosso editor Luís Graça:

Tanto quanto posso sigo o nosso blogue. E porque o dia 29 de Janeiro se aproxima, quase apavorado pergunto-me como é que podia enviar algo de especial a quem é realmente muito especial. E lembrei-me: porque não procurar o que de melhor tem sido dito sobre o Luís Graça e com isso fazer um comentário / envio de parabéns como ele merece?

É que gostaria de ter muito mais condão de palavra para poder descrever o que sinto sobre o Luís Graça… meu camarada, meu mentor, meu amigo, meu irmão... e por mais que eu me esforce as palavras que me saem ficam sempre muito aquém daquilo que sinto e gostaria de saber comunicar. Embora consciente, em comparação com o desejado, da sua pouca expressão, direi que o Luís Graça é um criador e construtor de obras que influenciam e marcam a vida de outros. Não precisamos de ir longe, que este seu/nosso blogue fala por si: creio que de alguma maneira todos fomos beneficiados - e alguns de nós em medida tão grande que só os próprios o podem sentir - pela criação deste salutar movimento de vivência de memórias nas diversas vertentes em que se apresenta. Veja-se o despertar de consciências que este movimento ocasionou e que continua a desafiar ainda cada dia os que dele têm conhecimento; veja-se o contributo para a história de Portugal, da Guiné; vejam-se o número de livros escritos que nunca teriam visto a luz do dia… Portugal e os portugueses, a cultura e história de Portugal tornaram-se e ficam ainda cada dia mais ricos graças a este Luís Graça, e à equipa altamente qualificada de colaboradores de que se soube rodear.

Embora eu não tenha palavras minhas condizentes, eu quero lembrar um pouco que dele foi dito no seu aniversario de há dez anos atrás: se multiplicarmos agora por 10 o que então foi dito, poderemos ficar próximo do que deve ser dito agora. Aqui estão, relembrando, com a devida vénia, alguns dos comentários/mensagens (13 que é um número bonito!) de há dez anos atrás:

Luís Graça - Fundador e Editor do nosso Blogue
Foto: José Rodrigues
Edição: Carlos Vinhal


2. João Crisóstomo seleccionou estes comentários a propósito dos 63 anos de Luís Graça, há anos atrás:

José Teixeira:

A história tem ficado mais rica em cada dia que passa. 
A amizade desenvolveu novos e profundos laços entre muitos dos antigos combatentes. Com ela, vem sempre grandes momentos de convívio e felicidade. Momentos que tem ajudado muitos de nós a espantar os “fantasmas” que teimam a povoar a mente.

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Juvenal Amado:

Meu caro Luís,
Neste dia o que te poderei dar a ti, que tanto me deste?

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Luís Dias:

És, por direito próprio, o nosso “comandante”, aquele que, em conjunto com os restantes editores, foi capaz de criar o nosso blogue e com isso dar proveito a que muitos de nós pudessem conhecer outros camaradas, trocar impressões, dar corpo a ideias, libertar o que há muitos anos julgávamos fechado para sempre. As amizades que têm surgido, os abraços, a solidariedade são componentes inegáveis da nossa Tabanca Grande.

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Luís Faria:

Esta tua Obra Grande (Tabanca Grande) que, para além de proporcionar reencontros de Camaradas reactivando contactos e amizades, para além de memória futura de uma época, funciona também e a meu ver, como uma espécie de terapia sócio-emocional para muitos que, fechados com (n) os seus “fantasmas” inicia(ra)m a libertação e começa(ra)m a reabrir as portas do tempo.

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Luís R. Moreira:

Não quero, deixar de felicitar este HOMEM carismático que é o mentor do blogue que fez e faz a diferença.

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Manuel Amaro:

Hoje, 29 de Janeiro, é um dia privilegiado para todos os camaradas do blogue. Porque é o Dia do nosso Comandante, Presidente, CEO, Camarada e Amigo Luís Graça. 
O Dia dos nossos Amigos também é o nosso Dia.

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Manuel Maia:

Que poderá dizer-se de um homem que foi capaz de gerar este movimento que congrega cerca de outros quatrocentos (venham mais cinco, como diria o Zeca...), levando-os a um porto de abrigo...
Se não foras tu, como poderíamos comungar da alegria de saber que a solidariedade continua a ser o leit motiv de tantos de nós?

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Manuel Marinho:

A criação do teu BLOGUE que foi - é - o melhor bálsamo para as dores de alma dos ex-combatentes da Guiné… fizeste mais pelos ex-combatentes do que imaginas!!...
…Fizeste com que os silêncios fossem quebrados, os traumas aliviados, os sofrimentos atenuados, as incompreensões entendidas, as injustiças repartidas, e os alegres reencontros de camaradas que não se viam há imenso tempo, com laços eternos de amizade, família de ex combatentes da Guiné, tudo isto é OBRA!
Como se isto não bastasse, estás a coordenar a verdadeira história da Guerra Colonial da Guiné.

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Mário Beja Santos:

Bendigo esta tua criação em que me revejo e me esqueço, bendigo o ajuntamento que tornaste possível…
É assim que eu agradeço por existires.

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Rogério Cardoso:

Camarada e ex-combatente Luís Graça,
Gente assim é que faz falta a este Portugal… para que possa ir em frente…

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Rui Silva:

Luís: 
Tu deste alegria a estes sessentões. Fizeste-os desabafar. Libertaste-os. Aproximaste-os. Fizeste criar grandes amizades e enfortaleceste a camaradagem que vinha sendo diluída pelos tempos.
Através do teu Blogue conheci pessoas. Voltei a falar com alguns camaradas. Contraí novas amizades. Troco mails com eles, almoço com eles. De facto tenho mais e melhores amigos.
Obrigado Luís. BEM HAJAS!. Continua. Faz-me esse grande favor.

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Torcato Mendonça:

Agradecer-te, dizer obrigado é pouco, muito pouco, face ao enorme trabalho que desenvolveste em prol dos ex-combatentes da Guiné e seus familiares e, também, pelos guineenses ex-combatentes ou não… 
Relevaste a memória colectiva de dois povos, antes desavindos e hoje irmanados na luta pela democracia... tu és o culpado disso meu caro Luís Graça... já nada ficará como dantes…, este dia 29 de Janeiro do ano 10 do 2.º milénio, se há-de repetir por muitos e bons anos e tu, junto de familiares, amigos e gentes que te são queridos vais viver e contemplar a evolução de tua ideia, transformada em obra contributiva para a paz entre os homens.
Parabéns Amigo.

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Vasco da Gama:

Parabéns Camarada Comandante Luís Graça
A riqueza do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné extravasou em muito e há muito a família dos combatentes da Guiné e é hoje um espaço lido, procurado e consultado para além dos amantes da Guiné pela “intelectualidade”que dele se serve, como é público, para teses de mestrado e de doutoramento…
Conseguiste no seio do teu/meu/nosso blogue irmanar pessoas que pensando diferente se abraçam fraternalmente quando toca a reunir, pois o Luís Graça e Camaradas da Guiné é o denominador comum de todos nós…
Quero agradecer-te o bem que o blogue me fez… e dizer-te o quão me sinto honrado pela tua amizade.
Obrigado Luís.
Parabéns Luís.

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Comentário, de hoje, do co-editor CV:

Luís:
Como se diz na "tropa" e na Função Pública, duas áreas em que me movi a maior parte da minha vida, está a ser uma honra "servir sob as tuas ordens".
Dizia a fadista: - Cantarei até que a voz me doa. 
Nós dizemos: - Manteremos este Blogue mesmo quando a artrite nos dedos nos doa.
Conta comigo.
Muitos parabéns pelos teus 37 anos e votos de muita saúde.
Carlos
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20603: Parabéns a você (1750): Luís Graça, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71), fundador e editor deste Blogue, e Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil SAM do BCAÇ 1933 (Guiné, 1967/69)

Guiné 61/74 - P20603: Parabéns a você (1750): Luís Graça, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71), fundador e editor deste Blogue, e Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil SAM do BCAÇ 1933 (Guiné, 1967/69)


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Nota do editor:

Último poste da série de 27 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20597: Parabéns a você (1749): Mário Serra de Oliveira, ex-1.º Cabo Escriturário da BA 12 (Guiné, 1967/68)

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20602: Manuscrito(s) (Luís Graça) (178): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte III

1. Notas de leitura:


Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.


 Continuando a nossa leitura do "romance" ou "biografia ficcionada" do homem dos sete ofícios que foi o Manuel Joaquim dos Prazeres, que nasceu (1901) e morreu (1977) em Lisboa, mas cuja decorreu, em grande parte, em África, em Cabo Verde e na Guiné.(*)

A autora chama "romance" ao seu livro, em parte para contornar as dificuldades que é escrever sobre alguém que nos é tão próximo: o pai, a mãe, a ama, as irmãs, os amigos de casa... É mais simples dizer-se que é um conjunto de histórias de vida, que giram à  volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para Bolama e depois, já a seguir à II Guerra Mundial, para  a casa de Lisboa.

Nomes de figuras mais íntimas (irmãs, cunhados, amigos e seus descendentes...) foram em parte trocados, para evitar suscetibilidades. Mas a nós, aqui, o que nos interessa são as andanças, por terras da Guiné,  do "Manel Djoquim" (, como era conhecido o "homem do cinema", lembrou à autora nosso irmãozinho Cherno Baldé....).

Não vou dizer que é um "livro escrito a quatro mãos". mas tem, sem favor, algumas "dedadas" dos nossos amigos e camaradas da Guiné, do Valdemar Queiroz ao Carlos Geraldes, do Cherno Baldé ao Vital Suane (nomes, de resto, que são citados no livro, pelos seus contributos).

2. Um dos nossos camaradas que conheceu o "velho" Manel Djoquim foi o saudoso Carlos [Adrião]  Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).  A Lucinda Aranha tentou contactá-lo quando estava a escrever o livro mas ele já tinha tendo morrido, em Viana do Castelo,  em 5 de janeiro de 2012, vítima de ataque cardíaco, aos 70 anos, conforme foi noticiado no nosso blogue (**).

O Carlos Geraldes é citado no livro,  a pp. 85, mas eu não encontrei essa crónica a que ele teria chamado "O dia de S. Cinema",  alegadamente publicada no nosso blogue e também em "O Aurora do Lima". Não encontrei essa, mas encontrou outra, que, espero, tenha sido do conhecimento prévio da Lucinda Aranha. Vamos aqui republicar a parte que nos interessa, em que o Geraldes conheceu, em carne e osso, o "Manel Jaquim", em Pirada, sempre ansiosamente esperado no mato, e de que lhe falavam tanto o chefe de posto coomo o comerciante "M. Santos" (, ou seja, o célebre Mário Soares, de Pirada, por muitos considerado um "agente duplo").  Trata-se de uma das suas cartas, datada de Pirada, 3 de janeiro de 1965, e que é um verdadeiro regalo literário:


Pirada, 03 Jan. 1965

(...) 
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá! Foi no dia antes da véspera de Natal.

De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”. Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.

Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.

Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária.

Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada [, 64 anos...], parecia irradiar uma impressionante força anímica.

Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.

Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu, completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.

Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho.  Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio). 

A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente, gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.

Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.

Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.

O filme, “Hércules e a Rainha ]da Lídia" [ 1959, com Steve Reeves], era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente, faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.

Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega. [O filme pode ser visto aqui, legendado, em versão integral, no You Tube
. Sinopse: Hércules vai a Tebas para ajudar o Rei Édipo a encontrar uma saída democrática e decidir qual de seus filhos herdará o trono. Mas o herói bebe da "Fonte do Esquecimento" e perde a memória, ficando prisioneiro da perversa Rainha Ônfale, da Lídia.]
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados. (...)

3. Ficamos a saber, pelo Carlos Geraldes, os preços de alguns bens de consumo corrente que se praticavam em Pirada, de acordo com a sua Carta de Pirada, 15 de outubro de 1964:

(...) "A carne de 1.ª é a 150$00 o quilo e as bananas, de excelente qualidade, custam 10$00 cada grupo de 4. As galinhas variam entre 10$00 e 15$00 cada e os cabritos 50$00." (...)

Não esconde, por outro lado, a sua admiração pelo comerciante Mário Soares, um homem "providencial" que resolve tudo e tem tudo, até uma máquina de projetar filmes chamar. Éo M. Santos, na correspondência publicada no blogue: "Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem." (****)

(Continua)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II

14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. poste de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)


(...) Em tempos, encontrei no vosso site umas crónicas escritas pelo Carlos Geraldes, uma das quais se intitula 'O Dia de S. Cinema'.

Entrei então em contacto com o Diamantino Pereira Monteiro que pôs o meu cunhado José Filipe Soares, que fez o serviço militar na Guiné, em contacto com o Geraldes. O caso é que sou filha do Manuel Joaquim, o personagem dessa crónica que tinha um cinema ambulante com o qual percorreu toda a Guiné entre 1943/70.

Era minha intenção escrever uma biografia do meu pai, projecto que então abandonei porque tinha entre mãos um outro livro que entretanto foi editado pela Colibri. Finalmente, a biografia do meu pai está praticamente acabada, mas não consigo resposta do Carlos Geraldes e também não o encontro como vosso seguidor. Faço-lhe, no entanto, referência no livro assim como ao vosso site. Espero não haver problema.

Também gostaria de poder contar com o vosso apoio, quaisquer informações, divulgação.

Muito obrigada,

Lucinda Aranha Antunes (...)


(***) Vd. poste de 3 de setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

(****) Vd. poste de  28 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20601: Fotos à procura de... uma legenda (116): afinal, o "Manel Djoquim" andava armado,no mato, com uma pistola metralhadora, facto que a família desconhecia... Resta saber a marca e o modelo: é mais provável que fosse a portuguesa FBP m/948 ou até m/963


Foto nº 1 A
Foto nº 1

Foto nº 2 A


Foto nº 2 

Guiné > s/l > s/d > Não há dúvida que se trata de uma "arma de guerra" e não de caça, uma pistola metralhadora, talvez a portuguesa FBP m/948 ou m/963...  Ou a americana M3 (1942), a famosa "grease subgun" ? As opiniões dividem-se... Thompson não parece, pelo punho em madeira...E M3 também não, que os americanos (General Motors) desenvolveram na II Guerra Mundial, mais barata que (e, por isso, substituta de) a Tommy Gun, a Thompson m/927 (, esta, sin, eternida, na Lei Seca, pelo famigerado Al Capone)... Procurámos melhorar a resolução das fotos acima (Fotos nºs 1 e 2) que, por serem a cores, devem ser dos anos 60.


Fotos (e legenda): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Angola > 1961 >Angola > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, furriel miliciano, aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X... O alferes, que vem à frente, e os três furriéis, imediatamente a seguir, empunham pistolas-metralhadoras FBP (Fábrica Braço de Prata) (1)... As praças, brancas e negras, usam a velha Mauser...Mas, diz o Rosinha, "essas FBP estavam inoperacionais em geral, porque as poucas que existiam em Angola eram da instrução, e com tanto 'monta e desmonta' as molas de recuperação já não actuavam. Mas a mim não me fez diferença, pois que, tirando a carreira de tiro, nunca fiz fogo a não ser à caça. Nem fiz nem ouvi. Vivi 200 dias por ano em toda a Angola, durante os 13 anos de guerra, menos a tropa, em barracas de campanha." (*)

Foto (e legenda): © António Rosinha (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não, não estamos aqui a discutir o "sexo dos anjos"... Se efetivamente for uma FBP m/948 ou até m/963, a pistola-metralhadora que empunha o "Manel Djoquim", a questão agora que se põe é a de saber como é que ele a arranjou (**) ...

Tratava-se de uma arma de guerra, distribuída apenas aos graduados do exército e  às forças militarizadas... O António Rosinha usou-a em Angola, como furriel miliciano, não como civil...

Temos de admitir a hipótese de, na Guiné, ter sido distribuída aos comerciantes e demais empresários (madeireiros, etc.), para defesa pessoal... Possivelmente no início dos anos 60, quando há cada vez mais indícios de "subversão": destruição de linhas telefónicas, sabotagens de pontes, raptos e assassínios de civis, incluindo comerciantes, etc. E,  se sim, quem dá ordem para distribuir armas de guerra aos civis ?

Não era arma para a caça de onças e crocodilos... Para esse efeito, o nosso homem tinha que ter uma ou mais caçadeiras de grosso calibre... Enfim, daqui a uns dias, a Lucinda Aranha poderá esquecer esta questão, da FBP, que é nova, para ela... E ficou de nos mandar cópia das imagens que tem nas pp. 80/81, com melhor resolução...

De qualquer modo, obrigado aos nossos leitores pelas diversas achegas..

PS - Mandei à Lucinda Aranha, hoje, às 12h49 a seguinte mensagem: "

"Lucinda: não há dúvida que o teu pai tinha uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora...Há disputa, entre os nossos leitores, sobre se é uma FBP m/948 ou m/963 (portuguesa) ou uma M3 (americana, do tempo da II Guerra Mundial)... Que idade é que teria aqui o teu pai nestas fotos [, que reenvio, editadas] ? Devem ser fotos, a cores, dos anos 60... Portanto, ele já teria 60 e picos"..

2. Comentário de Lucinda Aranha, com data de hoje, às 16h43:

Apesar de a família desconhecer, tenho de me render à evidência. Como disse, o meu pai nunca fez serviço militar mas, eventualmente, quis uma arma que lhe desse mais segurança. Ele nasceu em 1901, portanto rondava 60 e pouco quando a guerra começou. O Pereira [, o genro do Esteves,] foi para a Guiné por volta de 1956, vamos ver o que ele dirá.

Uma forma de resolverem as vossas dúvidas era contactarem as relações públicas do exército. Eu contactei por  mail as relações públicas da marinha a propósito da fotografia do jogo de futebol na Praia [, pág. 44: uma equipa de futebol da marinha alemã em visita a Santiago] e o sr Costa Canas foi excelente, não só identificou a nacionalidade dos oficiais como mandou fotografias com os fardamentos dos oficiais alemães. Penso que deviam tentar.

Lucinda

3. Pistola-Metralhadora FBP (m/948, m/963 e m/976) (**)

 A FBP é uma pistola-metralhadora de 9 mm,  desenvolvida a partir de um desenho concebido pela primeira vez, em 1940, pelo maj art Gonçalves Cardoso. Coma a 2ª Guerra Mundial, o desenvolvimento da arma ficou em "stand by". É preciso esperar pelo pós.guerra para que o 948 o projecto de uma pistola-metralhadora portuguesa,  entretanto modificado e melhorado, entre em fase de produção.

Como a sigla sugere, a arma foi produzida na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa, em 1948. Foi adoptada para o serviço como m/948. Nessa altura, o  Exército Português apenas dispunha da Steyr m/938, uma pistola-metralhadora moderna mas em pequena quantidade. 

As primeiras FBP foram entregues,  numa primeira fase às unidades da metrópole, seguindo para as colónias as armas consideradas obsoletas.   Em finais dos anos 1950, a principal pistola-metralhadora usada nas colónias era a Steyer 9mm m/942.  A FBP vinha apenas em  segundo lugar. 

Fachada da antiga Fábrica de Braço de Prata
hoje um "centro cultural privado"
Foto: Cortesia da CM de Lisboa.


"Foi buscar a mola telescópica à alemã MP40 e a culatra amovível em aço, à americana M3 (Grease Gun). Inovador e único em pistolas-metralhadoras, foi a inclusão na m/948, de um grampo fixo debaixo do cano para suporte de uma baioneta Mauser".

A arma era distribuída apenas a  oficiais e sargentos das Forças Armadas e a Forças de Segurança. No início da guerra colonial, era a principal pistola-metralhadora nos primeiros tempoos da Guerra de África. Era manobrada sobretudo  pelo comandantes dos pelotões (alferes) e das secções de atiradores de infantaria (furríéis e sargentos). 

Também era  usada pelas unidades de defesa das instalações militares. Acaba por ser susbtituída pela    G3, que passa a equipar toda a secção de atiradores-

 "Nessa altura, a FBP foi relegada para as forças de segurança de instalações ou para unidades de recrutamento local e acabou por ser gradualmente substituída pela Uzi calibre 9 mm e pelas versões de coronha retráctil ou encurtada da G3 m/961".

Funcionamento:

(i) Arma automática, de tiro semiautomático e automático, de funcionamento por inércia.

(ii) A pistola-metralhadora FBP apresenta uma culatra cilíndrica. A abertura da câmara, retardada pela acção conjunta da massa da culatra e da mola recuperadora, dá-se no instante seguinte à saída do projéctil à boca. 

(iii) O percutor encontra-se fixo na culatra. Após a recuperação, esta só inicia o seu movimento de avanço quando o gatilho é pressionado. 

(iv) A alimentação efectua-se por acção da mola do depósito. Um extractor de garra com mola efectua a extracção do invólucro no movimento de abertura da culatra. A ejecção verifica-se quando a base do invólucro encontra, ao nível da caixa da culatra e sobre a base, um ejector fixo. 

(v) Um problema recorrente nos modelos iniciais tinha a ver com o sistema de segurança, o que originava alguns acidentes com as armas que, por exemplo, começavam a disparar ao receberem uma pancada forte (devida, por exemplo, a uma queda acidental) e só paravam quando o carregador estava vazio. 

Especificações técnicas:

Peso: 3,77kg (descarregada); 4,50kg (carregada) 
Comprimentos: Total - 807 mm (coronha esticada); 64 mm (coronha rebatida), Cano - 251mm - Calibre: 9 mm Parabellum
Tipo de Acção: Blowback (sistema de acção que dispensa o sistema de travamento da culatra. Devido à expansão dos gases da “explosão” do cartucho que se encontra no cano da arma, o ferrolho é impulsionado para trás, a mola recuperadora absorve a energia passada ao ferrolho, provocando a seguir o retorno do ferrolho para frente, colocando um novo cartucho na câmara)
Cadência de tiro: 500 tpm
Velocidade de saída: 390m/s 
Alcance: Útil – 50m; Efectivo - 100m; Máximo - 300m
Sistema de suprimento: Carregador de 32 munições
Mecanismo de segurança: Imobilização da culatra
Arrefecimento do cano: Pelo ar.

Variantes:

Limitações da FBP: a  versão original só fazia fogo em tiro automático. Com a versão melhorada, a FBP m/963, introduzida em 1961, passou também a fazer tiro semiautomático. 

Já depois de finda a guerra colonial, é desenvolvido, em 1976,  um modelo melhorado do m/948: a FBP  m/976  dispões de uma manga de refrigeração no cano, o que torna a arma mais precisa e fácil de controlar.

Temos, pois, 3 modelos:

(i) FBP m/948: versão original, com capacidade limitada a tiro totalmente automático;
(ii) FBP m/963: versão introduzida em 1963, com capacidade acrescida de tiro semiautomático;
(iii) FBP m/976: versão desenvolvida em 1976, com uma manga de refrigeração envolvendo o cano que, acidentalmente, também melhorou a precisão da arma. 


(***) Vd. 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

Guiné 61/74 - P20600: Agenda cultural (726): Seminário de História do Colonialismo #2, dia 28 de Janeiro de 2020, pelas 15h30, Campus de Campolide da Nova

C O N V I T E




Detalhes do Evento

Segunda sessão do Seminário de Investigação em História do Colonialismo (Sécs. XIX-XX), dedicado à investigação do passado colonial e dos seus legados históricos, promovido no âmbito da Linha Temática “Colonialismo, Anti-Colonialismo e Pós-Colonialismo: Repensar Impérios e as suas Consequências” do IHC.

O Seminário de Investigação em História do Colonialismo (sécs. XIX-XX) pretende constituir-se como um espaço de discussão informal e aberto em que investigadores/as possam apresentar e debater as suas pesquisas (em curso ou já concluídas) sobre qualquer aspecto da história do colonialismo, descolonização e sociedades pós-coloniais nos séculos XIX e XX.

A primeira edição decorrerá entre Janeiro e Junho de 2020.

Cada sessão será constituída por uma apresentação (20 a 30 minutos) ou duas apresentações complementares (máx. 40 minutos no conjunto), seguindo-se uma troca de ideias sobre a temática abordada.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20594: Agenda cultural (725): Odivelas, sábado, 8 de fevereiro de 2020: 5º Encontro Regional para uma Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina (José Martins)

Guiné 61/74 - P20599: Notas de leitura (1259): "Memórias Boas da Minha Guerra", por José Ferreira - Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades: Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Testemunhar é um assunto sério. Pode-se falar de cabriolices, encontros com sardinhadas, recordações de figuras patuscas, peripécias de erotismo juvenil e muito mais, em dado momento chega a hora da veneração e a veneração é o encontro e o reencontro, em nome do que se experimentou naquele conjunto que agora convive periodicamente, diminuindo os efetivos de ano para ano, imensuravelmente.
Tomo estes testemunhos como porta-estandartes ou lampiões alumiados que se recusam a diferenciar a noite do dia, estão acesos em nome de uma causa que se chama o dever de memória, e nesse dever de memória cabe o homem por inteiro, é o que José Ferreira faz falando de todas as suas experiências de vida, dos cruzamentos que se teceram, de tal modo que em dado momento chegamos ao teatro de operações e ele não se cansa, impante, de falar de uma flâmula que enobrece a história da CART 1689, a mesma que lançou as bases do tenebroso octógono de Gandembel.

Um abraço do
Mário

Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades:
Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente

Beja Santos

O José Ferreira teve a gentileza de me enviar o terceiro volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", matéria publicada no blogue que, curiosamente, ganha outra expressão na dimensão do livro. O epicentro da trama é a sua unidade, a CART 1689 e depois o rodopio dos locais percorridos, não faltaram Catió nem Gandembel, e muito menos Cabedú, Dunane e Canquelifá. Dei comigo a pensar noutro peregrino em Dunane, Cristóvão de Aguiar, o seu livro "O Braço Tatuado" aqui aconteceu o desfecho dramático que ele primorosamente narrou.

Estes relatos obedecem à lei do Caleidoscópio, remexemos as pedras e recriam-se novas visões do muito semelhante que qualquer outro combatente experimentou: amores de ocasião ou paixões furibundas; a homenagem aos enfermeiros, gente desveladíssima que atendia desafortunados da saúde nos postos e que eram conhecidos por doutores; salta-se imprevistamente para a adolescência do José Ferreira, dos seus convívios e encontros por sucessivas décadas, até porque esses encontros podem ter acontecido na Guiné ou em Cabinda ou em Crestuma, pelo menos; há páginas de muita ternura, como aquele rapaz do “sorriso parvo” e da sua Jacinta; há as peripécias dos festejos, das caçadas, entre a guerra e os seus preparativos, o caso da tasca da Rua dos Polacos, na Serra do Pilar; há o orgulho dessa mesma CART 1689 ter sido distinguida com a “Flâmula de Ouro do CTIG”; lembra-se o Capitão João Bacar Djaló, um bravo precocemente desaparecido… Para alguém que já dobrou os 75 anos, mesmo que recolha, como bom aedo, as histórias dos outros, há que reconhecer que mantém uma memória prodigiosa.

Tudo se vai contando sem qualquer rigor pelo calendário nem pelos teatros de operações, contam-se aspetos facetos passados no Sul e depois caminha-se para o Norte, e em dado momento, depois de muita reinação, depois de muita recordação de infância, aliás textos tocantes, entramos numa vibração de guerra, que destoa do cenário geral em que decorrem estas narrativas onde primam a amizade, a boa camaradagem e o humor. É o que se passa naquela tarde de 10 de junho de 1967, a Norte de Banjara, no Oio, para ali houve forte tiroteio, o Simões entra em estado de choque quando descobre que afinara à pontaria sobre uma mulher idosa, ainda hoje é uma chaga aberta na vida do Simões. Segue-se a Operação Inquietar II, em julho de 1967, estavam há escassos setenta dias na Guiné, e capturaram armas, muitas delas tiveram que as abandonar num regresso que foi um suplício onde não faltou o horror da sede. Estamos a falar de uma CART que ajudou a fabricar Gandembel, aquele octógono que era uma pedra no sapato para o PAIGC, em plena terra de ninguém, junto ao corredor de Guilege.

José Ferreira sabe ultrapassar as atmosferas fúnebres, isto a propósito do último almoço-convívio da CART 1689. Assinalam a data da partida para a guerra. Estiveram onze anos sem se reencontrarem, os convívios, de um modo geral, decorrem no Norte, de onde quase todos são provenientes. O número de participantes diminui, a idade não perdoa. Em 2016, houve missa na Igreja da Falperra, passaram pelo Sameiro e pelo Bom Jesus e o banquete foi para os lados da Povoa do Lanhoso. A memória de alguns já não funciona muito bem, deturpam-se e inventam-se histórias e há mesmo casos de amnésia. Houve discursos. Alguém que estava silencioso e que foi interpelado pelo autor, respondeu: “Olha, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa companhia? 153! Sabes quantos militares estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias”. Há discussões entre nortistas e sulistas.

E o rol de memórias culmina com uma ida de José Ferreira ao Porto, vê gente indigente, um desses que ele viu a comer magro tinha uma tatuagem que dizia “Amor à Pátria, Guiné, 1967-1969”. É a amargura pelo abandono, pelo puro esquecimento, o abjeto esquecimento de uma Pátria madrasta que renega facilmente todos os compromissos do passado, incluindo a veneração e o direito à dignidade de quem a dita Pátria mandou combater e trata como fantasmas.

E há um outro aspeto fundamental destas memórias de José Ferreira que aqui exalto: ele é um exemplo acabado do dever de memória, implica-nos sub-repticiamente na obrigação de tudo contar para que nada se perca, para que não se venha dizer que quem andou com as armas na mão prefere ser ignorado, talvez com o receio de que a História nem lhe confira o direito a uma singela nota de rodapé.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)