sábado, 5 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21611: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - XLVIII (e última) parte: Manuel António Casmarrinho Lopes Morais, major paraquedista, o último oficial QP a morrer na guerra de África, no TO de Moçambique, a 4 de agosto de 1974





1. Fim da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar,  guerra de África ou guerra colonial (, três designações correntes para o conflito que opôs o Estado Novo aos movimentos nacionalistas de Angola, Guiné e Moçambique), sem esqucer a Índia (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual acima], membro da nossa Tabanca Grande , tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

O primeiro poste foi publicado em 7 de janeiro de 2019 (**). O Morais Silva passou, entretanto, a integrar a nossa Tabanca Grande a partir de 7 de março de 2019 (***).

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21568: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLVII: Fernando José Santos Castelo, cap pilav (Guarda, 1941 - Moçambique, 1974)

(**) Vd. poste de 7 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19378: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte I: Apresentação

(...) Mensagem do cor inf ref Morais [da] Silva

Data: 16 de dezembro de 2018 11:59

Assunto: Biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975.

Caro Dr. Luís Graça

Anexo um documento que, finalmente, deu à luz em Novembro de 2018.

Trata-se da biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975.

Se entender de interesse dá-lo a conhecer no seu blog (que continuo a acompanhar) faça o favor de o publicar. (...)



(***) Vd. poste de 7 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19558: Tabanca Grande (473): António C. Morais da Silva, cor art ref, ex-cap art, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga e adjunto do COP 6 em Mansabá (em 1970) e cmdt da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1971/72)

(...) Comentário do editor Luís Graça:

(...) É uma pessoa que muito prezo, pela sua independência, frontalidade e exigência intelectual e moral. Nas "3 linhas curriculares" que lhe pedi, ele não mencionou, certamente por modéstia, a atribuição que lhe foi feita da Medalha de Prata de Serviços Distintos com Palma, pela sua brilhante e corajosa atuação no TO da Guiné, nomeadamente à frente da CCAÇ 2796, em Gadamael.(...) 

Guiné 61/74 - P21610: Parabéns a você (1902): José Pereira, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 5 (Guiné, 1966/68) e Manuel Carvalho, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)


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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21601: Parabéns a você (1901): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21609: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (2): "Tomé, o sonhador", um conto de Natal (Mário Gaspar, que cresceu entre operários e avieiros de Alhandra)

 



Um conto de Natal, da autoria do nosso camarada Mário Gaspar, publicado em "O Olhar do Mocho", boletim da ACSSL - Associação Cultural e Social de Séniores de Lisboa, nº 64, ano 16, dezembro de 2020, p. 4. (*)

Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, "Os Zorbas" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), é lapidador de diamantes reformado, foi fur mil

Nasceu na freguesia de Santa Maria, em Sintra, e foi no Antigo Edifício dos Bombeiros Voluntários de Sintra que foi à Inspecção, embora desde os três anos morasse em Alhandra: "Vila Industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira, desde os meus treze anos namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom. Alhandra foi a minha Universidade. Tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários." (**)

Recorde-se que a vila de Alhandra,no concelho de Vila Franca de Xira, estão ligados os nomes de grandes portugueses como Afonso de Albuquerque (Alhandra, 1452 -Goa, 1515), o médico Sousa Martins (Alhandra, 1843- Alhandra, 1897) (que o povo transformou em santo) ou o escritor Soeiro Pereira Gomes (Baião, 1909 - Lisboa, 1949), autor de "Esteiros" (1941) (obra ilustrada por Álvaro Cunhal, e dedicada aos "filhos dos homens que nunca foram meninos).

Nestes últimos nove meses, de pandemia de Covid-19, o Mário  tem sido também um dos nossos bons e fiéis companheiros, mandando-nos quase todos os dias emails, alimentando o nosso blogue com imenso material, desde poemas a vídeos, mesmo que muito desse material  não seja publicável, por razões editoriais: por exemplo, tudo o que é referente à atualidade política, social e cultural.

É também um exemplo, corajoso, de um camarada nosso que, apesar dos seus problemas de saúde, tem sabido reamar contra a maré e ensinar-nos a maneira como podemos envelhecer, de maneira activa, proativa, produtiva e saudável... A colaboração através da escrita, no nosso blogue ou em boletins como este, "O Olhar do Mocho", é apenas um dos muitos meios que estão à nossa mão. 

Um fratermo alfabravo para o Mário. Um Natal quentinho. Luís


(**) Vd. poste de 19 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20875: (Ex)citações (365): Os ex-combatentes, agora confinados por causa da pandemia de COVID-19... Hoje, como ontem, "presos"! (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette está de regresso a Bruxelas, atira-se ao trabalho, esse trabalho não é só profissional, trouxe de Lisboa documentos, cartas, aerogramas, folhas soltas e imagens correspondentes ao primeiro trimestre de 1969, tudo referente a Paulo Guilherme e a um tal regulado do Cuor, por quem ele sente uma paixão inextinguível.
Escrevendo a Paulo, Annette pergunta se a realidade não supera quase sempre a ficção, basta ler estes patrulhamentos, estas operações, a flagelação sobre Missirá e a dura resistência a que ela obrigou aqueles homens que juraram entre si que jamais se renderiam. Como o leitor verificará, esta regra do jogo de escrever para uma ficcionada mulher amada leva a que todo este estado amoroso acaba por absorver aquela estranhíssima proposta do tal português que fizera a Annette, inesperado encontro, ele disse-lhe que tinha imaginado um romance em que um português contaria a uma estrangeira toda a sua experiência numa guerra de que ela nunca tinha ouvido falar, de um país que é um pequeno ponto no mapa, a Guiné-Bissau, e que aquele encontro a pretexto do romance desaguara numa coisa séria, romance mais dentro do romance é pouco imaginável que possa vir a acontecer.
Deixemo-los nesta felicidade pois quem anda a mexer nos cordelinhos da prosódia também ganha em satisfação, à distância de mais de meio século ele sabe que o renascimento de Missirá foi um dos episódios determinantes da existência, aprendeu que há lutas que não se enjeitam, há causas que dão mais vida aos anos, e quanto mais as sentimos mais tempo vivemos, com dignidade e respeito por nós próprios.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorable Paulo, chegou o momento de te agradecer a minha primeira estadia em Lisboa, apreciei muito comovida o modo como me acolheste, bem como os teus entes queridos e amigos, é uma cidade magnífica, já a visitara duas vezes para conferências, primeiro quando Portugal aderiu à CEE e depois na presidência de 1992, fiquei impressionada nesta última com as mudanças, agora ainda fiquei mais, tu fizeste-me a grande surpresa de me levar ao Parque das Nações, é fascinante, acredito que toda aquela parte velha que vai até ao Terreiro do Paço sofrerá ao longo dos anos grandes benefícios, foi o que eu senti naquele longo passeio que demos no último dia do ano, regressei a casa cansadíssima, tu adoras andar a pé e eu acompanho-te entusiasmada com as tuas descrições, gostei mesmo muito de conhecer o Palácio do Duque de Lafões, imagine-se numa zona ainda relativamente degradada.

Tu tens muito bons amigos, e isso é consolador para nós os dois, sinto que tu és estimado e correspondido nos teus afetos. Aquela passagem de ano em casa da tua amiga Belmira Coutinho, a vermos os fogos de artifício, a comer as vossas iguarias e vir depois para a varanda com as doze passas e o copo de espumante foi mais um momento de felicidade, meti todas aquelas passas à boca a pensar no futuro promissor dos meus filhos e viver permanentemente ao pé de ti. Imagina que enquanto todo aquele fogo ribombava me veio ao espírito uma conversa havida com a minha mãe a propósito do meu pai que faleceu tão novo, seguramente que os sofrimentos a que foi sujeito durante a II Guerra pesaram muito. Depois dizia a minha mãe que recebera na véspera do casamento uma carta do seu noivo a confessar-lhe a adoração que sentia por ela, a exaltar os primores de caráter da noiva e que a frase final a marcara para sempre: “Se te couber um dia fechares os meus olhos no leito de morte, lembra-te que foram olhos que agradeceram os dons da vida em que estiveste como minha aliada permanente, olhos brilhantes de paixão, olhos que te seguiram para todo o lado com enlevo e admiração. E ao fechares os meus olhos tu terás para o resto da tua vida a grata lembrança que soubemos permanecer unidos pelo respeito e na plena fusão dos nossos projetos. E amanhã serás a mulher desse homem que em circunstância alguma abdicará da luminosidade da tua companhia”.

Pois regressei, procurei pôr em ordem o que trouxe de Lisboa, conversei com os filhos e organizei a semana de trabalho. Como é meu hábito, à noite organizo em parte todo o material que me envias, e desta vez trouxe debaixo do braço tudo quanto faltava para saber ao pormenor o primeiro trimestre da tua guerra em 1969. Aqui vai um resumo de tudo quanto pude captar.

A 1 de janeiro, a caminho de Finete e da missa na Capela de Bambadinca, encontras vestígios da passagem de elementos ligados à guerrilha. No dia seguinte regressas a Bambadinca para fazer um reconhecimento aéreo com o major de operações, descobres que a escassos quilómetros de Missirá há bolanhas cultivadas. Não perdes tempo, saem na madrugada seguinte e foram até à ponte do rio Gambiel que já escreveste dizendo é um sítios mais formosos do mundo. Caminham pela orla que separa os regulados do Cuor dos de Mansomine e Jaladu. Vocês foram avistados e logo fogueados com morteiros. Respondem ao fogo e um dos apontadores de bazuca fica ferido, não se sabe a dimensão da gravidade.

Enquanto se fazem obras no arame farpado e anda por ali atarefado o alferes sapador (tu dizes chamar-se Mena Reis) com quem terás contencioso, ele pretende armadilhar locais acessíveis a crianças, descobre-se uma conjura de gente de Finete que se queixou de ti ao comandante, haveria milícias que se queixariam de maus-tratos e que não darias apoio à tabanca, privilegiando Missirá. Não foi precisa uma longa investigação para descobrires que por detrás da cabala estava o comandante da milícia, o vaidoso e pouco amigo do trabalho Bazilo Soncó. Escreves ao comandante do batalhão alertando-o para várias urgências, achavas que a vida militar do Cuor podia estar intimamente associada ao Enxalé, recordavas o estado degradado em que se encontravam os dois destacamentos de Missirá e Finete, mandaram-te teres paciência. Anotei o acervo de leituras que fizeste, as cartas enviadas e recebidas.

Pelas consequências havidas, reproduzi ao pormenor o que tu me mandaste sobre a primeira visita do General Spínola a Missirá, a sua rispidez contigo e também a do comandante de Bafatá. Ri perdidamente com aquele episódio em que o dito general falando aos soldados os chamava por “luz do mato” e um deles interpelou-o da seguinte maneira: “Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quanto traz gerador para Missirá?”. Serás punido com dois dias de prisão simples e assim impedido de teres férias, e ao mesmo tempo recebes o primeiro louvor dado por general considerando que a tua mentalidade ofensiva deve ser apontada como exemplo. Vão seguir-se vários patrulhamentos, cada vez mais próximos dos locais onde se fixa a guerrilha. Há aquela operação Andorra e também escrevi com pormenor o ataque de abelhas em que vocês corriam espavoridos por um lado e os guerrilheiros por outro. Registei aquela ameaça que tu recebeste de Mamadu Jaquité, irás ao seu encontro em 1991, ele era então comandante do Cumeré, transcrevi o teor da ameaça: “Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha pátria. Se quiseres desertar, tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité”.

Vai seguir-se a terrível e desastrosa operação Anda Cá, antes durante um patrulhamento a Quebá Jilã vocês capturaram um jovem que seguirá na operação como guia. A narrativa que tu deixas do estado calamitoso de 300 homens depois da frustração da operação que é interrompida quando tu já avançavas para o objetivo de Madina é quase um quadro de horror, gente no maior sofrimento, a gritar por água e por tratamento dos pés feridos. Segue-se uma operação onde foste a um local chamado Mansambo, pela primeira vez tu entrarás no acampamento abandonado e segues para Bissau para extraíres uma cartilagem formada atrás do joelho direito que praticamente te impedia de andar, é comovente o teu encontro na enfermaria com Fodé Dahaba, não sei se alguém poderá escrever um quadro de dor parecido com o que tu nos dás. E comovente também o facto de o Fodé ter pedido a um enfermeiro para tu ficares numa cama ao lado da dele.

Encadeiam-se mais tragédias. Mal te consegues pôr em pé, vais ao Batalhão de Engenharia, numa localidade chamada Brá e consegues obter muitos materiais para as obras dos teus quartéis. Quando tens alta, a 20 de março e entregas a guia de marcha no Quartel-General, um sargento atira-te a seco uma mensagem há pouco recebida, Missirá fora na véspera atacada, pouco passava das nove da noite, e uma parte muito importante do quartel ou da povoação fica em cinzas. Em estado de estupor, regressas ao hospital militar, à procura de feridos, pois o relato incluía dois mortos, dois soldados feridos e seis civis hospitalizados. Encontras o régulo Malan Soncó numa enfermaria, foram-lhe extraídos estilhaços do peito. Como se fosse o acontecimento mais importante de toda aquela flagelação, o régulo insiste na notícia: “A tua morança desapareceu completamente, só ficaram os ferros da cama. Na tua ausência puseram lá uns cunhetes de granada que aumentaram a explosão. Prepara-te porque não vais encontrar nada”. Consegues, depois de muito insistires, um transporte que rapidamente te leva a Bambadinca e daqui a Missirá. Tu escreves que vai começar um dos momentos mais empolgantes da tua existência, decidiste que em tempo recorde Missirá será construída, disseste isto aos teus soldados e à população, não se pode ler o relato que te fizeram da resistência àquele formidável ataque sem sentir um tremor no corpo, aquela resistência durante horas, as munições já praticamente esgotadas, o pacto de sangue estabelecido entre os soldados, lutariam até ao fim, cada um ficaria com duas balas, se entretanto os guerrilheiros ousassem avançar, receberiam a penúltima bala, a última culminaria na morte do combatente, nunca se renderiam. E quando termina este primeiro trimestre tu dizes que Missirá está a renascer entre a lama e o cimento. É tudo isto que eu estou a coligir para tu depois forjares as tais cartas a que eu vou responder no que tu chamas o romance da Rua do Eclipse. Há momentos, meu adorado Paulo, em que eu me interrogo se de facto a realidade não é mais pujante que a ficção. Como é que foi possível tudo isto ter acontecido? Obviamente tenho lido como toda a gente livros sobre a II Guerra Mundial, aqui bem a sofremos com perseguições, penúria, prisões arbitrárias e até execuções. Há romances notáveis sobre a luta nos guetos, as batalhas na frente russa, as fugas audaciosas de prisioneiros, mas arrepia décadas depois, por causa de uma obstinação em querer ter um império contra os ventos da História, a tua geração ter sido forçada a participar nesta calamidade.

Interrompo por aqui esta narrativa para te contar que eu e vários colegas fomos convidados pela colega Nelly Alter a uma festa em sua casa, numa localidade chamada Saint-Marc, a poucos quilómetros de Namur, um acolhimento formidável e depois do repasto, que se realizou cedo, a Nelly sugeriu que fôssemos passear, não dentro de Namur mas para visitar duas localidades e monumentos que ela muito aprecia. São essas as imagens que te envio, para prazer dos teus olhos.

Renovo a minha gratidão de tudo quanto me ofereces. Hoje sinto-me muito otimista e nada melancólica. Percebi que balbuciavas quando me disseste na terceira semana do mês a reunião da tua Associação se realiza em Florença, acontece que tenho praticamente trabalho todos os dias este mês de janeiro, as instituições comunitárias já estão em pleno funcionamento e tu disseste-me que ainda tinhas quatro dias úteis de férias do ano anterior para gozar e que seriam integralmente passados comigo, em fevereiro. Vou amanhã mesmo falar com o responsável pelo meu calendário de trabalho e ver se é possível em ter uma semana em branco. Telefono-te imediatamente.

Ando com o teu anel, os colegas perguntam-me de onde vem, elogiam-no. “É presente do meu noivo, é anel para toda a vida”. Despeço-me com o maior carinho, com a muita saudade (que é portuguesa e belga), e com os votos de que janeiro passe depressa para eu te ter ao pé de mim, tua, Annette.

(continua)
Fogo de artifício na passagem de ano
Château de Spontin, Bélgica
Basilica Saint-Materne (Walcourt), Bélgica
Fodé Dahaba, a nossa grande perda na Operação Anda Cá
Operação na área do Xime, o Pel Caç Nat 52 participa, à direita António da Silva Queirós, também conhecido pelo 81, segue-se Ieró Baldé, 1.º guarda-costas de alfero, segue-se Serifo Candé, amigo de peito de alfero e o barbeiro Manuel Costa, hoje detentor do blogue A Nova Barbearia Costa, de onde se retirou esta imagem, com a devida vénia.
Festa do Natal de 1970 do Pel Caç Nat 52, imagem herética, como é possível aquele garrafão de vinho junto de bravos Fulas e Mandingas? Mistério insondável
Festa de Natal de 1969 na ponte do rio Undunduma, perto de Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21607: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (1): Da Lapónia sueca, um vídeo da comuna de Jokkmokk, centro cultural e político do povo sami, mostra-nos o seu histórico mercado de inverno, que se realiza todos os anos, desde 1605, com temperaturas a rondar os 25 graus negativos (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

 

You Tube > tinmar4 > Vídeo (11' 52'') > Tradições do povo sami: o mercado de inverno de Jokkmokk (2012) (o filme não tem legendas, nem precisa, mas talvez o José Belo nos  possa fazer um resumo mais alargado ...). Produção da comuna de Jokkmokk. [Ver, de preferência, em écrã inteiro.]

(Reprodução com a devida vénia...)


O mercado de inverno de Jokkmokk realiza-se todos os anos em Norrbotten, no norte da Suécia. É uma mostra  das tradições do povo desta região. Além do mercado, há diversos eventos lúdicos, tais como corridas de renas, trenós puxados por cães, música e arte...

Norrbotten é um condado, o mais a norte da Suécia, com mais de 98 mil quilómetros quadrados e cerca de 250 mil habitantes. A parte norte de Norrbotten fica dentro do Círculo Polar Ártico .A capital é Luleå (c. 48 mil habitantes)- Kiruna é outras das cidades importantes, 

Jokkmokk fica a 10 km a norte do Círculo Polar Ártico. Tem cerca de 3 mil habitantes, e é sede do município (ou comuna) de Jokkmokk. É o centro cultural e polítcio do povo sami. O Mercado de Inverno de Jokkmokk, realiza-e anualmente em fevereiro, desde 1605. Atrai cerca de 50 mil visitantes. A temperatira na época ronda em médis os 25 graus negativos.  Em 2021 será de 4 (quinta feira) a 6 (sábado) de fevereiro... com ou sem Covid.



Fotograma do vídeo com o mapa do condado de Norrbotten e a localização da cidadezinha sami de Jokkmokk.



José Belo. membro da Tabanca Grande 
desde 2009

1. Mensagem de José Belo [, régulo solitário da Tabanca da Lapónia que, ao longo destes 9 meses da pandemia de Covid-19, tem sido um camarada extraordinário, acompanhando. de maneira proactiva,  criativa, tolerante e... que sempre bem-humorada,  a produção do nosso blogue, através quer dos seus frequentes emails, quer dos seus postes e comentários;  obrigado, Zé!... ]

Com membros da Tabanca Grande, como o Zé Belo (o único português a viver no círculo polar ártico), a gente vai seguramente sobriver à Covid-19... E não queremos que ninguém morra. muito menos na praia!

E mais: prometemos fazer tudo para ficar por cá mais uns aninhos!... Neste nosso "chão". muito especial, que não paga IMI...Onde todos cabemos com tudo o que nos une e até, às vezes, com aquilo que nos pode separar...

Aguardamos, entretanto,  outras "prendinhas" dos amigos e camaradas da Guiné (vídeos, fotos, infografias, contos, poemas, cartas, etc.) para animar esta nova série e pôr na árvore de Natal da Tabanca Grande... 
~
Estamos sempre a dizer que a Tabanca Grande tem 822 membros, entre vivos e mortos, mas às vezes até parece que já lerpámos todos!...Amigos e camaradas da Guiné, o Natal de 2020 é uma boa ocasião para fazermos a "prova de vida", anual... Vamos acender as luzinhas de todas as nossas tabancas!...E haveremos de fazer, em 2021, o nosso Encontro Nacional... com "manga de ronco"|... Malta, vão já estendendo o braço para a "bacina"...mas até lá nada de baixar a guarda!... LG



De: José Belo
Data - 23 nov 2020 11h32
Assunto - Uma “fuga” ao isolamento social lusitano

Caro Luís

Ao longo de já bastantes anos tenho tentado fazer chegar aos Camaradas e Amigos alguns dos aspectos por aí menos conhecidos das realidades na Lapónia sueca e na Escandinávia em geral.

Mais de quatro décadas de vivências locais têm-me tornado observador atento.
Por vezes crítico mas,ao mesmo tempo...grato.

Comparando com outras sociedades e outras gentes, a que estou ligado tanto profissionalmente como, e não menos importante, residencialmente, surge a tal “gratidão” por muitas das realidades sociais suecas.

Neste difícil momento de restrições, isolamento, e outras medidas de sobrevivência à pandemia, encontrei este vídeo do YouTube entre material do meu arquivo.

Foi realizado pela Comuna (nome aqui dado às Câmaras Municipais) de Jokkmokk com o fim de divulgar um mercado de inverno numa pequena cidade do noroeste da Lapónia sueca.

Mais do que um milhão de palavras deste mui limitado “escriba”, o vídeo consegue transmitir todo um ambiente e maneira de “estar” locais.

Em alguns dos detalhes filmados quase, quase, quase se poderia encontrar algumas semelhanças com mercados locais lusitanos.

Creio ser apropriado para a época natalícia que se aproxima a passos largos, ajudando a seu modo,no seu exotismo,  para olhares desde a Ibéria,a uma saudável fuga momentânea das preocupações ligadas à pandemia.

Deverá ser visto em ecrã  total pois torna mais fácil a participação do observador.

Um grande abraço do J.Belo

Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem de Paradela


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 2 de Dezembro de 2020, trazendo algumas Memórias de Paradela:


MEMÓRIAS DE PARADELA

Francisco Baptista

Nesse tempo para ir de umas terras às outras, utilizavam-se os caminhos de terra, onde circulavam pessoas a pé ou a cavalo e carros de bois, no geral delimitados por muros toscos de pedra que os isolavam das propriedades. Havia muitos motivos e pretextos para os vizinhos se visitarem, laços de família, negócios, trabalhos em grupo ou de artistas, casamentos, festas anuais, etc. 

Já havia uma estrada municipal de macadame, via muito estreita, onde dificilmente cabiam dois automóveis a par, que saindo de Mogadouro comunicava através de ramais com Remondes, Brunhoso e Paradela no fim de linha. Pouco utilizada de resto porque quase não havia por lá automóveis, as distâncias eram maiores e as vistas melhores por caminhos antigos para quem gostava de apreciar,  com vagar, as culturas agrícolas, os prados, o gado e o arvoredo.

Em Brunhoso havia uma carrinha pequena, que andava sempre talvez a 20 Km à hora ou menos. O dono era um comerciante de cortiça, de apelido Sol, como tal concorrente do meu pai, não se falavam por estórias do tempo do meu avô que morreu cedo, que eu nunca consegui deslindar bem . O meu pai nunca falou disso mas havia uma família de trabalhadores da casa desses meus avós e dos meus pais que falavam mas, por serem muito fabuladores, eu não conseguia saber quando diziam ou não a verdade. Não mentiam mas tinham uma imaginação desenfreada que não conseguiam controlar.

Apesar disso, mesmo sem se falarem, o meu pai e o Sol tiveram sempre boas relações comerciais pois nunca se afrontaram um ao outro nesse âmbito.

Mais tarde, um lavrador inovador que tinha estudado em Coimbra, comprou um automóvel, penso que um Citroën,   já teria eu mais de 15 anos.

Todas as aldeias próximas comunicavam por caminhos entre si assim como com a Vila, onde se faziam as feiras e onde havia os grandes estabelecimentos comerciais.

Paradela fica três quilómetros a sul de Brunhoso. Saída pelo Fundão a trezentos metros, num cruzamento, derivamos à esquerda por um caminho pedregoso para as Rodelas do Fundo. Chegados aqui, vale bem a pena, fazer uma paragem. Para sudeste havia um pequeno vale com alguma água até ao Verão que corria no meio de uma regada (prado com ribeiro), antes de ficar coberto com árvores e arbustos que formavam uma pequena floresta cerrada, que ia dar ao ribeiro da Lagariça, quinhentos mais abaixo. A leste havia uma várzea extensa e fértil, a contrastar com o caminho percorrido. Terra funda e enxuta, a que chamavam Barriguinho, que produzia cereal com abundância, na sua maior parte propriedade de duas famílias ricas da terra. 

O meu pai tinha lá somente cerca de dois hectares, um deles trocou-o cedo por sobreiros, a sua maior paixão.
Paisagem com Brunhoso ao fundo

Maior campina de trigo era o Urzal, que confinava com Remondes, mas menos fértil, para o conseguir ser só em anos de muita chuva, pois as terras eram fracas para suster as águas. Como campo de trigo e centeio, o Urzal era impressionante porque se ligava a outras duas zonas de sequeiro, as Rodelas e os Lameirões. Era belo ver o trigo e o centeio verdejar ao vento nos meses de Março e Abril ou ver a grande campina loira nos meses de junho e julho antes das Segadas.

Depois do passeio por searas da minha mente indisciplinada,   voltemos ao caminho que a viagem é curta. A quinhentos metros das Rodelas do Fundo atinge-se o alto de uma colina que se chama Couço, onde está um marco geodésico a dividir os "termos " das duas freguesias. 

Em frente já em terrenos de Paradela iremos passar pelas eiras da terra, bastante grandes, uma zona de lameiros  algumas hortas, antes de entrarmos na povoação por uma das três ruas principais. À Praça a que os paradelences chamavam Pracinha, com muito orgulho, talvez por estar bem enquadrada e ter uma boa área, em terreno plano, iam desembocar as três principais ruas da aldeia, num lado está a Igreja Matriz, noutro havia uma taberna e um "soto" (mercearia no Nordeste) no outro. 

Era lá, ainda será, que se reuniam os homens a falar da agricultura, do tempo e a comentar as notícias da terra e as de fora. Uma das outras ruas, uma vai para norte em direção à estrada camarária, a outra mais pequena para o sul, na direção do Salgueiro, uma terra anexa com poucas casas a meio caminho do rio Sabor. 

Agora vive lá pouca gente como de resto em todas as aldeias, porém no tempo a que se reporta esta escrita, viviam lá três ou quatro casais todos com muitos filhos.
Pracinha de Paradela
Igreja de Paradela

Nesses tempos havia muito convívio entre aldeias vizinhas. Nas festas, em bailes, jogos de futebol e outros raros convívios a mocidade de uma terra e outra juntava-se muitas vezes. Os jogos de futebol eram muito renhidos e um pouco trauliteiros. O tio Chico Carrasco de Brunhoso, grande trabalhador, muito sociável e amigo da farra, sempre o admirei e muitas vezes convivi com ele, jogou até aos cinquenta anos ou mais, era defesa, a bola podia passar mas o homem não. No fim do jogo era homem para convidar as duas equipas beber à taberna ou ao café.

Nos bailes de Brunhoso, os rapazes de Paradela, sempre melhor arranjados, procuravam agradar e dançar com as raparigas da terra, e elas como mulheres talvez se mostrassem sensíveis à apresentação dos cavalheiros, o que desagradava aos seus conterrâneos, que muitas vezes depois do baile, escorraçavam os "estrangeiros" à pedrada. 

Havia muita picardia de parte a parte mas apesar disso nunca houve danos ou ferimentos visíveis entre eles. Os de Brunhoso detestavam que os de Paradela, vaidosos e fanfarrões, lhes quisessem roubar as raparigas, que eles consideravam suas. Diziam, entre outras maldades: "Paradela com sol a casa" para os desvalorizar e denegrir.

Em tudo isso havia alguma verdade, os de Paradela mais vaidosos, não trabalhavam tanto, os de Brunhoso mais negligentes no vestir, mas trabalhavam muito. Porém nas festas anuais depois do futebol conviviam como amigos e rivais que se respeitam e iam comer às casas dos que faziam a festa.

Algumas regras dos bailes:

Uma jovem depois de se recusar a dançar com algum rapaz, não podia mais dançar nesse dia.

Geralmente os rapazes convidavam as jovens mas a determinado momento havia um mandador que dizia: "Valsas das damas!", a partir daí eram elas que convidavam os rapazes.

O normal era irem só solteiros mas também podiam entrar casados. Algumas vezes, poucas, me encontrei com o meu pai, que era melhor dançarino do que eu, em bailes de Brunhoso. Tive uma prima, muita amiga, que em bailes de família, em casa dela, me tentou muitas vezes ensinar. Dizia-me: Chico faz assim, dois passos para um lado, um para o outro. Eu trocava os passos, era indomesticável!

Uma noite no arraial de Paradela encontrei uma moça alegre, vistosa e divertida, parecia a rainha do baile, fui dançar uma vez com ela e continuamos a dançar, estava descontraído, ia falando e ela a ouvir-me com muitos sorrisos mas nisto o meu amigo que me tinha dado boleia e que tinha o pé mais pesado do que eu, nunca o vi dançar, chamou-me para irmos embora. Estragou-me a festa, em silêncio chamei-lhe todos os nomes, mesmo os mais ordinários.

O padroeiro da festa de Paradela a que eu e os meus irmãos íamos sempre, convidados pela grande família que lá tínhamos, era S. Calisto que foi Papa nos primeiros anos do cristianismo e mártir também, tal como as padroeiras de Brunhoso e Remondes. A Igreja Católica santificou muitos mártires e pô-los nos altares das igrejas de toda a Terra provavelmente para os pobres se resignaram à sua vida miserável. Entretanto, em Roma, depois da conversão de dois Imperadores romanos, cresceu o luxo, a pompa e a devassidão.
Rua de Paradela

O clima da terra era idêntico aos das aldeias ribeirinhas do Sabor próximas, mais quente na ladeira onde havia oliveiras e amendoeiras e mais frio nas proximidades da povoação, onde se cultivava o trigo, o centeio e a cevada e onde estavam as hortas. A distribuição das terras era desigual, muitos pobres com uma hortinha, poucas oliveiras e pouca terra onde semear os cereais, três ou quatro lavradores ricos e alguns mais remediados.

A minha avó materna, que teve alguns irmãos, só teve uma irmã que casou em Paradela. Sendo muito amigas,  cultivaram sempre essa amizade e transmitiram-na à família. A minha mãe só teve irmãos, e as irmãs fazem tanta falta às mulheres, cultivou muito a amizade com as primas duma terra ou de outra. 

Recordo-me de ir lá às festas e ser disputado para almoçar por três ou quatro casas de parentes, os meus irmãos também se tivessem idade para tal, o meu pai muitas vezes, a minha mãe quase nunca, pois estava ocupada com os filhos mais novos ou com a lida da casa.

Tinha lá outra prima, filha de um tio dela, com quem tinha boas relações, embora menos próximas, algumas vezes fui também a casa dela, convidada pelo filho que era da minha idade, infelizmente já falecido há alguns anos.

As primas da minha mãe eram hospitaleiras e simpáticas, os maridos, as filhas e os filhos delas também.

De Paradela era o Jorge, uma alma simples, tinha algum atraso mental, muitas vezes aos domingos e quase sempre em dias de festas em Brunhoso, passava por lá, ficava um pouco à conversa com os rapazes e abalava dizendo que ia beber água a Remondes. 

Outro homem muito recordado em casa dos meus pais era um pequeno lavrador que numa feira de Mogadouro vendeu uma vaca ao meu pai. Foi com um irmão meu a acompanhar a vaca a Brunhoso e o meu irmão conta que foi sempre a chorar. Era uma vaca valente, pouco meiga mas rápida e cheia de génio, o meu pai manteve a descendência dela enquanto pôde, teve filhas e netas valentes como ela. Demos-lhe o nome igual ao apelido do lavrador que mais a chorou.

Para concluir não posso deixar de contar um episódio da minha vida de garoto que me ficou gravado na memória:

Teria 8, 9 ou dez anos, terei sido convidado por um rapaz de Paradela, amigo, primo, não recordo quem, para ir jogar futebol com eles. O que recordo, a minha memória nunca apagou, é que depois de passar pela Praça, na rua de cima que dá para a estrada apareceu à minha frente uma rapariga próxima da minha idade, um pouco magra e mal arranjada, que de uma forma desabrida me perguntou se gostava dela. 

 Eu não gostei confesso, mas por compaixão disse-lhe que sim, segui o meu caminho para o campo de futebol que era mais acima depois de virar à direita numa colina sobranceira à aldeia. Não sei se as bolas rematadas para esse lado com força não sairiam costa abaixo. Quando cheguei estavam lá muitos contemporâneos meus. Formaram-se equipas e não sei se por ser bastante alto e atlético valorizaram muito a minha presença. Eu que nunca soube jogar futebol, tinha tão pouco jeito para isso como mais tarde para dançar, fui muito incentivado e aplaudido, até parecia um craque estrangeiro.

Foi o meu dia de glória no plano desportivo.

Esses rapazes puros e generosos apostaram na minha carreira desportiva, e fizeram-me correr de alegria no regresso à minha aldeia. Depois o sonho acabou, para mim nunca tinha começado, eles quiseram acreditar nele, agradeço-lhes de todo o coração.

Gostei de conhecer Paradela e as suas gentes, passei lá muitos dias felizes.
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Notas do editor

Último poste da série de Francisco Baptista de 21 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21605: Os nossos capelães (14): João Baltar da Silva (Santo Tirso, 1944 - Moçambique, 2011): fez duas comissões no CTIG, de 16/9/1971 (Joaquim L. Fernandes, ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974)



Pe. João Baltar da Silva (1944-2011)

Foto: Cortesia do blogue Aviagens, de Armando Cabreira



IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 
14 de junho de 2014 > Missa na igreja paroquial de Monte Real > 
O Joaquim Luís Fernandes (Maceira / Leiria). 
Tem 15 referências no nosso blogue.É o autor da série "Acordar Memórias"

Foto: © Manuel Resende (2014). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Joaquim Luís Fernandes [ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974], ao poste P21594  (*):


Caro Luís Graça, quando em 2013, quase 40 anos volvidos do meu regresso da Guiné, iniciei o processo de acordar as minhas memórias desse tempo, uma das personagens que se ergueu foi a do capelão P. João Baltar. 

Tinha sido meu amigo, confidente e confessor. Muitas foram as conversas que travamos, não tanto no bar, onde nem sempre havia ambiente para tal, mas mais nas nossas passeatas, ao fim da tarde, avenida acima, avenida abaixo, da pacata vila/cidade de Teixeira Pinto [, hoje Canchungo].

Nas minhas pesquisas na Net para o encontrar, foi com profunda mágoa que li a notícia do seu falecimento em Malema, diocese de Nampula-Moçambique, em 5 de Dezembro de 2011, depois de ter sofrido um AVC que o debilitou e levou à morte.

João Baltar da Silva nasceu em Burgães, Santo Tirso, a 15 de Agosto de 1944. Foi ordenado sacerdote no Seminário de Cucujães a 28 de Julho de 1968.

Integrado na Sociedade Missionária da Boa Nova [, fundada em 1930 como "Sociedade Missionária Portuguesa"], partiu em Missão para Porto Amélia [, hoje Penha,] em Outubro de 1969.

Regressou em 1971 para ser incorporado no exército como capelão militar, tendo partido para a Guiné em 16/9/71 e regressado em 23/6/74. Duas comissões.

Depois da tropa, ainda em 1974, regressou como Missionário a Porto Amélia [, hoje Penha].

De regresso a Portugal, é em 1982 nomeado para a equipa formadora no Seminário de Valadares. Também exerceu as suas funções como sacerdote e professor, com elevado prestígio e reconhecimento, em outras localidades, entre elas Cucujães e Cernache.

Em 1987 parte novamente para as Missões em Moçambique, tendo ministrado em Pemba, Maputo, Chibuto, Matola e Malema.

Em 1994 pediu a nacionalidade Moçambicana.

No testemunho dos que com ele conviveram, se depreende ter sido um Missionário dedicado na sua Missão de evangelizador, mas que não ignorava as realidades humanas daqueles a quem se dirigia, estudando as suas culturas, o que eu já me tinha apercebido quando convivi com ele em Teixeira Pinto. 

Era um profundo conhecedor da cultura Manjaca e chegara a presenciar alguns dos seus ritos animistas.
Consta que ao longo da sua vida, nomeadamente em Moçambique, se referia às suas experiências e amizades de capelão na Guiné.

E é tudo por agora.
Votos de boa saúde e um Natal fraterno, mesmo que confinados.

Um abraço

Joaquim L. Fernandes

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Notas do editor:



(**) Vd. poste de 17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21604: Manuscrito(s) (Luís Graça) (195): In Memoriam: Eduardo Lourenço (1923-2020), pensador maior da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade como povo




Capa e contracapa do livro de Eduardo Lourenço (1923-2020), "Do Colonialismo Como Nosso Impensado" (. Organização e prefácio: Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014. 348 pp.

Dedicatória: "Para o Luís Graça, que conheceu e defendeu o nosso ex-Império, aqui repensado e evocado, com o abraço afectuoso do Eduardo Lourenço. Lisboa, [Feira do Livro,] 7 de Junho de 2014"


1. Não é habitual o nosso blogue dar "notícias da actualidade", e muito menos "necrológicas" (a não ser, obrigatoriamente, dos nossos amigos e camaradas da Guiné)... Mas, de vez em quando, abrimos algumas exceções: é impossível não falar da pandemia de Covid-19 que está a mudar as nossas vidas, desde março de 2020... Como também não podemos de deixar fazer uma referência à morte de um grande português, Eduardo Lourenço (Almeida, 1923 - Lisboa, 2020), um grande intelectual, da estirpe dos nossos maiores. 

E se aqui fazemos uma referência ao seu nome e lamentamos o seu desaparecimento, é porque ele é também um pensador incontornável da nossa identidade, da nossa história, da aventura de Quinhentos, do nosso império, do nosso colonialismo,  da nossa relação com o resto do mundo... Sem esqucer a "releitura" que fez  dos nossos maiores poetas, Camões, Antero, Fernando Pessoa... 

Falando do "império", ele nunca deve ter estado, que eu saiba, na Guiné, em Angola ou Moçambique (mas o seu pai, Abílio Faria,  esteve, como capitão de infantaria, jukgo que SGE,  no início dos anos 30, em Nampula). Mas teve um ano (1958/59), na Bahia, no nordeste brasileiro, e isso terá sido determinante na produção do seu pensamento sobre Portugal e os portugueses...

Não era das minhas relações, nunca privei com ele, terei estado duas ou três com ele ou perto dele, uma na Feira do Livro de Lisboa, em 2014, e outras duas em conferências ou colóquios,  na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, em datas que já não posso precisar. Foi, contudo,  um privilégio poder ouvi-lo e vê-lo em vida, mesmo que acidentalmente.

Falei com ele apenas uns breves minutos, na Feira do Livro de Lisboa, em 7 de junho de 2014. Ele estava só e parecia ter todo o  tempo do mundo, aos 91 anos.... Não era, naturalmente, um escritor de "best-sellers",não tinhas bichas de gente à cata de um autógrafo... Mas estava ali também para dar autógrafos, que a Feira do Livro também é uma Feira de... Vaidades...

Falei-lhe do nosso blogue, da minha condição de ex-militar na Guiné... e pedi-lhe para me autografar o seu livrinho, que acabava de sair em 2014, "Do colonialismo como nosso impensado" (*)... E foi por ele que soube que o seu pai também fora militar e que ele também passara pelo Colégio Militar, como muitos outros filhos de oficiais do exército.... 

Teve então a gentileza de me escrever três linhas de dedicatória, que reproduzo acima... Mas a impressão que guardei dele, mais forte, foi a de um homem, já com os seus 91 anos de "juventude", de uma humildade, afabilidade e empatia raras nos homens das letras e da academia...

Não vou repetir tudo aquilo que a comunicação social e as redes sociais têm dito deste português maior, um "príncipe da Renascença", que vai ser enterradado, hoje, na sua humilde aldeia fronteiriça de São Pedro do Rio Seco, Almeida, numa cerimónia íntima aberta apenas à família e aos seus poucos conterrâneos,  

Os seus livros esgotaram-se nas lojas da FNAC. É sempre assim quando morre um um escritor famoso. Os portugueses são generosos na morte. Somos unanimistas no reconhecimento póstumo dos nossos intelectuais, e nomeadamente dos "estrangeirados",,, Só Pessoa morreu (quase) anónimo. E foi preciso alguém, como Eduardo Lourenço, "de fora", para lhe dar a dimensão universal e genial que ele, Fernando Pessoa, hoje tem...

2. Vale a pena, isso, sim, ver e ouvir a entrevista dada pelo Eduardo Lourenço, à jornalista da RTP Fátima Campos Ferreira, em 25 de abril de 2016. O programa (50' 19''), foi gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível aqui, na RTP Play.

No passado dia 1, dia da sua morte,  vi (ou revi) essa entrevista e, no meu diário, anotei, ao correr da pena, algumas observações de que tomo a liberdade de reproduzir aqui  alguns excertos (**):

(...) Foi uma entrevista intimista. As questãoes postas não eram apenas dirigidas ao filósofo e ao ensaísta mas também, e sobretudo, ao homem, ao beirão, ao cidadão, ao português.ao europeu. (...)

(...) Entrevistadora e entrevistado, estão sentados, a uma mesa, com dois copos de água em cima do tampo. Ele é filmado muitas vezes de lado, de perfil, e de repente pareceu-me ver o perfil, também beirão, de Salazar. (...)

(...) Para um homem que esteve, inicialmente, próximo do existencialismo,as questões que lhe são postas não podiam ser mais...existencialistas: Deus, o sentido da vida, a morte, a condição humana, o amor, a liberdade, a relação com os outros, a família, o ser português... e europeu.

(...) Do Colégio Militar, guarda melancolia...Foi-lhe difícil estar um ano, fechado num colégio intermo. Tirou-lhe a alegria da família e dos irmãos. Reconhece, no entanto, que lhe dei disciplina para a vida. (...)

(...) Qual teria sido o caminhos seguido pelos outros seis irmãos ? Não se falou disso, nem nas naturais dificuldades que teria uma família numerosa, nos anos 30. O vencimento de um oficial subaltermo do exército, nessa époa, era baixo.  Lembra-se de pastar cabras com a avó e a singuralidade de cada ser humano é uma das coisas que o fascina (...)

(...) Ganha uma bolsa, vai para França e aí conhece a futura mulher... O ter podido sair do país e tornar-se um 'estrangeirado', foi muito importante para a sua reflexão e para sua obra... Tem outro distancimamento crítico e afetivo que nunca teria se tivesse feito carreira académica na Universidade de Coimbra onde se licenciou em ciências histórico-filosóficas. Foi assistente do professor de filosofia Joaquim Carvalho. (...)

(...) Não fez uma carreira académica típica, nunca se doutorou, ao que eu saiba.  E em França era um estrangeiro, não dominando perfeitamente a língua, logo no início... Ironia: é hoje considerado um dos grandes pensadores europeus, e o maior pensador português do século XX... Mas não dá importância aos inúmeros prémios e condecorações que recebeu em vida, em Portugal, em França e muitos outros sítios. (...)

(...) Vê-se que é um homem ponderado não é palavrosos, mede as palavras, tem um discurso bem estruturado, encantatório, poético, metafórico, aguarda um, dois ou três segundos antes de responder às perguntas da jornalista... Com o típico gesto pensador, que põe a mão direita sobre parte da testa e da face....Controla as suas emoções, o tom de voz é sereno, mesmo quando há questões que o inquietam, a crise demográfica, o declínio da Europa,  a lenta mas crescente invasão da França e doutros países oriundos de outras cultutas e religiões.. Faz referência explícita aos povos islâmicos e ao terrorismo fundamentalista islâmico, preocupa-o a incapacidade da Europa para encontrar respostas, a solidão do Papa, a crise do cristianismo... E, a claro, fala da morte,  a impossível experiência da nossa própria morte. (...)

Para quem quiser saber mais sobre o Eduardo Lourenço, ver aqui a sua página oficiosa, organizada pelo Centro Nacional de Cultura. 

Por exemplo, ficamos a saber, da sua biografia

"1941 Pensa entrar na Escola do Exército mas desiste dos cursos preparatórios militares na Faculdade de Ciências e presta provas de aptidão à Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, tendo sido admitido; 1944 Conclui o 4º ano da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas; 1945 Frequenta o Curso de Oficiais Milicianos; 1946 A 23 de Julho conclui, com 18 valores, a licenciatura de Ciências Histórico-Filosóficas defendendo a tese intitulada O Idealismo Absoluto de Hegel ou O Segredo da Dialéctica; 1947 É convidado, pelo Prof. Joaquim de Carvalho, para Assistente (20 Outubro 1947-20 Outubro 1953) do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Presta serviço militar na Guarda, como alferes miliciano, no Batalhão de Caçadores 7"...

3.  A Fundação Calouste Gulbenkian está a  editar, desde há uns anos,  as suas obras completas,  que são numerosas. E em parte inéditas. O espólio de Eduardo Lourenço está à guarda da Biblioteca Nacioanl e está a ser estudado pelos especialistas. 

O livro cuja capa reproduzimos acima é uma obra que reúne escritos de várias épocas, tendo como fio condutor uma reflexão sobre o nosso "colonialismo", e que é publicado, em 2014, com "40 anos de atraso"... 

Gostaríamos, um dias destes, de poder deixar aqui a nossa "nota de leitura" pessoal dessa obra. Como dizem os organizadores, trata-se de um volume que reúne "textos publicados e inéditos, completos e fragmentários do Eduardo Lourenço sobre o 'problema colonial' português' ". O índice (resumido) dá uma ideia da riqueza do conteúdo do livro: Limiar; contornos e imagens imperiais: I. Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974); II.No  labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e depois); III. Heranças vivas. 

Como Eduardo Loureno reconheceu foi fundamental a sua ida para o Brasil (em maio de 1958 foi,   por um ano, como professor convidado da Universidade da Baía, reger a cadeira de Filosofia):

(...) "Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o 'arrière plan' do 'Labirinto da Saudade' tem a ver com a minha estadia na Bahia" (...).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 17 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Alfredo Loureiro da Fonseca era tudo menos um arrivista, conhecia a poda, fez frequentes estadias na Guiné. Desde que me embrenhei na leitura dos artigos sobre a Guiné nos primeiros anos da vida do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (já cheguei a 1915) ganhei convicção de que são documentos obrigatórios para qualquer investigador. O entusiasmo dos autores é genuíno, não há para ali patranhas, ajustes de contas, prosápia de quem chegou, deu uma vista de olhos e agora fala de alto. O que Loureiro da Fonseca diz, em meados de 1905, é tremendo: andava-se a fingir que se intimavam populações revoltadas, gastavam-se rios de dinheiro para nada; na Guiné, com fronteiras definidas em 1886, apenas se exercia soberania efetiva em metade da colónia, sabe Deus com que organização administrativa; o comércio estava nas mãos dos estrangeiros e não havia uma política de incentivo para os pequenos proprietários.
Tem que se juntar esta peça ao vastíssimo puzzle que se inicia no século XIX com a abolição da escravatura, com as compras de territórios a régulos, até chegar à desafetação da Guiné de Cabo Verde; temos, felizmente, bastante documentação dos primeiros governadores, deplorando o abandono que lhes dá o Governo Central, sempre elogiando as possibilidades de desenvolvimento económico que a Guiné oferece. Mensagens que caiam em saco roto. Como terá caído em saco roto o diagnóstico feito por Alfredo Loureiro da Fonseca em plena Sociedade de Geografia de Lisboa, estávamos em 1905.

Um abraço do
Mário


Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905

Mário Beja Santos

Alfredo Loureiro da Fonseca, Oficial da Fazenda da Armada Real, teve várias passagens pela Guiné. No Boletim da Sociedade de Geografia, com data de 1905, este sócio ordinário da Sociedade faz uma comunicação com a data de 5 de junho, reproduzida no Boletim. Vamos reproduzir alguns parágrafos que nos parecem eloquentes, não esquecer que o seu autor tem experiência da colónia:
“Pode afoitamente dizer-se que apenas exercemos soberania efectiva em cerca de metade da Guiné, achando-se ainda por completo insubmissas algumas das mais ricas regiões da Província, tais como o Oio, Bassarel, Costa de Baixo, Bijagós e Balantas.
Quase todos estes povos têm sido por vezes batidos pelas nossas forças, mas como às vitórias obtidas nunca se seguiu uma ocupação efectiva, o estado de rebeldia continua sempre a manter-se, sucedendo por vezes o mesmo, como ultimamente no Oio, que a guerra não serve senão para agravar o mal que já existia. Esta ocupação efectiva será, porém, sempre impossível enquanto a Guiné só dispensar de um soldado em média por cerca de duzentos quilómetros quadrados de superfície.

O gentio está longe de ignorar esta nossa miséria e compreende bem a impossibilidade em que o governo da Província se encontra de tirar o mais insignificante proveito de qualquer vitória; foi assim que as operações de Bissau em 1873-1894, as de Canhambaque, Jufunco e Oio, em 1901-1902 e a do Churo em 1903, apesar de largamente dispendiosas, foram em absoluto improdutivas.
Em 1903, o comércio estrangeiro representava acima de 83%. A Guiné é portanto mais uma colónia estrangeira que portuguesa, e isso é a triste consequência do retraimento habitual dos nossos capitais para tudo quanto se assemelhe a empresas no Ultramar, ao passo que os franceses e alemães não hesitam em arriscar algumas centenas de mil francos em operações de comércio sempre que nelas vêem uma possibilidade de lucro, é sabida a possibilidade de entre nós se encontrar uma meia dúzia de contos, quando desde o primeiro ano de uma operação se não possa logo garantir um juro remunerador”
.

Mais adiante, provando que é profundo conhecedor das realidades económicas, dá-nos um quadro sobre o estado de desenvolvimento das suas riquezas, recorde-se que ele um pouco atrás já falou no poderio do comércio estrangeiro na Guiné:
“Concorre bastante para a desnacionalização do comércio da Guiné o mau serviço da ‘Empresa Nacional’ que só de quarenta em quarenta dias ali faz tocar os seus paquetes e, mesmo assim, nem sempre com regularidade, tendo já sucedido por mais de uma vez, nos dois últimos anos, passarem-se mais de dois meses sem comunicações com a metrópole.
Exceptuando as casas das firmas Silva Gouveia, Monteiro de Macedo e Cabral Avelino, os outros negociantes portugueses ocupam-se quase exclusivamente do pequeno comércio de mercearia e não praticam a permuta de produções indígenas, podendo-se dizer que todo o comércio do interior se acha nas mãos das casas Rudolf Titzek & C.ta, Bernardo Soller, sucessores, Louis Rolff & C.ª, Otto Shachtt, Fleckenstein & Moulin, alemãs; Compagnie Française de l’Afrique Ocidentale, Compagnie Coloniale d’Exportation, Compagnie Française du Commerce Africain, francesas; e de numerosos pequenos comerciantes italianos. As duas empresas belgas que depois de 1889 se propuseram iniciar explorações agrícolas e comerciais na Guiné, não viram os seus esforços coroados de êxito, tendo uma delas, a Société Générale d’Échanges, liquidado ultimamente, e achando-se a Compagnie de la Guinée Portugaise talvez em vésperas de liquidação, apesar de ter sido, de todas as empresas comerciais que têm tido por objecto a Guiné, aquela que dispunha de melhores elementos materiais e de um capital mais do que suficiente. Sucessivos erros de administração a levaram em poucos anos ao estado em que actualmente se encontra, sem outro resultado senão o de vir lançar mais uma injustiça desconfiança sobre o emprego de capitais na Guiné.


Diz-se que um sindicato inglês está em ajustes com a Compagnie de la Guinée Portugaise, para adquirir os terrenos que esta ainda possui, destinando-os à cultura regular do algodão em larga escala; pena é que sejam ainda capitais estrangeiros os que compreendem o proveito que há a tirar dos recursos de uma colónia que é nossa.
É triste que assim seja, principalmente quando há quem, sendo português, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, conquistar na Guiné a opulência.
Ninguém ignora o malogro de todas as tentativas feitas até hoje, no país, para se conseguir a organização de qualquer grande companhia para a exploração da Guiné e disso é ainda exemplo frisante a última grande concessão de terrenos feitas em 1903 nas ilhas Bijagós e que, até à data, ainda não começou sequer a ser aproveitada.
Só a quase absoluta ignorância que no país se professa pelo que diz respeito às colónias em geral pode talvez justificar, em parte, esse retraimento de capitais. Torna-se, portanto, indispensável uma propaganda activa e contínua que torne conhecidas as riquezas naturais do nosso Ultramar.

Na Guiné, é indispensável facilitar-se quanto possível a aquisição de terrenos quer para a exploração agrícola propriamente dita, quer para o estabelecimento de pequenas feitorias comerciais, vedetas da ocupação pacífica, que vão no interior da Província trocar os artigos da indústria europeia pelos produtos indígenas. É, principalmente, para as pequenas concessões que deve, em especial, voltar-se a atenção do legislador, porque essas não exigem grandes capitais de exploração e portanto mais facilmente encontrarão quem as aproveite. São os pequenos agricultores que mais merecem a protecção do Estado e, até hoje, os únicos que na Guiné têm feito alguma coisa em favor do desenvolvimento agrícola da Província. É obra patriótica ajudá-los a vencerem as múltiplas dificuldades com que lutam; e a completa falta de incentivos oficiais sugeriu-me a ideia de os reunir, fazendo-os constituir o primeiro sindicato agrícola das colónias. Lancei os lineamentos gerais desse projecto e a minha ideia foi na generalidade bem aceite por todos aqueles a que me dirigi. No meu próximo regresso à Guiné, tenciono prosseguir no meu intento, e se nada conseguir, o que não espero, terei ao menos a consolação de alguma coisa de útil ter tentado em favor do progresso da Província”
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Edifício das Finanças em construção, década de 1930, Bissau, Avenida da República
A Bolama da era colonial, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
O que resta do cinema de Bolama, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21602: Da Suécia com Saudade (85): A base aérea de Beja e o apoio alemão ao esforço de guerra de Portugal em África (José Belo)



José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 
1968/70); cap inf ref, jurista,  autor da série "Da Suécia com Saudade;  vive na Suécia 
há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem 180 referências no nosso blogue: 


1. Mensagem de José Belo:

Date: terça, 10/11/2020 à(s) 01:39
Subject: A base aérea de Beja e o apoio alemão

A localizacão estratégica da planície alentejana, longe de um possível teatro de guerra, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha.

A instalação desta base teve papel preponderante no auxílio alemão a Portugal, destacando-se o fornecimento de equipamentos militares,sem os quais seria muito difícil a Portugal enfrentar as guerras em África. "garantindo ao mesmo tempo o tratamento em hospitais alemães de militares portugueses gravemente feridos em combate!.

Quando foi conhecido o teor do acordo entre os dois países de imediato surgiram críticas por parte dos governos africanos, obrigando o governo alemäo a "prestar mais atençã à sua posicäo externa de solidariedade com os justos anseios dos povos africanos".

A partir de 1964 assistiu-se a um progressivo arrefecimento nas relacöes luso-alemãs,  designadamente no campo militar, com reflexos na utilização prevista para a base de Beja.

Dá-se ento uma alteraÇÃo no conceito estratégico de defesa da NATO.

A obtenção de paridade nuclear entre as duas superpotências em 1966 relegava para segundo plano a rede de apoio logístico na retaguarda que tinha sido concebido para Beja.  (Será detalhe interessante o facto de o governo espanhol só autorizar a passagem de aeronaves alemãs pelo seu espaco aéreo com destino a Beja desde que os pedidos fossem solicitados com uma semana de antecedência e "caso a caso").

Foi programado alojar em Beja 5.250 cidadãos da RFA [República Federal Allemã],entre militares,funcionários,e respectivas famílias.

Näo era possível antecipar do ponto de vista humano as consequências resultantes deste súbito acréscimo de população estrangeira com um "nível de vida e culturalmente superior ao da grande maioria dos residentes da cidade".

Esperavam-se profundas transformações na ordem sócio-económica local.

E, quase espelhando problemas com as bajudas-lavadeiras na Guiné..., uma das preocupações residia no relacionamento dos militares estrangeiros com as... mulheres de Beja!

A comissäo luso-alemã que presidia à instalação do projeto militar, reclamava um código de conduta que "deveria servir de guia aos forasteiros quanto aos costumes locais". Principalmente quanto às relações com as mulheres, pois "seriam mais susceptíveis de causar conflitos com a população masculina". (G'anda alentejanos!)

As famílias abastadas de Beja foram confrontadas com o alastramento do "fenómeno militar alemão".
Não estavam a conseguir garantir a continuidade do "pessoal para servicos domésticos do sexo feminino a que habitualmente se dá a designação de...criadas de servir". (E o ditador lá voltou a "meter água" junto dos seus amigos do latifúndio. )

Os alemães ofereciam um salário mensal de 1.500 escudos que contrastava com os 300 escudos pagos pelas famílias abastadas.[em 1965, equivaleriam, a preços de hoje a cerca de 590 euros, e 118 euros, respectivamente, ou seja, os alemãs pagavam cinco vezes mais].

Por outro lado as instalacöes destinadas ao pessoal alemäo "näo deveriam incluir instalações para as criadas de servir." Estas exigências locais, entre outras, foram recusadas.

Em 1966 chegou à Base o primeiro contingente militar alemäo. Ali se mantiveram até 1993.

A estrutura militar que os alemães ergueram em Beja estava preparada para receber aeronaves de grande porte.

A própria NASA selecionou a pista como alternativa de aterragem para o Space Shuttle. Foram pistas classificadas como as de maior extensão a nível europeu.

Com uma área de mais de 800 hectares, tem condições para receber aeronaves de grande porte para além de 60 aviões tipo C-130 e mais de 300 aviões F-16.

Esta capacidade de acolher grandes meios aéreos é de importäncia extrema como base de retaguarda.
Concluídas muitas décadas desde o arranque de um projecto dimensionado para fazer face a um determinado contexto geoestratégico, cresceram as dificuldades com a manutencäo desta estrutura de grande dimensão pelos elevados custos envolvidos.

As restrições orcamentais impostas pelo governo reduziram a actividade militar na FAP e vieram a reflectir-se na manutenção e funcionamento desta Base.

Mas, e à distância no tempo, talvez seja melhor concentrarmo-nos no sério problema então surgido com as...criadas de servir!

Adaptação / condensação: J. Belo

Fontes: "Folha de S. Paulo", jornal "Público", Ana Mónica Fonseca, historiadora ("Política Externa Portuguesa/Dez anos de relaçöes luso-alemäs 1958-1968").
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)

Guiné 61/74 - P21601: Parabéns a você (1901): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21597: Parabéns a você (1900): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)