Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cumbijã que construímos, literalmente: com sangue, suor e lágrimas. Em primeiro plano os nossos chuveiros e a hortinha do Zé Carlos aproveitando a água do banho...
Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > O Cumbijã que encontrámos. Á direita, o Beires levantando mais uma mina e à esquerda o mausoléu em betão onde um camarada acionou uma mina
Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Pormenor dos cuidados colocados no processo de levantar uma mina: Beires (o especialista em minas e armadilhas), Portilho, Vasco da Gama e Abundância conferenciando sobre melhor forma de levantar mais uma Era sempre uma manobra arriscadíssima.
Foto (e legenda: © Vasco da Gama / Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cumbijã > As minas que levantámos (30)… “Manga de ronco”, mas com lágrimas!
Foto (e legenda): © António Murta (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Assim se prolongou a nossa missão nestas diferentes tarefas: (i) patrulhas de reconhecimento e segurança no mato (ii) proteção da coluna para Buba (iii) e mais intensamente a proteção ao grupo de engenharia na construção da estrada Mampatá-Nhacobá.
Militares de outras companhias, que também participavam na proteção dos trabalhos de construção da estrada, tinham já acionado uma ou outra mina antipessoal e uma máquina de engenharia uma anti carro. De dia para dia e ansiedade era maior no caminho para a frente de trabalhos. Com mil cuidados, paciência, muita perícia dos nossos picadores e, muita sorte (utilizando a linguagem da bola: a sorte dá muito trabalho), tínhamos passado pelos pingos da chuva, mas, infelizmente, por pouco tempo…
Lembro aqui, com alguma emoção:
• os camaradas “velhinhos” do BCAÇ 3852 (1971/73) que nos receberam principescamente com direito a sopa de capim cozinhado com água turva da bolanha e cerveja a 40 graus (#);
• os camaradas “velhinhos” da CCaç 18 (constituída maioritariamente por elementos nativos), com quem aprendemos, juntamente com o BCAÇ. 3852, a lidar com esta “coisa” estúpida da guerra sofrendo e chorando, juntos, os camaradas mortos e feridos em combate;
• os camaradas “periquitos” do BCAÇ 4351 (1973/74), que nos acompanharam (todos “borrados” - tanto quanto nós nos primeiros dias de Aldeia Formosa) em algumas ações quando a região estava a ferro e fogo com a nossa entrada na base do PAIGC em Nhacobá;
• os nossos camaradas e amigos de Mampatá [ CART 6250, 1972/74] :que faziam questão de nos pagar a cerveja sempre que parávamos, junto ao magnífico mangueiro, no seu pacato e simpático destacamento para limpar o pó da garganta, dando-nos ânimo com as suas palmadas nas costas como se despedissem de alguém que ia atravessar o deserto, minado, a caminho do inferno.
Assim se formaram os especialistas das picagens. Um pau com um ferro pontiagudo numa extremidade, como se fosse um caminheiro de São Tiago, que era projetado, durante a marcha, para a terra com a força bastante para sentir um toque diferente, mas não suficientemente forte para não acionar a mina. Convenhamos que era uma tarefa que exigia muita perícia e concentração.
Para quebrar um pouco a rotina do dia a dia, esporadicamente, Aldeia Formosa era flagelada com granadas de canhão sem recuo e/ou morteiro.
Sempre que Aldeia Formosa era flagelada estava fora do quartel (exceto no batismo) com o meu pelotão emboscado, toda a noite, na frente de trabalhos da estrada - “sempre que eu passava a noite fora, o quartel entrava em alerta máxima!!!”.
Dois grupos de combate faziam durante o dia a proteção aos trabalhos de engenharia e pernoitavam, emboscados, durante toda a noite, na frente de trabalhos.
Era sempre uma emboscada vivida com muita adrenalina, particularmente nas noites mais escuras. Vivíamos em permanente sobressalto desconfiando do mais pequeno ruído. As nossas companhias habituais eram os macacos que “ladravam” como cães (ou não fossem na sua maioria macacos cão!). Sempre que um ruído estranha lhes chegava aos ouvidos, “ladravam” funcionando como sentinelas para as nossas tropas.
Numa das emboscadas um soldado afirmava com toda a convicção que um macaco, na calada da noite, lhe tinha roubado a ração de combate...talvez, não seria a primeira vez, contudo, durante a noite todos os macacos são “pardos”…
Os dedos das mãos e dos pés não chegam para contar o número de vezes que fizemos estas emboscadas, vividas sempre com a tensão nos limites. Contudo, inexplicavelmente, por alguns instantes, conseguíamos alhear-nos da situação de guerra e saboreávamos os momentos extraordinários e únicos de passar uma noite em plena floresta Africana. É algo que nos marca para a vida:
• as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida ouvindo os macacos ao longe e o “piar” de uma ou outra ave;
• as noites de trovoada contínua, que nem as festas da S.ª da Agonia [, de Viana do Castelo], fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas de uma beleza indescritível;
• as noites de luar, lindas e quase românticas...sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
• as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma, com o agradável cheiro a terra africana.
De manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçavamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir...
Sentíamos que estávamos a ser vigiados permanentemente pelo IN, já que sempre que emboscávamos na frente de trabalhos, rebentavam com os pontões já construídos em linhas de água na nossa retaguarda. Sempre que emboscavamos juntos aos pontões tínhamos minas na frente de trabalhos.
E sempre que destruíam os pontões, a coluna ficava retida no local várias horas até se construir um caminho alternativo.
Uma ou outra vez ousaram atacar a coluna que se deslocava para a frente de trabalhos. Num destes ataques um soldado africano foi mortalmente atingido.
Era evidente o esforço do IN em retardar ao máximo a chegada da estrada a Nhacobá, ganhando tempo para não perturbar o ataque contundente que estavam a preparar contra Guileje e Gadamael (##), cujo desfecho dramático não só virou o curso da guerra na Guiné como acelerou a revolução de Abril.
Para o ataque a Guileje e Gadamael, a partir da fronteira com a Guiné Conakry, ter sucesso, era importante manter a sua base no interior (Nhacobá), servindo de tampão e ao mesmo tempo de importante celeiro - aqui encontrámos toneladas de arroz que dava para alimentar um exército durante meses. Era também fundamental para o PAIGC segurar Nhacobá mantendo aberto o importante corredor de Guileje permitindo o transito de homens e material para a zona sul do território.
Para atingirem tal desiderato utilizaram a estratégia mais eficaz e ao mesmo tempo mais cobarde para retardarem a construção da estrada: a guerra das minas.
Chegada a frente de trabalhos a Colibuía (uma das tabancas abandonadas), e uma vez que estava prevista a reocupação da mesma pela nossa companhia, os nossos picadores passaram a “pente fino”, milímetro a milímetro, o local. Dois grupos de combate da companhia passaram a dormir, alternadamente aqui.
Já com as máquinas a terraplanarem esta antiga tabanca, criando as condições para aí nos instalarmos, como era recorrente, surge a contra ordem que afinal iríamos ocupar a tabanca mais à frente – Cumbijã.(**) [Vd, infografia abaixo.]
Chegados a Cumbijã, para aí nos instalarmos definitivamente, detetamos e levantamos cerca de 30 minas (pessoal e anticarro: vd. foto nº 2, acima). A eficácia na deteção e levantamento de minas foi de quase 100%. Digo quase, porque Infelizmente os quase 100 % não evitou a nossa segunda vítima grave causada por esta estúpida e cobarde guerra das minas (a primeira foi um acidente de um camarada da companhia a manobrar uma granada ofensiva que lhe rebentou na mão).
Um soldado que estava de visita ao destacamento, por pura curiosidade uma vez que não fazia parte dos grupos de combate, abeirou-se, coisa que todos nós fizemos, junto de uma pequena construção em betão (em homenagem a um soldado morto no local e que pertencia à última companhia que ocupou o local) para ler a mensagem gravada na placa de cimento.
Por uma questão de respeito ao militar morto neste destacamento, ao entrarmos pela primeira vez no local, decidimos manter o mausoléu.
Por ser, obviamente, local de grande curiosidade, já que todos iriam querer ver a dedicatória inscrita no mesmo, foi o local mais picado e verificado por todos os meios. Ficamos incrédulos como foi possível, logo ali, rebentar uma mina. À volta do mausoléu existia uma estrela desenhada com garrafas de cerveja, e não fomos perfeitos, devíamo-lo ter sido, prevendo tal situação.
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Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.
Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para eles e para os novos companheiros: para eles o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz: fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”. Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente ninguém mais reclamou.
Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado entornando a mesma nas nossas calças. Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiu com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.
Dormimos como justos no chão em colchões insuláveis... ainda vazios…
(##) Entretanto, acontece o impensável, Guileje, o aquartelamento mais bem fortificado da Guiné, e muito próximo de nós, foi abandonado pelas nossas tropas (uma companhia que se formou ao mesmo tempo que nós em Estremoz, todos nossos amigos, a CCAV 8350), em consequência do ataque em massa, com armas pesadas e durante vários dias consecutivos, causando várias vítimas entre militares e população…
O PAIGC ocupando Guileje (só 3 dias depois deste ser abandonado!!!), deslocou todo o poder de fogo aí utilizado para Gadamael, completamente sobrelotado com a chegada dos militares e população de Guiléje...
Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.
Comentário de LG:
Unidade Mob: RC 3 - Estremoz
Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 | Regresso: Embarque em 27Ag074
Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMI, em Cumeré, seguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 4Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.
Em 3Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.
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(*) Último poste da série > 24 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22032: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VI: (i) batismo de fogo... com a reza do terço; e (ii) uma patuscada... de gato por lebre!