Queridos amigos,
Num estado um tanto lastimável, em desnorte, Paulo Guilherme parte para Bissau, nem lhe passa pela cabeça o que é uma cura de sono num hospital militar, metido num quarto com um capitão que pediu uma evacuação Y porque se esquecera de enviar nesse dia correio para a mãezinha e outra parentela, e um furriel que tivera a sorte bendita de pisar um sistema de minas antipessoal, andou pelos ares, não perdeu uma nesga de carne mas ficou frenético, não havia soporífero que o domasse; assistir-se-á a visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino que deixarão umas revistas puídas e alguns aerogramas; sob o olhar severo de um 1º cabo que se vangloriava de ter algumas coristas por conta num inesquecível Parque Mayer; e aquele trágico espetáculo que era a corrida de doentes de toda a espécie até à varanda para ver chegar qualquer helicóptero, para medir o estado de quem chegava e fazer a comparação dos aleijões, às vezes suspirando de alívio porque a contabilidade soprava a seu favor... Pois foi assim, para além de se ter sentado numa cadeira de dentista, ter tirado montanhas de porcaria dos ouvidos e ter tido o regozijo de o novo oftalmologista lhe ter assegurado que não havia danos nos olhos, os efeitos da mina anticarro tinham passado sem deixar marca.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Paulo, mon adoré, mon Ulysse, estou quase a partir para Lisboa, o número de reuniões tende já a diminuir, disse-me o meu coordenador que de sexta-feira a oito dias é o último dia de trabalho, estarei três dias no Luxemburgo e até lá andarei por diferentes edifícios das instituições, reuniões da Comissão e do Parlamento. Telefonou-me a proprietária da galeria Tempera, Chantal de Elsouth, referindo que aguarda a tua decisão quanto à compra de uma das duas obras de Frédéric Brigaud, um bronze onde se vê a figura de um coelho e um desenho a grafite intitulado Cabeça de Herói. Vê se me comunicas rapidamente o que pretendes comprar, irá comigo até Lisboa.
Foi com muito agrado que recebi a tua encomenda com o livro Postais Antigos da Guiné, com uma linda dedicatória do autor, João Loureiro, tu dás a explicação de que é a maneira mais óbvia de ele conhecer a cidade de Bissau por onde circulaste durante aquele mês de abril de 1970. Juntaste um conjunto de folhas com matéria explicativa de tudo o que consideras mais relevante sobre este período em que tiveste a circunstância de te recompor psicologicamente, mesmo contrafeito pelo internamento na Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Pouco antes de partires para tratamento, andaste pelos Nhabijões com um príncipe de nome Xisto Bourbon-Parma, que dizes ter sido muito gentil e muito perguntador, vinha como repórter, tinha como fito avaliar os reordenamentos planeados pelo governador. Juntas várias imagens dos Nhabijões com dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo os antigos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga. Já tinhas referido haver sucessivos patrulhamentos a montar segurança ao empreendimento, dizes nos teus apontamentos que só meses mais tarde é que a guerrilha começou a implantar minas anticarro, mas não tinhas dúvidas que as populações de Madina-Belel e Baio-Buruntoni mantinham relações familiares amigáveis, quem vivia no mato queria abastecer-se de víveres e informações. Referes igualmente nestes apontamentos que não foi uma nem duas vezes que encontraste nos terrenos a beijar o Geba embarcações camufladas e indícios seguros da presença humana.
Em notas separadas, envias o registo dos teus dias a partir de 14 de abril: reunião com os furriéis para apreciar os pagamentos às praças, as trocas de fardamento, a chegada de novos equipamentos que vinham substituir o que já estava por um fio. Receberas a garantia do major de operações de que o teu pelotão ficaria seja na ponte do rio Undunduma, ou a apoiar colunas ao Xitole ou a fazer patrulhamentos dentro do setor, não haveria participação em operações de grande porte. E gostei muito daquelas duas folhas em que tu mencionas o que te vai na mente enquanto viajas de Bambadinca para o aeroporto de Bafatá, aquela intensa e viva rememoração do que se tem passado na tua vida desde que foste classificado como ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, parece que foi ontem, te adaptaste a viver lá num mato profundo do leste da Guiné, que um dia te ardeu um quartel, terá sido talvez o maior desafio da tua vida repor ordem, reconstruir, melhorar as condições de vida tanto dos civis como dos militares; que tinhas dois destacamentos para gerir com recursos mínimos, problemas graves de abastecimento para todos, constantes idas ao médico, assegurar professores para as crianças, os dias passavam vertiginosamente, continuava a ser um mistério como havia tempo para ler, escrever e ouvir música e que jamais esquecerias aqueles dolorosos momentos de lágrimas amargas pelos mortos e feridos; que um dia acordaste estremunhado e saíste do abrigo e tinhas o pelotão formado à porta para reivindicar mudança de poiso, queixavam-se daquele esforço quase desumano, aquelas caminhadas de 25 ou mesmo 50 quilómetros por dia, patrulhas e emboscadas e as operações também não faltavam, queriam sair do Cuor, como saíram, foi um abalo na tua vida, nunca te conformaste até ao fim da comissão com aquela pletora de intervenções multiusos, e sobretudo aquele punhado de operações que pareciam não ter pés nem cabeça, e assim chegavas àquele estado de desalento, à deriva como um pária, estranhamente sentias aquela fortaleza da camaradagem e fidelidade dos teus soldados, até mesmo da atmosfera agradável da vida entre oficiais e sargentos, em Bambadinca, só que o Cuor deixara saudades sem fim, quantas vezes desceste a rampa da Bambadinca só para ir ver o sol a caminhar para o acaso sobre o coberto florestal de Mato de Cão. Prometo-te, meu adorado amor, que tudo farei para pôr ordem em tudo quanto garatujaste durante esta viagem até embarcares para Bissau.
Fizeste bem em me teres enviado os aerogramas que mandaste à família logo que chegaste à cidade. Havia amigos que tinham partido, caso do Teixeira da Mota e do Botelho de Melo, mas sabias, e por eles nutrias uma forte dedicação e gratidão, que estavam no batalhão de engenharia o Rui Gamito e o Emílio Rosa, não foi por acaso que mal chegado a Bissalanca pediste uma boleia até Brá para os ires visitar, aquele tão estranho quartel feito de barracas Mague, umas estruturas metálicas com teto de lusalite, convidaram-te para almoçar, guardaste a recordação desses belos momentos. Depois deram-te transporte até à messe de oficiais, em Santa Luzia, onde deixaste os teus haveres e partiste à redescoberta da cidade. Tu descreves minuciosamente o primeiro passeio, felizmente para mim os postais organizados pelo João Loureiro ajudaram-me a compreender o que ias olhando e registando.
Apeaste-te na Praça do Império, e pela primeira vez entraste no edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau, acicatado pelas soluções arquitetónicas, dois arquitetos lançaram mão a soluções espaciais que criaram espaço desafogado, tendo por detrás uma área desportiva, com campo de ténis. Foste vagarosamente descendo a Avenida da República pelo lado direito, sempre a ver ao fundo o Pidjiquiti, passaste pelo Hotel Portugal depois de tomar uma bica no Café Império, passaste o mercado e entraste nos CTT, marcaste telefonemas para o dia seguinte, mudaste para o lado oposto e foste à catedral rezar, passaste sem parar pela Pensão Central e encaminhaste-te para um café de nome Bento, a que deste o estranho nome de 5ª REP, pediste uma água e observaste o bulício da esplanada, oficiais, sargentos e praças, sobretudo os que estavam em trânsito, bramavam aos gritos sobre tiros e desgraças, só faltavam os estampidos das minas e emboscadas. E depois de pagar foste visitar a pequena livraria que guardava surpresas, sobretudo de livros que a Censura tinha apreendido em Lisboa, folheaste cuidadosamente três ou quatro, amanhã por aqui passarás para comprar dois.
Mas o Cais do Pidjiquiti é irresistível, passas ao lado do Bissau Velho e ficas especado a ver as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, a linha do Ilhéu do Rei e a sua vegetação frondosa. E num desses aerogramas que envias para Lisboa dizes ter sentido um cansaço esmagador, convinha regressar, doía a memória, havia mesmo aquela inescapável sensação de culpa, o teu lugar era estar ao pé dos teus soldados e não a tratar maleitas, só sentiste alívio quando pensaste que a tua guia de marcha incluía oftalmologista, otorrino, estomatologista e, com que arrepio não soletraste, a neuropsiquiatria, o imperativo de recompor os sonos, naquele vendaval de insónias tão desgastantes.
Foi assim, meu adorado Paulo, que tu chegaste a Bissau, percorreste artérias já conhecidas, como dirás no outro aerograma, com aquela estranha sensação de que não há uma emboscada à espreita e de que não sentes o peso da espingarda. E ficamos por aqui, pois antes de partir para Lisboa ainda te vou dar conta de tudo o que viveste até chegares à tragicomédia da Neuropsiquiatria, espero que não fiques zangado se te disser que me fartei de rir com as facécias que escreves, mesmo sentindo arrepios quando tu contas a chegada dos helicópteros que trazem sinistrados e os estranhíssimos comentários daqueles militares que estavam contigo à varanda, alguns com membros amputados, fazendo as mais bizarras comparações entre o seu estado e quem chegava com a vida por um fio. Aguardo o teu telefonema, Jules e Noémie mandam-te saudades, Jules está impaciente pela sua semana de férias em Lisboa. Mas mais impaciente estou eu todas as doçuras da tua companhia. Bisous mils, comme d’habitude, Annette.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória