Recorde-se o que diz a página do Facebook da Catarina Marcelino, deputada à Assembleia da República Portuguesa (*):
(...) "A Associação Afetos com Letras está a construir um pequeno espaço de memória na Montanha Cabral, junto ao marco ali colocado por Amílcar Cabral em 1958 e que mais tarde se torna o local de encontro com os seus homens e onde muita da estratégia militar era definida". (...)
Há tempos publicámos aqui um poste com fotos de marcos semelhantes ao da Foto nº 1, para os quais a antropóloga Lúcia Bayan procurava uma explicação, agradecendo a eventual a ajuda.
2. Escreveu a antropóloga Lúcia Bayan [Vd. aqui o poste P20584 (**)]
(...) Que marcos são estes? [Fotos nºs 2, 3, 4 e 5]
Na ponta noroeste da Guiné Bissau, em pleno chão Felupe, existe uma estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete, onde a população, para as suas idas ao Senegal, em especial Kabrousse, apanha a canoa para atravessar o rio com o mesmo nome.
Entre as tabancas Sucujaque e Tenhate (...) , a estrada, com uma extensão de cerca de 2,5 Km, é muito bonita, ladeada de floresta, como se de um parque ou jardim se tratasse (...).
Nesta estrada existem dois marcos de pedra que não sei identificar. Serão marcos geodésicos? Delimitações da administração colonial? Militares? Propriedade de terrenos?
Um dos marcos, que nomeei Marco 1, está situado junto à estrada, a 12° 20’ 48,27’’ N e 16° 38’ 32,01’’W (valores recolhidos por mim no local), e tem inscrições em três dos seus lados. Na face virada para a estrada está inscrito “M C O G” [,. Foto nº 3], na face traseira “1951” [, Foto nº 2 ], numa das faces laterais encontra-se inscrito “L N 2 0” e “R” e nada na outra (...)
O Marco 2, situado a 12° 20’ 48,56’’ N e 16° 38’ 11,09’’ W, está também muito perto da estrada, mas escondido no mato e, apesar de idêntico ao primeiro, não tem qualquer inscrição (...) , provavelmente devido ao desgaste do tempo. [Foto nº 4]. (...)
[Nota do editor LG: na foto nº 3. a sigla não é MCOG, mas sim MGHG leia-se: Missão Geo-Hidrográfica da Guiné: Vd.
Decreto-lei n.º 33609 de 14 de Abril de 1944: em 1944, o Ministério das Colónias organiza e envia à Guiné uma missão geo-hidrográfica encarregada de proceder ao levantamento geodésico e cartográfico da colónia, e seguidamente ao seu levantamento hidrográfico.]
3. Só o nosso "mais velho" António Rosinha respondeu, na altura, ao repto da antropóloga, Lúcia Bayan, fazendo uso da sua grande sabedoria, experiência, africanismo e inteligência emocional... Afinal, os nossos "mais velhos" veem sempre muito mais longe, mesmo quando estão sentados na base do poilão, do que os "djubis", os putos, dependurados lá no cocuruto da árvore sagrada!...
O Rosinha, com o seu apurado "olhar clínico", não teve dúvidas: "não, minha senhora, esses marcos não podem ser marcos geodésicos"... Afinal, ele foi um experiente topógrafo em Angola e depois na Guiné-Bissau (,aqui ao serviço da famosa TECNIL).
Foi ele que nos deu uma "pista preciosa" que, juntando à informação da antropóloga. nos levou à MGHG - Missão Geo-Hidrográfica da Guiné... ("E não MCOG, senhora doutora!... Veja com mais atenção as fostos dos marcos que tirou no chão felupe"...).
Escreveu o nosso querido amigo e camarada, o "cólon" António Rosinha:
(...) Um vértice (ou Marco) geodésico é um sinal que indica uma posição cartográfica exacta e que forma parte de uma rede de triângulos com outros vértices ..
Aqui na "Metrópole" os marcos geodésicos são normalmente troncos de cone e em Angola, eram troncos de pirâmide em geral.
Normalmente todos com alturas de mais de metro e meio em locais altos e se possível intervisíveis com outros vértices directamente, caso contrário usando torres metálicas centradas sobre esses marcos.
Também nas minhas andanças guineenses, junto de um canal, (que já não me consigo recordar onde) encontrei um marco de cimento igual aos das fotos.
Não é possível que esses marcos da foto e o tal que eu também encontrei há mais de 25 anos, pertencessem a uma rede geodésica principal.
Para mim, foram marcos coordenados por oficiais da marinha, em levantamentos geográficos parciais, para posterior ligação a uma futura rede geodésica.
Nem compreendo para que outra coisa serviria construir uns marcos com fundações tão frágeis.
Era muito caro e muito custoso fazer cartografia na Guiné, havia a MGA, Missão Geográfica de Angola, mas aí, terra muito rica, eram enormes marcos para toda a vida.
Guiné, cuitada!
23 de janeiro de 2020 às 18:38
4. Comentário do nosso editor LG:
O Patrício Ribeiro, lá da sua "ponta do Vouga", acaba de nos mandar um texto, documentado com fotos, sobre as diversas viagens que já fez à região do Boé. Não se esqueçam que ele está há manga de luas a viver e a trabalhar na Pátria de Cabral.
Sobre a "Montanha Cabral", diz-nos que nunca ouviu falar desse lugar, ou dessa designação. Falou, de resto, com com "dois investigadores portugueses, que tu conheces, o Geólogo, Paulo Aves, e o
Biólogo, Luís Catarino, que também fizeram trabalhos no Boé": mas também eles não
conhecem essa "Montanha Cabral",
E depois acrecenta: "Parabéns à Joana Benzinho e sua equipa, que com muito
sacrifício, andam a levar a língua Portuguesa a locais de difícil acesso. Depois da AMI nos anos 80 com a sua equipa médica, chega
mais alguém a falar Português ao Boé, esta língua é pouco falada naquela zona."
Em resumo, nenhum de nós, nem o Cherno Baldé, nunca tinha ouvido falar da tal mágica e sagrada "Montanha Cabral"... E se o Cherno Baldé não conhece, poucos guineenses conhecerão...
Mas também, e como escrevemos ao Cherno, é importante associar o território à memória das gentes... Também nós, portugueses, temos as nossas "lendas e narrativas", desde Ourique a Alcácer Quibir, passando por Aljubarrota e os Montes Hermínios... Afinal, um povo que as não tenha, as tais "lendas e narrativas", é um povo morto ou moribundo...
A ONGD Afectos com Letras está no seu direito de ir ao encontro das necessidades expressas ou sentidas pela população local, com esta iniciativa de erguer, nas colinas do Boé, um pequeno memorial ao papel histórico do Amílcar Cabral como líder de um movimento nacionalista que levou o território à independência.
Que a população local, de maioria fula, chame "Montanha Cabral" à colina Dongol Dandum, está no seu legítimo e pleníssimo direito.
No tempo da guerra colonial, essa designação não existia. Sobre isso, acaba-nos de falar ao telefone o ten gen ref José Nico que teve protagonismo na "guerra de Madina do Boé", travada em meados de 1968 (***).
Para ele, só pode tratar-se da colina Dongol Dandum, base de fogos do PAIGC nos ataques e flagelações contra o quartel de Madina do Boé. E onde se posicionavam também os "snippers", os temíveis franco-atiradores, diz o Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CCAÇ 1589, que ia lerpando,,,
Afinal, estamos aqui, numa boa, não para "fazer história", que é uma coisa chata e enfadonha, que deixamos aos senhores historiadores diplomados, mas tão simplesmente para partilhar memórias... E, já agora, também para nos divertirmos e cuidar da nossa boa saúde mental...
De facto, mal de nós, antigos combatentes, quando um dia viermos aqui reconhecer em público: "Eh!, malta, já não me lembro do que me esqueci!"...
Quem nunca conheceu a "Montanha Cabral", não pode lembrar nem esquecer... Infelizmente foi palco de alguns sangrentos combates onde morreram ou ficaram feridos portugueses, guineenses, cabo-verdianos e cubanos (***)... Esta é que foi a verdade, nua e crua, a de uma guerra que nunca deveria ter acontecido (****)
Mantenhas. Cuidemo.nos!
PS1 - Nunca é de mais reiterar, publicamente, a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartas do chão felupe / região do Cacheun(Varela, Susana, São Domingos, etc.) da Guiné resultam do levantamento efectuado em 1953 pela Missão Geo-Hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do Mandovi, daí a razão de ser dos marcos assinalados pela Lúcia Bayan. O mesmo se passa com as cartas de Madina do Boé (1958), Béli (1959), Jabiá (1959)...
PS2 - Em 1958 Amílcar Cabarl já não estava na Guiné. Em 1953, foi contratado como engenheiro agrónomo pela Repartição Prvincial dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa e, nessa qualidade, foi o rsponsável pelo planeamento e execução do Recenseamento Agrícola da Guiné. Teve então ocasião, em 1953, de percorrer quase toda a Guiné, incluindo a região do Boé. Em 1956/60 foi colaborador eztraordinário da Junta de Investigações do Ultramar, bem como da Direção Geral dos Serviços Agricolas (1958/60), ambas com sede em Lisboa.
Excerto do "curriculum vitae" profissional do engº Amílcar Cabral, redigido em francês, s/d.
(s.d.), "Curriculum Vitae - Amílcar Lopes Cabral", Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84145 (2020-10-26)