domingo, 29 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22495: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (30): Bacalhau com couves no forno, à moda da minha avó Maria, que era do Minho (Valdemar Queiroz)

Foto: Cortesia da página do Facebook da Academia do Bacalhau de L.I.


1. Já o verão vai a caminho do outono e, depois, do inverno... Aliás, há um aforismo (da metereologia popular) que diz, "Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno",,,

Tenho pena de quem não fez praia, por mil e uma razões, se calhar a primeira das quais é a constatação de que o tempo também já não é o que era... Ora o céu está nublado,  ora a nortada corta a respiração, ora o banheiro não mandou ligar o aquecimento central,  ora as marés roubaram a areia à praia, ora a senhora Covid-19 é que passou a ditar a moda...

Confesso que este ano não fiz praia. Já não o fiz, o ano passado. "Fazer praia",  para mim significava, desde há uns anos largos, fazer umas boas caminhadas, ao longo do areal, na maré vazia, de preferência de manhã, em praias com rocha e muito iodo... Por outras palavras, apanhar logo uma bebedeira matinal de azul, sol, sal e iodo...no "meu querido mês de agosto"... Que não o é mais...

Por agora, limito-me a ficar na esplanada,à beira-margem,  a apanhar sol,  a ler ou a escrever , a blogar,  a ver o mundo s passar a passar e, de tempos a tempos, comer um choquinho frito, à hora do pôr do sol. Há prazeres na vida cujas memórias emocionais a gente vai  levar para a outra vida... Se nos deixarem, claro, passá-las, lá na alfândega que há entre a terra e o céu... Duvido, no entanto,  que deixem passar o nosso contrabando...

Para já não sei quando (nem muito menos se...) posso voltar às minhas caminhadas da Praia da Areia Branca até ao Paimogo, passando pelo Vale de Frades e o Caniçal... E  a "cartografar" as rochas, com  a máquina fotográfica em punho ou a tiracolo... Lamentavelmente, já nem fotografia faço... 

Enfim, espero que o meu ortopedista, esse, sim,  faça um milagre lá para outubro ou novembro... É bom, amigos e camaradas,  acreditar em milagres, mesmo quando se  é um homem de pouca fé...

2. Mas já que falamos do verão fugidio e incerto de 2021, do verão do nosso descontentamento, é de perguntar: e as nossas comidinhas, amigos e camaradas ? 

Desde a primavera que não publicamos um poste da série " No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande"... O último foi o nº 29, com data de 22 de abril de 2021 (*).

A "chef" Alice, cá pelos meus lados, no meu "restaurante favorito", continua a fazer coisas boas, e às vezes muito boas: por exemplo, um arrozinho de lingueirão, há dias,  ou um xarém de ameijoas (, que aqui não há conquilhas), prometido para a próxima semana, a par de um espadarte grelhadinho... Coisas que não tenho publicado para que não me acusem de "favorecimento pessoal" e de "concorrência desleal"... E falo dela, da "chef" Alice, porque eu nem para ajudante  sirvo: sei abrir umas ostras, cortar ao meio um lavagante ou preparar uma sapateira... Ah!, sei abrir também latas; de atum, de feijão, de grão de bico...

Mas, como os nossos vossos vagomestres andam pouco criativos ou falhos de iniciativa, vou ter que arrancar com o material que há... E este é do bom, é do nosso Valdemar Queiroz que, pese embora a sua costela minhota, ainda está de longe nos poder e querer  revelar todos os seus secretos dotes culinários...


3. Escreveu o Valdemar Queiroz, em comentário ao poste P22494 (**);


João Crisóstomo, peço desculpa de, num poste atrasado, ter chamado "Encontros do Bacalhau" à ilustre e internacionalmente famosa "Academia do Bacalhau".

Não há dúvida, o bacalhau faz parte do ADN dos portugueses.

Teria sido o meu conterrâneo navegador-armador João Álvares Fagundes (c.1460-1522), a quem se deve o reconhecimento de parte das costas do nordeste americano, quem começou a comercializar o bacalhau que, depois de salgado e seco, servia de alimento nas grandes viagens dos Descobrimentos e nos períodos de abstinência / jejum de comer carne.

Depois, foi o nunca mais parar, confecionado de 1001 maneiras, e que toda a gente gosta.

Nas minhas várias idas aos Países Baixos, à casa do meu filho, habituei os brabantinos da família (Brabante, Província Neerlandesa fronteira com a Bélgica) a comer bacalhau, que eles chamam "kabeljauw" (lê-se: "cabaliau"), na ceia de Natal e agora atiram-se ao bacalhau para assar na brasa de que também gostam.

Só para dar apetite, vai uma receita que a minha avó Maria (***) fazia, às vezes, em dias de fornada de pão:

Ingredientes:

Bacalhau demolhado
Folhas de couve
Linha grossa
Batatas
Cebola
Azeite
Broa de milho

Modo de fazer:

(i) depois do bacalhau demolhado, passar folhas de couve por água fria; 

(ii) descascar e cozer as batatas;

(iii)  a postas de bacalhau são envolvidas na couve e seguradas com linha grossa para ir ao forno;

(iv) enquanto estão no forno, estando as batatas cozidas, cortam-se às rodelas e alouram-se em azeite na sertã;

(v) as postas são retiradas do forno quando as folhas de couve secarem completamente;

(vi) retira-se a linha, colocam-se as postas numa travessa juntamente com as rodelas das batatas fritas;

(vii) e para finalizar põe-se por cima cebola às rodelas finas e rega-se com bastante azeite;

(viii) acompanha-se com broa de milho... e tinto ou branco do melhor!

E depois vai um 'Vai Acima, Vai Abaixo, Vai a Cima e Bota Abaixo', que deste já não há mais.

Valdemar Queiroz

PS - A receita do bacalhau não era propriamente da minha avó Maria, em várias casas também era assim feito em dias de 'cozedura' da broa de milho. A minha mãe, em Lisboa, fazia no forno a gás. No forno a lenha, sobrava calor para as couves com 'cosedura' em volta do bacalhau a assar.

Mas, como andas de braço dado com uma afamada cozinheira de estrelas Michelin, podes chamar, será a 1002, "Bacalhau da Queiroza à moda da Alice".


4. Eu prometi publicar-lhe a receita, em honra dele, que é um homem "sozinho em casa, resistente e resiliente, que brinca com a sua DPOC, quando ela deixa".... E aqui vai, mesmo não tendo nenhuma foto do petisco (, publico a imagem do emblema da Academia do Bacalhau de Long Island, Nova Iorque), nem sabendo como a avó Maria chamava a este prato, lá do seu Minho, região donde se diz que "não há receita má... nem fome boa":

"Bravo, Valdemar, só preciso de arranjar uma foto à maneira, depois publico a receita da avó Maria na nossa série do "Comes & Bebes"... Este saber gastronómico lusófono (mais do que lusitano), que passa de geração em geração, não pode perder-se!... Bolas, e ainda falta tanto tempo para o Natal!... Luis"

PS - Recordo que a avó Maria era de Afife, Viana do Castelo, onde o Valdemar viveu até aos 9 anos. (***)
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Notas do editor:

(*) Últimas sugestões;

22 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22125: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (29): E por favor nem me enganem, são favas suadas, não são ervilhas, muito menos escalfadas... (Luís Graça)

15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22105: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (28): sável frito com açorda de ovas, à moda da "chef" Alice, inspirando-se na gastronomia de Vila Franca de Xira

10 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22091: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (26): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte III: cozido à portuguesa, para despedida do inverno; frutos do mar, como saudação à primavera

28 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21954: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (23): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte II: Canja de garoupa e pimentos estufados em vinho do Porto

11 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21887: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (19): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte I: ainda não é verão (, mas um dia destes há de ser!), e já me está a apetecer uma saladinha de queixo fresco e uma paelha, com um bom branquinho...

(**) Vd. poste de 28 de agosto de  2021 > Guiné 61/74 - P22494: Tabanca da Diáspora Lusófona (17): A(s) nossa(s) Academia(s) do Bacalhau: Long Island, Nova Iorque: "Gavião do penacho, de bico p'ra cima, de bico p'ra baixo, vai acima, vai abaixo"... (João Crisóstomo)

(***)  Vd. postes de;


27 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21203: Efemérides (331): Os 100 anos de Amália, "o povo que lavas no rio" e Afife (onde vivi até aos 9 anos) (Valdemar Queiroz)

sábado, 28 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22494: Tabanca da Diáspora Lusófona (17): A(s) nossa(s) Academia(s) do Bacalhau: Long Island, Nova Iorque: "Gavião do penacho, de bico p'ra cima, de bico p'ra baixo, vai acima, vai abaixo"... (João Crisóstomo)


Estados Unidos da América >  Long Island, Nova Iorque > 25 de julho de 2021 > O João e a Vilma na festa de aniversário da Academia do Bacalhau de L.I., criada em 2008. 

Foto: cortesia da página do Facebook da Academia do Bacalhau de L.I., comunidade.



1. Mensagem do João Crisóstomo, membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 160 referências no blogue, a viver em Queens, Nova Iorque, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, ex-alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):

Data - terça, 27/07, 05:20

Assunto - Academias de Bacalhau no Mundo




Meus caros Luís Graca e demais camaradas,

Com a melhoria da situação pandémica, a vida pouco a pouco está a voltar ao normal .

Ontem, dia 25 de Julho, fomos a uma “festa de aniversario " da Academia de bacalhau de Long Island onde eu e a Vilma nos fizemos membros há três anos.

As reuniões mensais desse "clube" deixaram de ser possíveis desde que começou a pandemia de Covid -19, mas agora foi uma satisfação grande rever os nossos amigos que não víamos há mais de um ano. E a Vilma, embora não seja portuguesa, é também membro de pleno direito. Aliás, até me surpreendeu pelos seus "conhecimentos de português" …

Estávamos nós a fazer uma saudação "Gavião do Penacho”... a que associamos em uníssono o apropriado refrão, "Gavião do Penacho, de bico p'ra cima, de bico pr’a baixo, vai acima, vai abaixo…(isto enquanto com os copos fazemos os respectivos movimentos)... E eu, entusiasmado, esqueci-me da frase e, "passando em vão” a frase seguinte, adiantava-me já para beber o meu copo, cantando "bota pr’a dentro", quando a Vilma me agarrou o meu copo e me parou : "Não, João, before "bota pr’a dentro" you have to say ”vai ao centro” … and then "bota p’ra dentro"…

Ora eu… que pensava que ela nunca mais ia falar português…

Por descuido meu ( até há duas horas não tencionava falar sobre isto), não fiz fotos, mas fica para a próxima vez! O repasto é sempre generoso: desta vez foi: bacalhau cozido com batatas; carme de porco à alentejana; arroz/paelha de mariscos; bacalhau no forno; galinha assada…salada de grão de bico, etc etc … para não falar já da variada sobremesa que é de fazer um santo franciscano pecar de gula…

E depois há dança. Ora como a minha “ciática" ainda me inibe para tanto, a Vilma não teve outro remédio e foi dançar com a fotógrafa… e pela foto podem ver que não estava a chorar…

Isto tudo vem a propósito das Academias de Bacalhau. Estive a falar com o Valdemar Queiroz e fiquei surpreendido que ele nunca tivesse ouvido falar dessa associação. E como não temos aqui ( por enquanto!) nenhuma “Tabanca", como vocês têm em Portugal, resolvi aproveitar o que tenho para vos dizer que não perdemos o nosso tempo. "Quem não tem cão, caça com gato", certo?

Mas, para os que não conhecem, aproveito para dar uma ideia do que são as Academias de Bacalhau. O nome não foi escolhido pelo seu relacionamento com o nosso popular pescado. Ou aliás foi, mas não directamente: O bacalhau foi desde sempre , e continua a ser, um “elo” comum a todos os portugueses espalhados pelo mundo; o nosso "fiel amigo", onde quer que estejamos.

Em 1968 na África do Sul no meio da comunidade portuguesa surgiu a ideia de se juntarem para celebrarem Portugal (o dia 10 de Junho) e a amizade que a todos os unia. 

Essa associação tinha também como finalidade ajudar alguém que precisasse de ajuda, uma associação de amigo para amigo. O símbolo e nome de bacalhau foi o escolhido por representar o amigo comum de todos os portugueses sempre e onde quer que estes se encontrem.

"A ideia pegou” e a essa primeira associação que é chamada desde então a "Academia Mãe" seguiram-se outras, primeiro na África do Sul, hoje com onze "academias" e depois pouco a pouco pelo mundo fora.

Neste momento há Academias de Bacalhau por toda a parte. Vim a saber que existem em Portugal dezoito academias, duas destas na Madeira e Porto Santo e três nos Açores. 

Na última lista que me foi dado ver encontrei duas no Canadá , cinco nos Estados Unidos, oito no Brasil, três na Venezuela, cinco na França; Moçambique e Suazilândia com duas cada. Bélgica, Luxemburgo, Inglaterra; Angola, Namíbia e Austrália cada um com a sua Academia.

A pandemia veio alterar os planos mais recentes, mas sei que no 48º congresso que teve lugar em Portugal, no Porto, em 2019, foram aprovadas três novas academias, uma em Macedo de cavaleiros, uma em Sydney, Austrália e outra em Quito, no Equador.

Se bem que o propósito ou fim desta associação seja, como na maioria dos outros clubes , além de de proporcionar tempos e meios de recreação, promover os nossos valores e assim conservar e manter unidas as comunidades onde existem,  é de salientar no caso especial das Academias de Bacalhau o espírito primordial de generosidade que caracteriza e anima estas Academias. Em todas as reuniões esse fim de altruísmo e de cuidado pelos que precisam é sempre relembrado; e sempre se é dado a conhecer o que se fez ou o que vai acontecer nesse sentido.

Lembro que, l
ogo que entrei para o clube, sem saber ainda desta sua notável característica especial de ajudar os outros, eu fui informado que aquela Academia do Bacalhau tinha decidido ajudar a escola S. Francisco de Assis em Timor Leste. Eu não tinha pedido nada, mas eles souberam, nem sei como, que eu, o Rui Chamusco, o casal Sobral e mais mais dúzia de pessoas estávamos a construir essa escola para as crianças esquecidas nas montanhas.

Foi pois uma surpresa grande quando me apresentaram um cheque de mil dólares para essa escola ; e logo essa quantia foi mais que dobrada pois houve um membro dessa Associação que decidiu de sua lavra aumentar essa quantia com uma ajuda pessoal no mesmo valor. E como os bons exemplos, quando conhecidos por vezes também se multiplicam, passados umas semanas depois esse gesto de solidariedade foi repetido pelas escolas portuguesas Antero de Figueiredo, de Farmingville e pela escola S. Teotónio,  de Brentwood.

Bom, meus caros, vamos gozando as nossas tertúlias e academias enquanto ciáticas e outras coisas da idade não nos chateiam e nos obrigam a "ter mais juízo” e a ficarmos de observadores, sentados nas mesas.

João Crisóstomo, Nova Iorque


Fotos: © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné 61/74 - P22493: Os nossos seres, saberes e lazeres (465A): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Sines tem importantes atrações, incluo-o obrigatoriamente no roteiro estival deste canto do sudoeste alentejano, São Torpes é o polo da atração, areais e falésias magníficas num perfeito contraste com o interior rural. Depois da magnífica jóia que é a Igreja de Nossa Senhora das Salas encaminhei-me para ir cumprimentar Emmerico Nunes, não bati propriamente com o nariz na porta, trouxe publicações que me ajudam a sintetizar a obra desse senhor que encantou alemães, suíços e espanhóis, não foi só um desenhador de humor emérito, deixou bela pintura, gravuras, desenhos que atestam o seu traço inconfundível. E depois o Centro de Artes de Sines, sempre excitante, subo e desço todos os andares como se fosse a primeira vez e guardei imagens de algumas obras de uma exposição ali patente do acervo do colecionador António Cachola. E vamos continuar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (13)

Mário Beja Santos

Três grandes desenhadores de humor triunfaram na cena internacional e deixaram obra esplendorosa que bem merecia ter um local próprio para ponto de encontro desse diálogo de génios: Leal da Câmara, Emmerico Nunes e Vasco de Castro. Emmerico ficou ligado a Sines onde tem um centro cultural desde 1986. Ele trabalhou em Munique e Zurique, era filho de pai português e de mãe alemã, nascido em Lisboa em 1888. Partiu para Paris em 1906 e em 1911 instala-se em Munique onde inicia uma carreira de desenhador humorístico na influente revista Meggendorfer Blätter. Com o anúncio da I Guerra Mundial, regressou a Portugal, seguiu depois para Zurique, e depois regressa à pátria, passando a colaborar ativamente com o universo satírico espanhol. Os alemães apelam ao seu regresso, mas, entretanto, ele ia-se afastando do traço alemão, ajeitara-se ao cânone nacional. Colaborará em diferentes obras do Estado Novo. Injustamente esquecido, foi um desenhador de humor ímpar. Vim procurá-lo ao Centro Cultural, estava preterido por exposições de alunos de uma escola de Sines, limitei-me a trazer publicações alusivas ao seu génio. Para que conste
Emmerico Hartwich Nunes
O Centro de Artes de Sines é um arrojado empreendimento dos arquitetos Francisco e Manuel Aires Mateus, foi finalista do Prémio Europeu de Arquitetura Mies van der Rohe, alberga um centro de exposições, um auditório, a biblioteca municipal e o arquivo histórico municipal. É sempre com a maior satisfação que aqui venho visitar esta arquitetura-fortaleza, é um dos mais belos edifícios de Sines. Dada a lógica da construção, não é fácil captar em toda a extensão as suas linhas, aqui ficam alguns pormenores, ainda por cima decorriam obras nos arruamentos próximos, tive que procurar junto de uma betoneira um ângulo um tanto elucidativo do que o arrojo arquitetónico oferece.
Decorria uma exposição de obras da coleção António Cachola, há peças que me deslumbram, mas um bom quinhão delas deixa-me completamente indiferente. Gosto da forma obsessiva com que Jorge Molder se fotografa e deforma o cânone da composição, rendo-me aos diálogos que Sofia Leal implanta num espaço, jogando na construção estética de dois corpos dissonantes, deles avultando uma inesperada harmonia, não escondo a atração pelo tríptico fotográfico e a sua alusão a intemporalidade, mas é a organização do espaço cenográfico a que chamamos museografia o que mais me impressiona, e aqui o registo, antes de partir para uma outra visita e seguir para São Torpes, está na hora do banho de mar da neta.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22473: Os nossos seres, saberes e lazeres (465): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (5) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22492: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XV: Kingston, Jamaica, 2018


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Kingston, Jamaica  >  2018 

Texto e fotos recebidos em 12/8/2021


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.



Kingston, Jamaica, 2018


Pouco sei sobre a Jamaica, excepto que é uma ilha das Caraíbas com um primor de praias para férias inesquecíveis.

Aqui nascem e crescem rapidíssimos corredores de atletismo, como Usain Bolt e comparsas. Com todo o respeito, são uma espécie de gazelas, ou coelhos e coelhas à solta pelas pistas do globo onde batem sucessivos recordes do mundo (Foto nº 1)

Bob Marley, homem desta ilha e da música raggae, é considerado um herói nacional, com estátuas e tudo, espalhadas por toda a parte. A sua música não me entusiasma, já não tenho idade para abanar o capacete, e o resto, com ritmos caribenhos.

Desembarco do Armonia, 58 mil toneladas, da MSC (Mediterranean Shipping Company, a maior companhia de navegação do mundo). Nesta volta, o navio saltita de ilha para ilha, deixando-nos um dia inteiro livre em cada porto para espairecer o espírito e fruir o que nos aprouver.

Com a minha parceira, tomo um autocarro rumo a Kingston e, no caminho, procuro praia. Desço rápido, logo adiante do porto, páro numa enseada de areias finas e águas tépidas, comme il faut. Não muita gente, a beira-mar quase toda por nossa conta, a água quentinha, mergulhar, nadar até que os braços doam. Horas e horas dentro de água, prazeres sublimes em ilhas das Caraíbas.(Fotos nº 2, 3 e 4)

Cristóvão Colombo aqui arribou em 1494, na segunda viagem rumo às Américas e, com os castelhanos, chegaram as doenças que gradualmente dizimaram os arawaks, o povo autóctone da ilha. Durante muitos anos sob um fraco domínio espanhol, a Jamaica foi lugar de abrigo e fixação de piratas que infestaram estes mares.

Num shopping a caminho de Kingston, tirei um retrato sentado ao lado de uma mulher pirata, de madeira, ajaezada a rigor, com um grande decote. Não assustava ninguém, embora como o capitão da história, tivesse um tremendo gancho substituindo a mão direita. (Foto nº 5)

A Jamaica passou a colónia inglesa em 1655, e tornou-se independente dos britânicos em 1958. Dona do seu próprio destino, creio que a ilha vive fundamentalmente do turismo, embora seja um grande produtor de açúcar e bananas. Com apenas três milhões de habitantes, mais de 90% da população são descendentes dos antigos escravos negros, que, a partir de finais do século XVI, foram trazidos de África.

Gostaria de regressar, ficar umas semanas para me esparramar por estas formosas praias e entender melhor este chão que piso.

António Graça de Abreu

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22450: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIV: Havana, Cuba, 2018

Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um período em que já não é possível esconder a exaustão física, o ataque de paludismo foi violento, Paulo começa a achar completamente descabido aquele plano operacional de idas e vindas ao Poidom que não levam a ponto nenhum. Foi o que se verificou com a operação pomposamente intitulada Pavão Real, em que se andou ali aos papéis, sempre a dizer que não se juntavam os destacamentos mas acabando por pôr-se cerca de 200 homens em cordão quilométrico. Ele vai partir para Bissau, alguns dos seus amigos já desandaram, ainda baterá à porta do batalhão de engenharia, visitará dois médicos para afinação de olhos e ouvidos e da estrutura óssea, vai seguir-se uma tragicomédia na psiquiatria do Hospital Militar de Bissau, foi o episódio mais delirante de toda a comissão, como Paulo adoraria rever o capitão Oliveira e o furriel Alves, nunca mais esqueceu uma estrondosa disputa entre ambos, e em pleno zaragateio exibiam facas rombas.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon étincelle en permanence, imagina tu que estava ontem a arrumar papéis de âmbito profissional, têm a ver com o meu trabalho de coordenador do Concurso Europeu do Jovem Consumidor, e não resisto a contar-te o que se passou no verão de 1998, escusado é dizer que ainda não nos conhecíamos. No início do ano letivo enviei para todos os estabelecimentos de ensino o anúncio do tema desenhado para esse ano, como publicitar um género alimentar saudável. Para meu desgosto, mesmo insistindo e voltando a insistir, sempre prontificando-me a dar qualquer esclarecimento ou a enviar documentação suplementar aos professores interessados, não ultrapassaram três dezenas as inscrições. Na hora da entrega dos projetos, verifiquei que uma escola do Alto Alentejo tinha feito um trabalho primoroso, imagina tu, a história do vinho e as qualidades do vinho da região, tema inequivocamente incompatível com o que se propunha, os jovens não podem beber álcool antes dos 16 anos. Em segundo lugar, apareceu um curiosíssimo trabalho sobre a Pera Rocha, uma fruta típica da região Oeste, rija e muito saborosa. Analisando o que enviaram, era tudo de altíssima qualidade exceto o vídeo inicial, uma daquelas paspalhices em que a senhora professora faz a preleção sobre a Pera Rocha e os meninos inclinam a cabeça, muito compostinhos. Convoquei a professora, reconheceu que era necessário dar uma volta às imagens do vídeo, sugeri as belezas locais, o Bombarral, acedeu e até se excedeu, tivemos que depurar, vinha extenso. E a prova dos miúdos era uma originalidade, ao som da música do Verão (das Quatro Estações de Vivaldi), soerguiam-se, e havia aquela metamorfose das peras se transformarem numa apoteose de dança. Tudo seguiu para Bruxelas como representante da prova portuguesa, a comitiva partiu para a prova final do concurso, fiz parte do júri, a convite do meu amigo Maurice Vlieghe, houve discussão acesa para os primeiros três lugares, o Bombarral ficou em segundo, tu não podes imaginar a alegria daqueles jovens quando perceberam que tinham sido premiados. Foi a única vez que um concorrente português esteve entre os três primeiros lugares.

Começa a ficar claro o que faremos durante os três primeiros quinze dias, vou enviar-te um plano de viagem, para tua aprovação, felizmente que tens aí ao teu dispor um bom acervo de livros sobre Portugal, podes propor alterações. E seguidamente vou procurar dar resposta às questões que me pões sobre aquelas malfadadas primeiras semanas de abril, eu sentia-me muito mal por tudo o que tinha acontecido na operação Tigre Vadio, era um remorso sem sentido, dirás tu, se não ajudei a matar a sede foi porque não houve circunstância, as transmissões falharam de terra para o helicóptero, o piloto tinha sérias razões para não andar ali com um vidro estilhaçado, despejou-me no quartel do Xime, senti-me apalermado a explicar aos meus camaradas o que se estava a passar, lá procuraram confortar-me, passei a noite em desassossego, tudo melhorou quando eles começaram a chegar a partir das canoas do Enxalé, muito perto do Xime, na margem direita do Geba. Os meus soldados andavam eufóricos, nunca se tinha ido àquele remoto Belel, com tanto sucesso destruidora. Voltámos à rotina, ultrapassei o ataque de paludismo, felizmente o único que tive. Conversei com os oficiais do Comando, procurei detalhar como era muito difícil chegar a Belel, do ar avistam-se os caminhos, mas o coberto florestal é imenso, eles foram hábeis, puseram acampamento bem dissimulado pela vegetação, como sempre habitações em colmo e adobe, havia uma extensa horta de mandioca e fundo, mas não foi por aqui que eles fugiram, meteram-se noutra mata densa, no chamado Corredor do Oio. Dentro da rotina, voltámos à ponto do rio Undunduma, recordo perfeitamente um patrulhamento à região de Samba Silate, uma manhã com muito pouco calor em que descobrimos novos trilhos em direção ao Geba estreito, os meus soldados demoraram a encontrar duas pirogas escondidas no tarrafo envolvidas em folhas de palmeira. Foram postas a navegar e destruídas a tiro.

Passado cerca de uma semana, sou novamente convocado ao major de operações. Ele insiste em que se faça uma batida em grande escala à foz do Corubal, duas companhias, a de Bambadinca e a do Xime e o meu pelotão. O major pretende que se constituam dois destacamentos, um sairia do Xime para emboscar na região de Madina Colhido, um local onde o grupo do PAIGC procura surpreender as nossas forças, tanto à ida como à volta; outro iria progredir de Ponta Varela em direção à foz do Corubal, ele contava comigo para voltar ao território que eu conhecera na operação Rinoceronte Temível, e no regresso passaríamos pelo rio de Burontoni, encontrando-nos com outro destacamento em Madina Colhido ou Gundaguê Beafada, seguindo-se o regresso ao Xime. Eu que acertasse pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e ajuda de carregadores e piscou-me o olho, que não me esquecesse de levar um pouco mais de água.

Abandonámos o Xime à hora aprazada, da minha parte, beneficiando de uma noite enluarada lá fomos progredindo pela bolanha do Poidom, flanqueando trilhos que eram nitidamente usados pela população ou pela guerrilha. Alvorecia quando avistámos à distância dois cultivadores que caminhavam descuidadamente na nossa direção, quando deram por nós escapuliram-se. Perdido aquele fator surpresa, metemos dentro da mata, e então a surpresa foi outra, encontraram-se onze casas de construção recente, dois depósitos cheios de arroz, mais uns casebres à frente, não havia armamento nem munições, eram seguramente habitações de quem lavrava a bolanha. Destruiu-se o que era possível destruir em tempo recorde e perseguiu-se a batida sempre na orla da mata. Do ar, para minha completa surpresa, o major informava que a força de Madina Colhido avançava em nossa direção, podíamos estar juntos na batida na Ponta do Inglês. Não houve felizmente qualquer dificuldade no reencontro, confirmámos a existência de muitos vestígios da presença da população, visitei pela primeira vez o que restava do aquartelamento da Ponta do Inglês e a Companhia de Bambadinca foi-nos mostrar as tabancas que tinham sido destruídas numa outra operação de nome Safira Única. Nada mais havia a fazer, partimos lestos para a orla do rio Burontoni e chegámos ao anoitecer ao Xime, sem qualquer contato. Na manhã seguinte encontrei-me em Bambadinca com o major de operações, percebi perfeitamente que ele não gostou do meu comentário: o Poidom estava par dar e vender, parecia-me completamente inútil este tipo de operações, era óbvio que os grupos de combate se acoitavam mais longe, lá no fundo do Corubal, se o senhor major quisesse resultados havia de propor operações de paraquedistas ou facilitar o transporte de tropas até Moricanhe e então sim, por aqui se podia chegar ao Baio e a Burontoni em condições físicas decentes. Encolheu os ombros e mandou-me sair, sem o mínimo de agradecimento.

Sinto perturbações na visão e nos ouvidos, deve ser um rescaldo tardio da minha anticarro, cresce em mim um sentimento de frustração, uma melancolia, o sono é péssimo, o Vidal Saraiva é um médico atento e informa o comandante que eu devo ir à consulta externa, enviará mesmo uma carta ao David Payne, então na psiquiatria do Hospital Militar nº 241, para que me aplique uma terapêutica conveniente. Digo automaticamente que sim, é exaustão a mais, é uma mágoa incontida, tenho felizmente três auxiliares de mão cheia, cada um na sua área, o Cascalheira, o Ocante e o Pires, com quem converso e que me prometem por sua honra que tudo vai correr bem. Arrumo a traquitana e parto de mala aviada, ninguém sabe, mas a mala que me acompanha foi-me deixada pelo José Manuel Medeiros Ferreira antes de desertar. Nauseado por uma vida aperrada a ocupações a toda a hora e por uma vida operacional que me parece ter pouco sentido, é com alívio que em Bafatá parto para consultas médicas ainda não sabendo a tragicomédia que irei viver no serviço de psiquiatria do Hospital de Bissau.

Desculpa ser tão breve, é muito tarde e terei o dia de amanhã absorvido por reuniões e a conclusão de um importante documento. Parece que estou contagiado pelo abatimento daquele mês de abril, que agora rememoro. Bisous mils, comme toujours, toujours, Paulo.

(continua)

Vista geral do Palácio das Exposições no Heysel, Bruxelas
Pormenor da fachada principal, a alegoria aos transportes
O Atomium, criado para a Exposição Universal de 1958, sito no Parque do Heysel
Não podia ter havido recordação mais terna que aquela que vivi em Belel, em 2010, depois de um percurso árido dei com uma escola buliçosa, o senhor professor ocupa o lugar central, hirto na responsabilidade de ficar para a história daquela viagem, a pequenada manifesta-se feliz, apareceu por ali uma senhora que quis ficar na fotografia. De todas as imagens que marcaram aquele meu itinerário de reconciliação esta é a que ainda mais me inspira, passados tantos anos
Andando às voltas dentro do que fora o velho quartel de Bambadinca, duas surpresas me esperavam, aquele belo e imponente poilão e ao fundo a mãe de água, faltou-me coragem de avançar, temi ir encontrar uma caranguejola enferrujada, quando aquela mãe de água era fonte da nossa vida, nos tempos de guerra
A única fotografia que tenho de Bacari Soncó, imaculadamente vestido em tom pérola, à esquerda, acompanhado pelo seu filho Bacari Soncó, que às vezes me telefona, vindo de Saragoça, Darmstadt ou Nantes, trabalha para uma empresa internacional, avisa-me que no dia seguinte vai visitar a família a Missirá e se tenho alguma lembrança para eles. Na fotografia, estão ainda Maria Leal Monteiro, que me acompanhou na visita a Missirá em 1990, e a Cristina, falecida em abril deste ano. Imagem tirada em casa da Maria Leal Monteiro, no bairro da Calçada dos Mestres
O Geba estreito, como aparentemente todo este mundo é pacífico e em certos ângulos sinuosos, daquele tarrafo pode escapar fogo de morte. No entanto, e para todo o sempre, é o rio da minha vida
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22471: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (66): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22490: A galeria dos meus heróis (42): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte II (Luís Graça)


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043. Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Commons
 

A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte II 
(Luís Graça) (*)

 

3A. Ganhava-se mal na função pública, 
mas era um emprego certo, 
com cheque ao fim do mês e algumas pequenas regalias. 
Nas finanças, havia os “emolumentos”, 
que representavam mais uns tostões ao fim do mês. 
Eu teria preferido entrar para a banca, 
nessa altura tinha mais prestígio. 
Os bancos, privados, pagavam melhor e tinham melhores instalações. 
E já havia uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje), e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios, as fábricas… 

Não, não era o meu sonho seguir as peugadas do meu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura. Tenho pena de o dizer, mas infelizmente, o meu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a minha mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família a ir estudar. E sobretudo era minhota, e que em pequenino me contava a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, acho que fez um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando eu saí da tropa, apetecia-me era “correr mundo”, como alguns dos meus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que eu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficou em Luanda, outro ficou no Hospital da Estrela em Lisboa ...

Devo acrescentar que não meti nenhuma cunha para me livrar do Ultramar. O meu pai, que era da União Nacional (, tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele me confessou, eufemisticamente. Mas a minha mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O meu pai era um plebeu, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se eu caísse na patetice de lha contar.

Enfim, fui colocado, sem entusiasmo,  na repartição de finanças de Mafra, Mafra Dois, como dizia o Ravasco, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entrava numa carreira técnica. Passava a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o meu pai. No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electro-mecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso eu era bom, melhor que o meu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (, enquanto o meu pai queria que ele fosse regente agrícola).

Já não me lembro das categorias, nem das letras de vencimento, mas estava cá para o fundo da tabela: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava comigo e perguntava-me com que idade é que eu me imaginaria chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas o que eu mais gostava era do meu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que me dava acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passei a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entrei no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que me dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltei à Ericeira, depois de ter sido transferido para Braga.)


4. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto, 
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai. 
Eu chamava-lhe o “morgadinho”, com ironia. 
Tinha a mania que era de “sangue azul”. 
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como eu. 
Via-se que tinha “bons princípios”, 
tendo nascido, se não em berço de ouro, 
 pelo menos em cama com lençóis de linho. 
 Pois fora coisa que eu nunca tivera
 E a minha mãe, coitada, era analfabeta. 
E o meu pai, mineiro. E o meu avô, ganhão. 
E mais do que avô não conheci



Procurei consolá-lo, fomos petiscar, “jaquinzinhos fritos”, com arroz de tomate, ainda me recordo, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o meu gosto, com mesas envernizadas e tampos de vidro… 

Depois procurei mentalizar o meu colega de “desterro”  (mas, no fundo estava a tentar arranjar algum consolo para o meu próprio infortúnio=: um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer coisa. A menos que se tenha um pai rico… Começáramos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveríamos de subir mais um ou dois degraus… Pensava nisso quase todos os dias quando subia aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” nos disse, incentivando-nos a estudar… “É uma carreira bonita mas dura”… E, aí, de repente, tive a intuição de que ele só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

 O grande chefe, Salazar, também ex-seminarista, esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como eu dizia depreciativamente. Era o que estávamos a viver, na época, a “mudança na continuidade”. O regime estava a chegar ao fim, mas eu não conseguia predizer quando…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos, mas eu não sabia nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973: conspirações, traições, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que fui completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. Nessa manhã eu estava na repartição, quando alguém, de fora, da nossa tertúlia, me veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao meu ouvido. Eu próprio pensei logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinha grandes ideias para o meu futuro pessoal. Queria poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisava de sentir que o meu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Queria continuar a estudar, mas não tinha grande cabeça para o fazer. Faltava-me a disciplina mental. Ainda estava a fazer o “luto”: não já da morte do meu pai, mas da minha participação na guerra… Estranhamente, só depois de ter regressado, é que comecei a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que eu fosse muito “informado” quando parti para a Guiné… E, confesso até, não tinha “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tenho hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando fui mobilizado, não questionei a legitimidade da guerra… Aceitei a “canga” que me puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos meus avós de São João dos Caldeireiros… Mas depois vi coisas, na tropa e na guerra, de que não gostei. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinha tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...



4 A. Fui, no domingo, à missa
e gostei de conhecer o padre cá da paróquia.
Pela idade, deve ser o coadjutor, 
mas irradia simpatia e inspira confiança. 
E rodeia-se de gente nova. 
Parece ser um padre “arejado de ideias”, 
como agora se diz. 
Tenho-o de o apresentar ao herege do Ravasco.


Suspeito que é um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabem distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira é ténue, é verdade. E eu próprio às vezes fico confuso sobre o teor dos sermões que agora ouço nas homilias. É um tipo que se aproxima das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, retira a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas, associam aos nossos “pensamentos, palavras e obras"... Fala também de liberdade e justiça...

Talvez antes ir ao próximo Natal a casa, lhe peça para me ouvir em confissão. Há quase um ano que não me confesso nem comungo. Não sei o que dizer à minha mãezinha se ela, na Missa do Galo, vir que eu já não comungo… Acho que já não sou o mesmo, também não vim o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, diria mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação  às gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam. 

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares…Mas tenho saudades, de Luanda, onde ainda passei os últimos meses da minha comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah” aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 

 

5. Acho um ridículo atroz o Bacelar usar, 
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não esconde as suas simpatias monárquicas 
e é católico de ir à missa. 
Fazia questão de me dizer que não se interessava 
pela “política politiqueira”. 
 Onde é que eu já ouvira isso ? 
Nas “conversas em família”… 
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano


Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quis humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo oque eu deduzi.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que eu, que era um cepo. Vá lá, eu safava-me no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-me no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e era alourado. Tinha uma bela cabeleira. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas eu não lhe dava grande trela, não tinha pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejava-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os meus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (, como ele abusivamente dizia), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. Expliquei-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que me contara um dos meus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fôssemos os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, onde apesar do eco, não se falava alto. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense, se bem me lembro. Acho que ele era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostava de ver o Bacelar a puxar do o “cartão da PIDE/DGS”, como eu lhe chamava com sarcasmo,  quando  íamos ao “Ouriço” ou atéao bar do hotel!... Ele tinha cá uma lata!... Eu, pelo contrário, recusava-me a fazer uso do cartão da DGCI. Penso que nunca puxei por ele para me impor a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentava para fazer companhia ao Bacelar.

 

5 A. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que eu: 
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações…. 
Fazia o mapa das empresas rodoviárias, 
de transportes de passageiros e mercadorias, 
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A mim, pelo contrário, deram-me o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizou comigo, o adjunto, por alegadamente eu ser “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, fui pôr o caso ao chefe da repartição e falei-lhe do meu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a minha área de competência com a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-me o correio e o expediente, que era coisa de escriturário…

Em jeito de protesto, eu no dia seguinte pedi logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabei por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI… Creio que era à sexta-feira da última semana do mês… Percebia-se pelas conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, que a noitada tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão…

Contei tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário comigo. Afinal, quem paga tudo isso ?, interpelava-me ele.  A minha consideração pelo meu colega alenyejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da minha situação ali dentro. Sentia-me deslocado, infeliz, com saudades da minha gente e da minha terra.


6. Não posso jurar que havia aqui corrupção. 
 Corrupção ?!... Não se falava disso na época. 
Discutia-se o regime como um todo. 
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica, 
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Eu tinha chegado há pouco e tencionava não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra Dois. Mas não punha as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos connosco e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram-nos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (, na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, eu fui num outro, não queria ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionário da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira,

Nesse final de ano de 1972, eu e o Bacelar também fomos convidados. Parecia mal não alinhar, logo no nosso “primeiro ano”. Sabíamos que estávamos “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-nos um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe o “açoriano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouvi a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebi depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembro-me de ter visto a marca, na Guiné… Mas eu não bebia refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A minha santa ingenuidade, a minha crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Eu tinha idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo de administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecia-me ter colegas daqueles a trabalhar a meu lado. Infelizmente tinha que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que vivi em Mafra Dois, no tempo em que lá estive, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não vi movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, na capital. Mas antes tenho de recordar aqui uma cena, das minhas memórias de Mafra Dois,  que nunca mais esquecerei, enquanto pelo menos não apanhar o Alzheimer.

(Continua)



© Luís Graça (2021)

Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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